PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA
sobre “A viagem de Lopo Soares de Alvarenga à Índia: 1504-05
”
CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes e encomendada por Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF - pp. 141
– 148.
Capítulo
XCVI
De como o rei Dom Manuel
mandou à Índia treze naus de que foi por capitão mor Lopo Soares de Alvarenga.
Esta
armada era de treze grandes naus em que iam mil e duzentos soldados e muitas
munições de guerra, por quanto o rei Dom Manuel tinha a guerra de Calecut por
certa pelas informações que o almirante Dom Vasco da Gama lhe deu quando regressou
pela segunda vez. Os outros capitães que iam debaixo da bandeira de Lopo Soares de Alvarenga eram Pero de Mendonça, Leonel Coutinho, Tristão da Silva, Lopo Mendes de Vasconcelos, Emanuel
Teles Barreto, Lopo de Abreu, Filipe de Castro, Afonso
Lopes da Costa, Pero Afonso de Aguiar, Vasco da Silveira, Vasco
Carvalho, e Pero Dinis de
Setúbal com os quais partiu do porto de Belém, Lisboa, no dia 22 de Abril de 1504.
Seguindo
a sua viagem, chegou a Moçambique no dia 25
de Julho, dia do apóstolo Santiago.
O xeque de Moçambique recebeu-o como amigo, mandando-lhe refresco da
terra como presente e uma carta que Pero
de Ataíde escrevera antes de morrer em que avisava qualquer capitão que ali
viesse sobre os negócios da Índia.
Vendo
Lopo Soares que a sua chegada era necessária a Cochim, mandou consertar e
abastecer a armada com tanta diligência que no primeiro dia de Agosto partiu para Melinde.
Quando
chegou a Melinde, o rei desta terra mandou visitá-lo com refrescos por um mouro
honrado de nome Debucar e com ele
dezasseis portugueses que ali deixaram ficar, dos que se salvaram da nau de
Pero de Ataíde. Lopo Soares não se
deteve neste porto de Melinde mais do que dois dias, após os quais e depois de
se encontrar com o rei, partiu para a Índia, navegando com bom tempo até à ilha
de Anchediva, onde encontrou António de Saldanha e Rui Lourenço que ali vieram ter e por
causa do inverno não puderam seguir adiante.
Estava-se
no fim de Agosto, quando começa lá o verão e Lopo Soares fez-se à vela a
caminho de Cananor, onde chegou no primeiro dia de Setembro. Soube pelo
rei de Cananor, com quem se encontrou em terra e pelo feitor Gonçalo Gil
Barbosa o que Duarte Pacheco Pereira
fizera nas guerras com o rei de Calecut. Após a conversa e dado o presente ao
rei de Cananor que o rei Dom Manuel enviara, partiu para Calecut.
Isto
porque, no dia seguinte ao da sua chegada, veio ter com Lopo Soares um mouro de
Calecut com um moço português que lhe trazia uma carta dos portugueses
que ficaram prisioneiros no tempo de Pedro Álvares Cabral e que foram
levados por Naubeadarim, príncipe de
Calecut, de Cranganor com Rodrigo Reinel
quando, por ordem de Francisco de Albuquerque, ali fora receber pimenta.
Nesta carta escreviam que o rei de Calecut
tinha ficado tão desesperado com as derrotas da guerra que tivera com Duarte
Pacheco Pereira que os governadores da cidade, sabendo que o rei aceitaria a
paz, se lha dessem, apesar de, naquela altura não estar na cidade, mandaram-lhes
que lhe escrevessem para saberem se seria de sua vontade fazer a paz. Pediam-lhe
que quisesse: por um lado porque a todos os portugueses viria disso proveito e por
outro lado, para com a paz saírem do cativeiro em que havia tanto tempo
estavam.
Lida
a carta, Lopo Soares quisera mandar o mouro com a resposta e reter o moço. Este
não quis aceitar, dizendo que se ficasse que a todos os outros que estavam em
Calecut cortariam as cabeças ou pelo menos os tratariam mal. Lopo Soares,
comovido deixou-o regressar sem resposta, apenas resposta de palavra,
dizendo-lhe que quanto à paz que ele se iria dali a Calecut por esse só
respeito por também a desejar. Isto lhe disse perante o mouro e, à parte, disse-lhe
que lhes dissesse que assim que surgisse diante do porto, tratassem de fugir de
noite para as naus que ele os mandaria esperar na praia com os batéis.
