segunda-feira, 10 de julho de 2017

O Infante Dom Henrique e os Descobrimentos

CRÓNICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO 

sobre “O Infante Dom Henrique e os Descobrimentos”

CHRONICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO escrita por Damião de Goes e dirigida ao rei Dom João III; 1724; PDF - pp. 21 – 116.




Capítulo VI     
Em que o autor faz um breve discurso sobre as navegações que o Infante Dom Henrique mandou fazer para descobrir a viagem para a Índia.

O rei Dom João I, de nome, a que por suas façanhas chamamos de Boa Memória, ganhou a cidade de Ceuta aos mouros no ano de 1415 e, pouco tempo depois, o Infante Dom Henrique, seu filho, começou a mandar descobrir mares e terras. (O Infante Dom Henrique regressou de Ceuta para morar e ter residência na vila de Lagos, pois já assim tinha ficado estabelecido antes de partirem para Ceuta, já que foi na baía de Lagos que toda a frota se reuniu e daqui partiu para Ceuta com Dom Nuno Álvares Pereira. Ao regressarem toda a vila de Lagos foi reestruturada  e adaptada segundo o plano do Infante Dom Henrique à Era dos Descobrimentos que se iniciou em Lagos. Vide meu trabalhoSéculo XV – LagosHenriquina e pós Henriquina”.)
A admiração por estas navegações, na altura, foi tão grande que, só por causa disso, vieram ao reino de Portugal muitos homens letrados e curiosos. Uns vinham com intenção de ir ver estas terras, províncias e novos costumes dos seus habitantes ou também para ajudarem a descobrir outras terras com esperança do proveito que daí poderiam obter. Outros vinham somente para verem as coisas que destas novas províncias portuguesas os nossos traziam ou para escreverem o que ouviam daqueles que destas navegações regressavam e por sua capacidade e estilo divulgavam, na altura, pelo mundo os casos e acontecimentos espantosos que, cada dia, encontravam na nossa nação portuguesa.
Isto eles faziam ou de sua própria vontade ou mandados por cidades, repúblicas e príncipes desejosos de terem a certeza de tão grandes novidades. A estes somente movia a glória de poderem, com trabalhos alheios, satisfazer os seus desejos particulares e depois obtinham louvores reconhecidos e os naturais dos reinos de Portugal que alcançaram de Deus a graça para poderem escrever coisas tão memoráveis, têm maior obrigação de, com seu estudo e estilo, divulgarem estes feitos. Por isto me decidi fazer uma breve digressão nos dois capítulos seguintes do que pude saber do que foi feito por meio e engenho do Infante Dom Henrique nestes novos descobrimentos até ao nascimento do príncipe Dom João.
 Isto me pareceu adequado fazer nesta crónica, pois é de príncipe destes reinos de Portugal que depois foi rei se encontrar em resumo aquilo que, muito por extenso, deveria ter sido escrito na terceira parte da crónica do rei Dom João I, depois da tomada de Ceuta até ao seu falecimento que foram cerca de dezoito anos. Destes dezoito anos não vi coisa que Fernão Lopes (que foi cronista e guarda da Torre do Tombo e compôs de novo esta crónica do rei Dom João) escrevesse e a terceira parte eu ousaria afirmar que ele fez, mas como este trabalho se lhe roubou, não me atreveria a dizer por honra dos que depois dele escreveram e já que Gomes Eanes de Zurara que lhe sucedeu no ofício de cronista e guarda mor da Torre do Tombo nos dois livros que escreveu sobre os feitos do conde de Vila Real, Dom Pedro de Menezes, primeiro capitão de Ceuta (que acabou no ano de 1463, trinta anos depois do falecimento do rei Dom João I) trato brevemente na segunda parte destes dois livros, no capítulo 26, acerca do ano de 1430, algumas coisas que tocam os assuntos do reino de Portugal.