Depois
de despedir-se do moço, Lopo Soares se fez à vela e a um sábado, dia 07 de Setembro de 1504, surgiu diante
da barra de Calecut, onde logo os governadores da cidade o mandaram visitar por
um mouro honrado acompanhado pelo mesmo moço português por quem lhe mandavam um
refresco da terra e dizer que se quisesse dar passe a Cojebequii que lhe iria falar sobre o acordo
de paz para o que já tinha comissão do rei de Calecut. Lopo Soares não quis
aceitar o presente, respondendo que, até terem o acordo de paz assinado, não
valeria a pena lhe trazerem presentes que ele não os aceitaria. Quanto a Cojebequii
podia vir falar com ele livremente.
Assim
foi feito, ele veio acompanhado por dois dos nossos que estavam prisioneiros na
cidade, trazendo recado da parte dos regedores que o rei estaria na cidade dentro
de quatro dias para falar nestas pazes que desejava muito com o rei de
Portugal. Lopo Soares respondeu-lhe que, antes de se fazer qualquer acordo, lhe
tinham de entregar os portugueses que tinham presos e os dois lombardos
milaneses.
Os
de Calecut não responderam por causa da entrega dos milaneses;
relativamente aos nossos, estavam resolutos em entregá-los como mais tarde se
soube. Lopo Soares mandou logo bombardear a cidade, facto que durou um dia e
meio. Depois partiu para Cochim, onde chegou a um sábado dia 14 de Setembro de 1504.=
p. 142
Capítulo
XCVII
Do que Lopo Soares fez
depois que chegou a Cochim e de como Duarte Pacheco Pereira veio ao seu
encontro e foram sobre Cranganor.
No
dia em que Lopo Soares chegou ao porto de Cochim vieram vê-lo à nau os nossos e,
no dia seguinte, desembarcou e se foi à fortaleza
Emanuel, à porta da qual o estava esperando o rei de Cochim e dali entraram para uma sala grande onde estava um
estrado em que o rei se lançou sobre as almofadas e Lopo Soares se sentou numa cadeira de encosto fora do estrado. Assim
estiveram ambos falando por um bom pedaço de tempo. Lopo Soares deu-lhe logo um
presente que o rei Dom Manuel lhe enviava.
Dali
a poucos dias, Lopo Soares mandou Pero
de Mendonça e Vasco de Carvalho
que saíssem com as suas naus a guardar a costa dali a Calecut e Afonso Lopes da Costa, Pedro Afonso de
Aguiar, Leonel Coutinho e Rui de Abreu que fossem carregar as naus a
Coulão por saber que o feitor António
de Sá já tinha muita especiaria junta por engenho, trabalho e ardis de Duarte
Pacheco Pereira.
Depois
de estas naus chegarem ao porto de Coulão, Duarte
Pacheco Pereira partiu para Cochim, onde Lopo Soares o recebeu como a
homem a que todo o cavalheiro tinha obrigação de fazer muita cortesia,
misturada com desejo de alcançar alguma parte de tanta honra e glória,
quanta ele tinha ganhado nas vitórias que tivera contra o samorii rei de
Calecut.
Feita
a carga das naus que tinham ficado em Cochim e vindas as que foram a Coulão, Lopo Soares foi avisado de que em
Cranganor, cidade que sempre fora submissa ao rei de Calecut, estava lá um seu
capitão de nome Maimame com oitenta
paraus e cinco naus e em terra o príncipe
Naubeadarim e que, cada dia, se juntava mais gente a muita outra que já lá
tinha. Isto para que, quando partisse a nossa armada, darem de súbito nas
terras do rei de Cochim e continuarem de novo a guerra que tinham com Lopo
Soares.
Sobre
isto teve conselho com o mesmo rei de Cochim e capitães da frota e ficou decidido
que atacassem de súbito Cranganor. Partiu de Cochim uma noite com quinze
batéis, vinte e cinco paraus e uma caravela; todos bem equipados em que haveria
mil homens portugueses e mil naires do rei de Cochim. Ao amanhecer, chegou a Palir, porto onde o príncipe de Cochim
o estava esperando com oitocentos naires. Daqui partiram por mar e por terra a
caminho de Cranganor, dando Lopo Soares a dianteira desta frota a Tristão da Silva, António de Saldanha,
Pedro Afonso de Aguiar, Afonso da Costa e Vasco Carvalho.
O
capitão do rei de Calecut tinha duas naus em que ele estava com dois dos seus
filhos, em fila, bem equipadas de artilharia e todas as munições necessárias,
com muita gente de guerra, flecheiros, lanceiros e alguns espingardeiros e às
ilhargas delas tinha posto os paraus com muita gente e artilharia.
Quando
chegaram, os nossos cinco capitães abalroaram as naus, entrando (apesar de com
muito esforço)e matando alguns dos inimigos entre os quais o capitão e seus
filhos que morreram como homens esforçados. Toda a outra gente, vendo as naus
invadidas, lançou-se ao mar. Os outros capitães com os naires do rei de Cochim atacaram
os paraus de Calecut que logo se puseram em fuga sem nenhuma resistência.
Desbaratada
esta frota, Lopo Soares fez
desembarcar os nossos, dando a dianteira aos cinco capitães e estes com o príncipe de Cochim que veio por terra
e a outra nossa gente atacaram a gente do príncipe de Calecut Naubeadarim que
depois de se defenderem um bom pedaço de tempo abandonaram o campo de batalha e
entrando por uma porta da cidade saíram pela outra, indo os nossos no seu encalce
até os lançarem fora.
Duarte Pacheco Pereira e Diogo Fernandes Correia, que por ordem de Lopo Soares desembarcaram
com alguns capitães afastados dos outros, vendo os inimigos ir em fuga sem os
poderem alcançar, entraram também pela cidade e logo lhe puseram fogo. Quando se
começou a atear, saíram das casas alguns cristãos dos que ali moravam,
pedindo-lhes que o apagassem para não se queimarem as igrejas de Nossa Senhora e dos Apóstolos que na cidade havia e também
as suas próprias casas que tinham misturadas com as dos mouros, gentios e
judeus. Destes alguns correram à praia onde Lopo Soares estava com a gente que com ele ficou para guardar a
frota, a pedir-lhe o mesmo. Logo mandou acudir, mas não pôde ser com tanta
diligência que se não queimassem muitas casas por serem de madeira cobertas de
ola à maneira malabar.
As
casas dos mouros, gentios e judeus que não se queimaram foram saqueadas e houve
um grande despojo. As duas naus que estavam em fila e três que estavam
encalhadas em terra, muitos paraus que os inimigos abandonaram Lopo Soares
mandou queimar e recolher as armas e artilharia que encontraram à nossa
frota.
Depois
disto, Lopo Soares entrou na cidade numa das igrejas dos cristãos para armar cavaleiros alguns. Depois Lopo Soares
regressou a Cochim onde foi bem recebido tanto pelo rei como por todos da
cidade.= p. 144
Capítulo
XCVIII
Em
que se declara donde estes cristãos de Cranganor trazem seu princípio e dos
costumes e modo de religião que têm e da localização da cidade.
A cidade Cranganor é grande, situada na terra de Malabar a quatro léguas de
Cochim, em frente de Calecut, ao longo da qual passa um rio que a cerca por
algumas partes. Habitam nela gentios, mouros, judeus e cristãos. Tem relações
com diferentes países e é muito conhecida. Vêm a ela mercadores da Síria,
Egipto, Pérsia e Arábia por causa da muita pimenta
que nela há.
Quando os portugueses chegaram à
Índia, esta cidade era governada por os mesmos da terra num sistema de república, mas com obediência ao Samorii (=
imperador), rei de Calecut. Depois que os
governadores de Cranganor viram as suas coisas em declínio por causa da guerra
que o rei de Calecut fazia aos portugueses, revoltaram-se sem mais lhe quererem
obedecer. Os portugueses encontraram nos gentios os mesmos costumes e crenças
que têm todos os outros de Malabar.