Contudo nestas novas navegações que já, nesta altura, se tinham começado não fala nada, ainda menos na crónica do conde de Viana, Dom Duarte, capitão de Alcácer que ele escreveu depois da crónica do conde Dom Pedro de Menezes, seu pai; mas pode ser que o fizesse na história da Guiné que ele diz que compôs e de que não há notícia e se não o fez nesta história nem na história dos condes, creio que seria pelo Fernão Lopes o ter feito na História Geral do Reino de Portugal que muitas vezes Gomes Eanes de Zurara refere nestas crónicas dos condes Dom Pedro e Dom Duarte. Fernão Lopes continuou esta História Geral até à morte do Infante Dom Pedro e, desta altura por diante, se pode crer que Gome Eanes de Zurara a tenha continuado porque viveu muitos anos depois do rei Dom Afonso V ter tomado a vila de Alcácer aos mouros, onde o mesmo rei o mandou para lá para escrever os feitos que este conde de Viana, Dom Duarte de Menezes e os da sua companhia faziam em África e lhe escrevia cartas por sua própria mão assaz bem escritas e copiosas por serem de rei, favor muito notável e para os que têm ofício de escrever tomarem cuidado de o fazerem como a feitos de tão humanos e esclarecidos reis convém.
Já que o mesmo Gomes Eanes de Zurara, querendo dar a entender que compôs esta terceira parte da Crónica do Rei Dom João I ou a Crónica do Rei Dom Duarte, seu filho, dizendo no penúltimo capítulo da História de Ceuta que poria neste livro (qualquer deles que fosse) muitas coisas acerca das grandes virtudes deste rei se não tivesse escrito as suas honradas exéquias com todas as outras cerimónias que pertencem à sua sepultura (cuja história acabou de escrever em Silves, no Algarve, no ano de 1440, já na época do rei Dom Afonso V, já passados treze anos desse o início do seu reinado). É importante que se diga que ele não compôs a terceira parte da Crónica do dito rei Dom João nem a do rei Dom Duarte, mas quanto às exéquias ele, de facto, escreveu-as porque o capitulo V da Crónica do rei Dom Duarte é seu e também todos as exposições que na dita crónica estão escritas sobre a ida a Tânger o que se conhece bem e vê no estilo e ordem costumada do mesmo Gomes Eanes de Zurara, já que algumas palavras e termos antigos que ele usava no que escrevia com explicações prolixas e cheias  de metáforas ou figuras de estilo que, no estilo histórico não têm lugar, estejam mudadas para um modo mais moderno de falar.
Assim que por faltarem os acontecimentos destas novas navegações, me pareceu necessário prosseguir na minha intenção e declarar nesta história aquilo que convinha ser escrito sobre as tais navegações passadas - porque nas crónicas do rei Dom João e do rei Dom Duarte, seu filho, - nenhuma coisa se trata no que toca a estes descobrimentos e na Crónica do Rei Dom Afonso V, seu neto, num só capítulo, onde se escreve o falecimento do Infante Dom Henrique conta o cronista brevemente algumas coisas das que se passaram até então. Esta negligência e notável descuido me constrange com razão a escrever tudo o que for necessário a feitos tão notáveis e tão dignos de serem celebrados.=         p. 26

Capítulo VII     
Das coisas que moveram o Infante Dom Henrique a querer descobrir terras e mares pela costa de África até chegar à Índia e da certeza que teve para o mandar fazer.
As Primeiras Caravelas do Infante Dom Henrique

Quatro anos depois do rei Dom João I ter tomado Ceuta aos mouros, eles por ordem do rei de Granada, chamado o Esquerdo, a vieram cercar no mês de Agosto com grande poder. A este cerco, o rei Dom João I mandou muita e muito nobre gente do seu reino e por capitão foi o Infante Dom Henrique, seu filho.