Os cristãos que nela moram, têm
igrejas como as nossas e nos altares e paredes pintadas têm cruzes como os de
Coulão sem nenhumas outras imagens nem sinos. O povo junta-se nas igrejas aos
domingos, onde ouvem as pregações e os ofícios divinos. Ao seu Papa chamam católico. Este tem a sua residência na
Caldeia com doze cardeais, dois patriarcas, arcebispos, bispos e outros
prelados. Os sacerdotes trazem a tonsura em cruz e consagram o Corpo do Senhor
em pão ázimo e com vinho de passas por não haver outro. Os seculares comungam
separadamente o pão e o vinho consagrado como os sacerdotes. Baptizam os
meninos aos quarenta dias, se não sucede perigo de morte. Confessam-se antes de
tomar o Sacramento e em lugar da Extrema Unção que não usam, o sacerdote benze
o enfermo. Quando entram nas igrejas lançam água benta sobre si; enterram os
mortos ao modo da Igreja Romana. Os parentes e amigos, em lembrança do morto,
comem todos juntos oito dias seguidos, dizendo sempre muitas orações pela alma
do defunto, após as quais lhe fazem o saimento.
Quando o que morre não faz testamento, sucede na administração dos bens o
parente mais próximo. As mulheres do defunto tiram o seu dote aos bens do
defunto, o qual por lei e costume que têm, perdem, isto é, voltam a entregá-lo,
se se casam antes de um ano depois da morte do marido. Têm os mesmos Livros da Lei Velha e Nova que são
recebidos no Cânone da Igreja Romana, escritos em língua hebraica e caldeia, os
quais os seus doutores (de que há alguns bem doutos na Lei) lhes lêem em escolas
públicas, principalmente os dos Profetas. Jejuam no Advento e na Quaresma no
mesmo tempo que nós. Não comem coisa nenhuma nem bebem na véspera da Páscoa até ao dia. Têm pregadores que
ordinariamente lhes pregam todo o ano. Têm livros de doutores que lhes explicam
a Lei em que estudam. Guardam com muta devoção o Dia da Páscoa com duas oitavas e o Dia da Pascoela (domingo seguinte ao
Domingo de Páscoa) com muita solenidade
por, naquele dia, São Tomé ter metido a mão no lado de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Guardam com a mesma solenidade os dias da Ascensão, Pentecostes,
Santíssima Trindade e Assunção de Nossa Senhora, o do nascimento de Nossa
Senhora e da Sua Purificação, o do Natal, Epifania e todos os dias dos
Apóstolos e domingos de todo o ano.
Têm dia intercalar para conta dos
anos como os latinos. Os cristãos e gentios daquele reino fazem grandes festas
no primeiro dia de Julho, em honra
do bem-aventurado Apóstolo
São Tomé.
Têm mosteiros de monges que se vestem de panos pretos e da mesma ordem os há de
freiras que vivem com muita observância, honestidade, castidade e pobreza tanto
uns como os outros.
Os sacerdotes guardam castidade
conjugal, morta a primeira esposa, não casam mais. No matrimónio, não pode
haver entre eles afastamento por nenhum motivo, senão por falecimento do marido
ou da esposa; bem ou mal, hão-de viver juntos até à morte. Estes costumes e
crenças têm todos os cristãos que há desde Cranganor até Chormandel e Mailapur, onde jaz enterrado o Apóstolo São Tomé que pregou a Palavra de Nosso Senhor
Jesus Cristo a estes de Cranganor e aos de Coulão e primeiro que a estes aos da
ilha de Cocotorá como eles têm por suas lendas e livros autênticos. Para maior
certeza, farei aqui menção do que Pero de Sequeira (homem a quem se pode dar
crédito) me disse acerca da verificação deste Santo Apóstolo ser o primeiro que
pregou a nossa fé católica naquelas partes que foi assim:
Servindo ele, no ano de 1544, o
ofício de tesoureiro do Depósito em
Cochim, veio ter àquela cidade um Bispo de Cranganor, de nome Jacobo, caldeu de nascimento, o qual
por sua dignidade e honestidade, morava no mosteiro de Santo António, da ordem
de São Francisco, onde adoeceu de enfermidade de que veio a falecer, e que Pero de Sequeira, por ter com ele alguma
amizade, ia visitar muitas vezes. Este bom homem, vendo-se no extremo ponto da
vida, com muita vergonha, lhe rogou que, se Deus fosse servido de o levar para
si, quisesse o Pero de Sequeira usar uma esmola e caridade para com ele e com
todos os cristãos da cidade de Cranganor: era que ele, por necessidade e por ser
pobre, empenhara a um certo homem, que morava na serra, duas tábuas de cobre em
que estavam talhados ao buril privilégios
que os senhores daquela cidade deram ao bem-aventurado Apóstolo São Tomé para os cristãos que ele já então
tinha convertido e para todos os que depois fossem convertidos e estas tábuas
empenhara por vinte cruzados havia
já alguns anos sem sua pobreza lhe dar lugar para as poder resgatar e lhe pedia,
para consolação da sua alma, lhe pagasse a penhora e as guardasse porque se
Deus lhe desse vida, ele lhe pagaria os vinte cruzados e morrendo o fariam os
cristãos de Cranganor pelo muito que isso lhes importava.
Pero Sequeira, comovido com
estas palavras, mandou um seu criado com o dinheiro, em companhia de um
sacerdote, dos que acompanharam o bispo e que conhecia o homem que tinha as
tábuas, que lhe trouxeram antes de falecer e por isso levou para o céu muita
consolação.
Morto o bispo, Pero de Sequeira
mostrou estas tábuas ao governador da
Índia, que então era Martim Afonso
de Sousa, que logo mandou buscar quem lesse o conteúdo delas, mas não se
achou quem as entendesse pela antigüidade da escrita e evolução das línguas. Já
desesperado, vieram-lhe a indicar um judeu que também vivia na serra, homem
douto em muitas línguas e expert em línguas antigas, ao qual mandou as tábuas
com cartas de recomendação do rei de Cochim, nas quais mandava que lhe
declarasse o que elas continham. O judeu assim fez com muito trabalho porque a
escrita era em três línguas – caldeu, malabar e árabe – e o estilo muito
antigo, mas a substância dos privilégios não se continha em cada uma destas línguas,
por si, senão em todas as três juntas, pondo uma palavra em adição caldeia e
outra malabar e outra árabe. E nestas três línguas estavam as tábuas escritas e
o seu texto que o judeu traduziu para a língua malabar, foi depois traduzido
para a língua portuguesa.
Estas tábuas são de metal fino, de
palmo e meio cada uma de comprimento e quatro dedos de largura, escritas em
ambas as faces e enfiadas na parte superior com um fio de arame grosso. O que
elas contêm é que “o rei que então reinava, dava de sua livre vontade ao Apóstolo
São Tomé,
que então residia em Cranganor, para edificar um templo naquela cidade, tantos côvados de elefante de terra em
redondeza, medida que faz dez palmos que é uma braça de craveira. O Apóstolo
edificou este templo no lugar que aquele rei lhe deu, que é no sítio onde está
agora a nossa fortaleza, declarando mais que todos os cristãos que naquela
redondeza edificassem casas, não pagassem nenhum
tributo aos reis daquele reino. E ainda mais: que para sustento do templo,
lhe fazia doação do quinto das
mercadorias que trouxessem os mesmos cristãos àquela cidade, pela sua baía
do porto que então era de grande trânsito, e este privilégio se lhes guarda até
hoje.
Estas tábuas ficaram ao cuidado do
mesmo Pero de Sequeira e depois do
tesoureiro que o sucedeu, onde ao presente devem ainda lá estar; a
tradução das quais mandou Pero de Sequeira em língua portuguesa ao rei D. João Terceiro que em santa glória
haja e lhe foi dado, mas o que se fez desta tradução não pude saber nem se acha
na Torre do Tombo, onde por razão a deveriam ter deixado como coisa digna de
memória.= p. 146
Capítulo
XCIX
Do
que Lopo Soares de Alvarenga fez depois da vitória que teve em Cranganor até
partir da Índia e chegar ao reino de Portugal.