Além dele ser um cavaleiro muito corajoso também era muito dado ao estudo das letras principalmente da Astronomia e Cosmografia e para melhor exercitar tão virtuosas artes, depois que regressou do cerco de Ceuta, escolheu para sua morada e residência uma parte do Algarve, (a vila de Lagos e para lugar de estudo prático, o promontório no cabo de São Vicente), chamado pelos antigos históricos Sacrum Promontorium que no nosso português vulgar quer dizer Cabo Sagrado donde derivou o corrupto nome de Sagres, que para mais verdadeira imitação da língua latina, donde a nossa língua traz a sua origem, se deve chamar, mudando o G em C, Sacres. (Acontece que a toponímia tem muito mais a ver com a linguagem oral do que com a escrita principalmente naquele tempo em que as populações eram analfabetas e as palavras eram transmitidas oralmente como lhes soava e certamente soava-lhes muito mais a Sagres do que a Sacres). Neste sítio de Sagres fundou o Infante Dom Henrique (as instalações para as aulas práticas sobre Astronomia e Cosmografia da sua Escola de Estudos Superiores com aulas teóricas nas instalações de Lagos, na então rua Direita e prédios de que era proprietário Dom Nuno Álvares Pereira, onde era também a residência do Infante Dom Henrique e com professores catedráticos da Universidade de Lisboa com quem o Infante Dom Henrique estabeleceu protocolo. As cozinhas nas instalações do promontório eram essenciais, pois o céu estuda-se principalmente à noite e é necessário muito tempo. Deslocavam-se em cavalos de Lagos para o promontório e vice-versa.) a que chamou Terça Nabal e dali determinou mandar navios ao longo da costa de África com intenção de chegar ao fim de seus pensamentos que era descobrir destas partes ocidentais a navegação para a Índia Oriental que sabia por certo que fora já em outros tempos achada. Foi com esta certeza que assim alcançou com o trabalho do seu estudo que o fez empreender tão grande empresa e não por inspiração divina como algumas pessoas dizem e não sei com que motivos o afirmam porque se fora inspiração divina por ventura que sem tantos trabalhos como teve em sua vida alcançara o Infante o que tanto desejava. Destes trabalhos estas navegações nunca careceram tanto em vida do Infante como depois até de todo serem descobertas.
Assim é mais de crer que a certeza deste empreendimento alcançou o Infante Dom Henrique dos verdadeiros autores que continuamente estudava, acreditando no que escreviam como coisas escritas por homens e assim acreditava e duvidava como se deve fazer a todas as coisas que dos homens e de seus juízos procedem, nas quais com certeza está sempre a dúvida.
Com esta certeza, o Infante Dom Henrique, a partir da vila de Lagos, começou a mandar descobrir com naus armadas à sua custa porque sabia, do que tinha lido, como depois do cerco de Troia, segundo conta Aristonico, que Menelaio, saindo pela boca do Estreito de Gibraltar navegara tanto pelo mar oceano até chegar ao mar Vermelho que, segundo alguns cosmógrafos antigos dizem, contém em si os mares Arábico e Pérsico com toda a costa que entre ambos há e a que passa adiante do mar Pérsico até chegar à Índia. Por este mar Vermelho, Menelaio fez o seu caminho até chegar à Índia e também o Infante Dom Henrique sabia que Enone, capitão dos cartaginenses, navegara tanto pela costa de África até chegar quase abaixo da linha equinocial. Do discurso que deixou escrito do seu caminho e sinais que deu do que vira se mostra claramente que passou além da serra a que agora chamam Leoa e também tinha por certo o que Heródoto, gravíssimo autor a que Cícero chama “Pai da História” escreveu da navegação que Necto, rei do Egipto, mandou fazer por certos fenícios, homens experimentados nas coisas do mar que, partindo do mar Vermelho, navegaram tanto até chegarem ao mar austral e daí vieram ter ao Estreito de Gibraltar, donde tomaram seu caminho para o Egipto, onde chegaram passados já dois anos do tempo que havia que partiram do Mar Vermelho.
Além deste grande testemunho, o Infante Dom Henrique tinha outro do mesmo autor de como, por mandado do rei Xerxes navegara Sataspes do Mar Mediterrâneo até pelo oceano chegar ao promontório ou cabo de África e que, irritado da prolixidade do caminho e falta de mantimentos, regressara ao Egipto. Nem menos ficou por ler ao Infante em Estrabo de como no mar da Arábia, estando ali César, filho de Augusto, se acharam pedaços de naus espanholas que, com tormenta, o mar lançara à costa nem o que o mesmo Estrabo, Plínio, Cornélio Nepos e Pompónio Mela escrevem de Eudoxo acerca destas navegações.
 Com o oráculo destes testemunhos e de outros mais que o Infante Dom Henrique teria sabido por muitas informações que cada dia tomava de mouros alarves e azenegues, práticos nas coisas de África, determinou mandar descobrir de novo estas navegações de que a memória era já entre os homens perdida.=    p. 30

Capítulo VIII     
Em que sumariamente se trata das navegações que, por mandado do Infante Dom Henrique se fizeram e terras que se descobriram até ao nascimento do príncipe Dom João.

Regressado o Infante Dom Henrique do cerco de Ceuta, logo no mesmo ano, que foi 1419, mandou, a partir da vila de Lagos, por duas vezes navios a descobrir que passaram 60 léguas além do cabo Não que era o extremo e o mais longe que então se navegava da Europa pela costa de África.
Regressados estes navios, João Gonçalves, Zarco de alcunha e Tristão Vaz Teixeira pela vontade que viam no Infante Dom Henrique que eram da sua Casa, Casa Henriquina sediada na vila de Lagos, pediram-lhe que fosse sua mercê servir-se deles em tal empreendimento.
O Infante Dom Henrique com prazer agradeceu-lhes muito, mandando logo armar um navio a que deu a capitania a João Gonçalves Zarco por ser mais velho do que Tristão Vaz Teixeira. Estes, com um temporal que apanharam, sem chegarem à costa de África navegaram tanto ao pego que, acabada a tormenta, se encontraram à vista de uma ilha pequena e deserta que logo foram explorar e, pela mercê que Deus lhes fizera, além de os salvar de tamanha tempestade, em lhes deparar tal ilha lhe puseram o nome de Porto Santo  como se chama agora e com esta notícia regressaram ao Infante Dom Henrique, a quem logo Bartolomeu Perestrelo, da sua Casa, pediu a sua capitania, desta ilha, que em companhia destes João Gonçalves e Tristão Vaz a foi povoar por ser ilha de bons ares e boas águas de fontes. Pouco tempo depois, andando Bartolomeu Perestrelo no reino, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira acordaram de, em barcos, irem procurar uma sombra de nuvens que muitas vezes viam não muito longe daquela ilha onde estavam. Partiram em tão boa hora que, com pouca dificuldade, lhes quis Deus deparar outra ilha também deserta muito maior do que a ilha do Porto Santo, à qual, por ser cheia de bosques, lhe puseram o nome de Madeira.
Com este tão próspero sucesso, vieram à vila de Lagos encontrar-se com o Infante Dom Henrique, a quem aprouve em galardão de tão boas novas lhes fazer a ambos mercê dela, dando a capitania do lado do Funchal a João Gonçalves Zarco e a do lado de Machico a Tristão Vaz Teixeira. Estes por si e com suas valias e bens começaram a povoar esta nobre e rica ilha da Madeira no ano de 1420. Aos seus moradores e aos moradores de Porto Santo e de outras ilhas deu o rei Dom Afonso V privilégio por autoridade do Infante Dom Pedro, seu tutor e governador, concedido no ano de 1444, para de tudo o que delas trouxessem a estes reinos não pagassem dízima nem portagem.