Um dos reis que ajudaram na guerra ao
samorii rei de Calecut foi o rei de Tanor,
seu vizinho com quem o mesmo samorii depois de sair do turcol por causas que
entre eles se moveram começou por ter debates a que se seguiu guerra.
Movido o rei de Tanor na mesma
altura em que Lopo Soares foi sobre Cranganor e sabendo que o rei de Calecut iria
socorrer a cidade se lançou em cilada num lugar estreito por onde havia
de passar em que o desbaratou e matou mais de dois mil homens do rei de Calecut.
Sabendo que o rei de Calecut, temendo
que ele se aliasse aos nossos, buscaria todos os modos que tivesse para o
destruir, o rei de Tanor mandou seus
embaixadores a Lopo Soares dando-lhe
conta do que se passava e serviço que fizera ao rei de Portugal, pedindo-lhe
ajuda contra o seu inimigo. Estes embaixadores disseram-lhe que o samorii
estava já prestes a vir sobre o rei com uma grande armada e Lopo Soares mandou
em socorro Pero Rafael com soldados
portugueses entre eles besteiros e espingardeiros que chegou a Tanor no mesmo
dia em que o samorii com a ajuda dos nossos foi desbaratado e ficou tão abatido
que os mais dos mouros de Calecut se foram para viver noutras parte para estarem
seguros e fazerem melhor os seus negócios. Alguns fretaram dezassete grandes naus
bem equipadas e artilhadas para se irem para Meca. Logo começaram a carregar os
bens e mercadorias que tinham em Calecut e noutros lugares. Lopo Soares que se preparava para a
viagem de regresso, sabendo o que se passava, apressou-se quanto pôde para, de
caminho, parar em Pandarane, onde estas
dezassete naus estavam para as mandar queimar antes de saírem do porto.
Deixou por capitão de quatro velas Manuel Teles Barreto de que os
outros capitães que ficavam sob a sua bandeira eram Cristóvão Lusarte, Pero Rafael
e Diogo Pires e se fez à vela no dia
26 de Dezembro de 1504. Estando já
em Pandarane saíram-lhe vinte paraus dos que estavam a guardar as dezassete
naus e nestes vinha muita e boa gente de guerra que, com grandes gritos, vieram
atacar as caravelas de Pero Rafael e Diogo Pires que, por ordem de Lopo Soares,
iam adiante um bom pedaço, ao longo da costa com vento calmo.
Quando estes paraus chegaram perto
dos nossos atacaram-nos com flechas, tiros de espingarda e bombardadas de que
os nossos se defendiam com muita dificuldade. Os da nossa frota, vendo isto,
acudiram, seguindo os paraus até os fazerem recolher ao lugar onde estavam as
naus. Lopo Soares assim que as viu,
fez abrandar e, havendo conselho do modo de como as atacar, ficou estabelecido
que seria nos batéis e com as caravelas, por as naus estarem atrás de um recife
que as nossas naus não podiam chegar por irem muito carregadas. Então mandou
armar quinze batéis e pô-los a vogar para terra, levando as caravelas à toa até
as colocar no recife por o vento ser calmo. Na boca do recife estavam duas
bombardas instaladas num bastilhão que maltrataram os nossos quando entraram. As
naus estavam juntas umas com as outras, as popas em terra e diante das proas
para consertar os lemes atravessados e em fila uns com os outros à superfície
da água.
A gente que tinham para se defenderem
era muita e boa artilharia. Contudo os nossos, sobrepondo a honra ao perigo,
entraram no recife e foram atacar as naus com muitas flechas e bombardadas de
que foram bem servidos e de bombas de fogo, depois de as abalroar. O primeiro
foi Tristão da Silva que aferrou a que
estava mais à entrada do recife e porque nesta havia muito mais gente do que
nas outras, de que recebia muito dano, foi aferrar outra em que entrou, apesar
de os de dentro a defenderem com ânimo. Contudo os que escaparam do ferro
lançaram-se ao mar e a nau foi despejada.
Na mesma altura, Afonso Lopes da Costa aferrou outra nau de que era capitão um turco,
homem muito esforçado que entrou em muito trabalho, os primeiros que subiram
foram o mestre da nau, Afonso Lopes e Álvaro Lopes, criado do rei que depois
foi escrivão da câmara de Santarém.