Do ano de 1420 até ao ano de 1433, ano em que faleceu seu pai, o rei Dom João I, não achei coisa que toque a estas navegações. (Certamente porque o seu pai ficou doente, estava-se a fazer o povoamento da Madeira e Porto Santo e o Infante Dom Henrique queria acompanhar o seu pai nestes últimos tempos da sua vida e foi viver para Lisboa, junto de seu pai. Certamente tinham mutos motivos de conversa sobre os descobrimentos. Após o falecimento de seu pai, o rei Dom João I, o Infante Dom Henrique regressou à vila de Lagos e logo foi armado um navio e nesse mesmo ano) 1433, foi o ano em que Gil Eanes, natural de Lagos, Algarve, da Casa do Infante Dom Henrique, descobriu o cabo Bojador e logo no ano seguinte, 1434, o Infante Dom Henrique mandou Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro, a descobrir mais adiante e em sua capitania com o mesmo Gil Eanes passaram além deste cabo Bojador até onde agora se chama a Angra dos Ruivos, nome que lhe puseram pela grande multidão deles que ali encontraram e deste lugar, por já lhes faltarem mantimentos regressaram ao reino de Portugal sem encontrarem gente com quem pudessem comunicar, salvo que, naquele lugar de Angra dos Ruivos, encontraram rasto de camelos e caminhos trilhados que davam sinal de seguida de cáfilas ou recovas.
Logo no ano seguinte, 1435, o Infante Dom Henrique voltou a mandá-los descobrir terras e passaram desta Angra dos Ruivos a uma enseada, onde mandaram a terra dois rapazes da Casa do Infante, um de nome Diogo Lopes de Almeida e o outro de nome Heitor Homem para, em dois cavalos, irem explorar a terra. Eles encontraram 19 homens baços com quem pelejaram, mas os nativos afastaram-nos muito bem com muitas azagaias e dardos de arremesso, ferindo um deles num pé e assim se recolheram à praia e dali ao navio e com estas novas regressaram ao reino de Portugal, dando a esta terra o nome de Angra dos Cavaleiros.
Deste ano de 1435 até 1440, tanto pelo falecimento do rei Dom Duarte seu irmão, que foi no ano de 1438, como pelo assunto do cativeiro do Infante Dom Fernando e tutorias do rei Dom Afonso V, o Infante suspendeu mandar mais navios a esta conquista o que também teve por causa ter nova certa que se achava gente armada e destra em peleja. Assim para este empreendimento se requeriam mais navios e mais gente. Segundo se pode crer, o Infante Dom Henrique decidiu poupar estes cinco anos por dantes ter feito muitas despesas nestas navegações e para, dali por diante, prosseguir mais à sua vontade nos seus elevados e reais empreendimentos.
Logo no ano de 1441, o Infante mandou Antão Gonçalves e Nuno Tristão, da sua Casa, em dois navios. Nuno Tristão descobriu até ao Cabo Branco, nome que ele deu a esta terra por ser alva e arenosa. Antão Gonçalves descobriu terras até ao Cabo a que deu o nome de Cabo Cavaleiro porque neste lugar, pelejando como cavaleiro, aprisionou alguns negros que foram os primeiros que vieram (à vila de Lagos), ao reino de Portugal.
Destes lugares, estes dois capitães regressaram, cada qual com sua rota. O Infante Dom Henrique ficou muito alegre com a sua vinda por causa da presa que Antão Gonçalves trazia consigo por já começar a recolher fruto de seus trabalhos e despesas e ver aquelas almas dantes perdidas, ganhas à fé do nosso Salvador Jesus Cristo que receberam logo o baptismo.
Sabido como estes dois capitães descobriram terra, onde encontraram gente com que se podia comunicar ou por via da paz ou por via da guerra, o Infante Dom Henrique, que dantes com vários juízos de diversas pessoas era por muitos repreendido por fazer tamanhos e tão elevadas despesas sem ter recolhido proveito algum que se igualasse a tão grandes custos, começou desde então a ser por todos muito louvado, dizendo-se que de um tal príncipe e tão prudente se não podia esperar coisa senão de que os reinos houvessem de receber proveito.
Esta notícia foi tão divulgada que logo alguns aventureiros portugueses, a maior parte do Algarve, naturais de Tavira, se ofereceram para, às suas custas, o irem servir e buscar suas aventuras e da boa fortuna que Deus lhes desse lhe pagarem seus direitos como senhor a quem aquelas conquistas pertenciam.