Nesta altura, Leonel Coutinho, Duarte
Pacheco Pereira, Pedro Afonso de Aguiar, Vasco Carvalho, António de Saldanha,
Rui Lourenço e os demais o fizeram como guerreiros esforçados e também Pero
Rafael e Diogo Pires com as caravelas porque Pero Rafael foi cair com a
corrente da maré na gurita de uma das naus, donde para entrar e para se
defender saiu com três homens mortos e todos feridos.
Diogo Pires, encaminhando-se para as
naus com uma bombarda, mataram-lhe o mestre que ia governando. Antes que se
pudesse acudir ao leme, foi dar sobre uns penedos donde a tiraram à toa.
Esta peleja foi brava e durou muito,
mas por fim os inimigos afastaram-se das naus por causa do fogo que os nossos
lhes puseram e arderam muitas mercadorias que já estavam nas naus sem se salvar
coisa nenhuma. Tudo à vista dos nossos e dos da terra que da praia viam tudo e
estavam pasmados, olhando tudo com espanto como, tão de súbito, se queimavam
dezassete grandes naus com muitos paraus que estavam a par delas em que os mais
deles viam destruir-se os seus bens sem lhes poderem acudir.
Depois desta vitória, Lopo Soares recolheu-se às naus com
quinze homens portugueses mortos e cento e vinte e sete feridos. Dos inimigos,
como depois se soube em Cananor (para onde Lopo Soares dali partiu no primeiro dia
de Janeiro de 1505) morreram mil e setecentos homens.
Tomada a carga que ainda era
necessária às naus em Cananor, Lopo Soares
despediu-se do rei e dos portugueses que estavam na cidade e recomendando muito
a Manuel Teles, Cristóvão Lusarte, Pero Rafael e Diogo Pires a guarda da
costa do Malabar e coisas do rei de Cochim seguiu a sua viagem com
mais duas naus das que vieram consigo de Portugal carregadas de muita
especiaria e outras mercadorias com que chegou a Melinde no primeiro dia de Fevereiro onde foi
muito festejado pelo rei de Melinde.
Recolhidos os bens que ali deixara
António de Saldanha das presas que fizera no cabo de Guardafum, indo para a
Índia, foi ter a Quíloa com intenção
de receber as páreas que o rei de Quíloa estava obrigado a pagar todos
os anos. O rei recusou-se a fazê-lo e Lopo Soares partiu dali no dia dez de Fevereiro para Moçambique.
Em Moçambique, esteve dez dias
abastecendo-se das coisas necessárias para a viagem donde dois dias depois da
sua chegada se despediram para o reino de Portugal (com novas do que tinha
feito) Pero de Mendonça e Lopo de Abreu. Pero de Mendonça
perdeu-se no caminho sem se saber onde e Lopo
de Abreu chegou a Lisboa nove
dias antes de Lopo Soares.
Lopo Soares chegou a Lisboa com toda a frota no dia 22 de Julho deste ano de 1505,
a quem o rei Dom Manuel fez muita
honra.
Diogo
Fernandes Pereira,
capitão da nau de Setúbal que partiu do reino na capitania de António de
Saldanha, chegou a Cochim estando já Lopo Soares de partida pelo que não pôde fazer
carga, senão depois das outras naus acabarem de carregar. Entrou no porto de Lisboa poucos dias depois de Lopo
Soares.
Este ano foi aquele em que, até ao
momento, mais especiarias e outras riquezas vieram da Índia a estes reinos
porque Lopo Soares partiu de Lisboa com treze naus e entrou com catorze,
pois Duarte Pacheco Pereira veio com
a sua nau de que era capitão sob a bandeira de Afonso de Albuquerque, partindo
de Lisboa no dia 06 de Abril de 1503 e com a nau de Diogo Fernandes Pereira
foram quinze. Duarte Pacheco Pereira veio muito contra a vontade do rei
de Cochim que pediu muitas vezes a Lopo Soares que lho deixasse lá para
segurança da sua pessoa e do reino.=
p.148
Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal
Lagos,
11 de Junho de 2017
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