Passado um ano sobre o descobrimento que fizeram Antão Gonçalves e Nuno Tristão, em 1442, o Infante Dom Henrique acabou de armar seis caravelas em Lagos que tiveram por capitão um cavaleiro da Casa do Infante Dom Henrique de nome Lançarote de Freitas. O capitão Lançarote de Freitas, seguindo sua viagem, chegou com toda a frota na véspera da festa do Corpo de Deus do ano de 1443 à Ilha das Garças onde tomaram muitas delas para seu refresco e daí foram ter à Ilha de Nar, donde e de outras vizinhas trouxeram à vila de Lagos uma grande presa de negros.
No ano seguinte, 1444, o Infante Dom Henrique mandou por capitão Vicente Dias de Lagos a descobrir e na sua companhia foi um fidalgo veneziano de nome Luís de Cadamosto, muito curioso por ver o mundo; Vicente de Lagos navegou até ao Rio de Gambra.
Neste mesmo ano, 1444, Gonçalo de Cintra, capitão de uma nau do Infante foi ter às Ilhas de Arguim onde o mataram e mais alguns da sua companhia. Luís de Cadamosto escreve num Itinerário que fez que já neste tempo o Infante Dom Henrique mandava fazer o castelo de Arguim e que, seguindo sua viagem, encontraram no dito lugar muitos oficiais que trabalhavam naquela construção. Isto é bem ao contrário do que dizem algumas pessoas que sobre estas navegações escreveram. (Damião de Goes esquece que os navios partiam da vila de Lagos, onde residia o Infante Dom Henrique e a sua Casa (Henriquina) e, após o falecimento do rei Dom João I, também partiam de Lisboa e havia uma certa rivalidade entre Lagos e Lisboa e Lisboa estava com dificuldade em se afirmar, sendo a capital.) Afirmavam que, no ano de 1461, alguns meses após o falecimento do Infante Dom Henrique, o rei Dom Afonso V mandou fazer este castelo por Soeiro Mendes, fidalgo da Casa deste rei, morador em Évora, partindo de Lisboa a descobrir terras, mas parece que seria mais acabá-lo e não começar de novo, pois o Infante Dom Henrique foi o autor desta obra.
Luís de Cadamosto afirma que, naquela altura, os nossos tinham navegado até ao rio do Senegal, a que os da terra chamam Sonedech e que havia já um ano que Cabo Verde estava descoberto, 1460. Cabo Verde foi primeiramente descoberto no ano de 1445, por Dinis Fernandes, escudeiro do rei Dom João I, partindo de Lisboa e que nesta paragem tomou numa almádia alguns negros que consigo trouxe e que foram os primeiros que vieram a Lisboa, Portugal.
Neste ano de 1444, Vicente de Lagos com quem ia Luís de Cadamosto, partiram da vila de Lagos e navegando para o rio de Gambra, encontrou um fidalgo genovês de nome Antonieto de Nolle que, com licença do Infante Dom Henrique, ia também a descobrir e ambos os navios juntos chegaram ao rio de Gambra e dali sem passarem adiante, regressaram à vila de Lagos, ao reino de Portugal.
No ano seguinte, 1445, estes mesmos com licença do Infante Dom Henrique voltaram a fazer a viagem numa nau que o Infante Dom Henrique lhes mandou armar em Lagos, Algarve e desta vez estes fidalgos, Vicente Dias de Lagos, Luís de Cadamosto e Antonieto de Nolle, descobriram as Ilhas de Cabo Verde, dezasseis dias após a partida de Lagos e puseram à primeira que viram o nome de Boavista e à outra Santiago e São Filipe por chegarem a ela no primeiro dia de Maio, dia dedicado a estes santos. À terceira a que foram puseram o nome de Maio para lembrar o mês e o dia em que as descobriram (03 de Maio). O rei Dom Afonso V fez doação das Ilhas de Cabo Verde e das Terceiras ao Infante Dom Fernando, seu irmão. Destas ilhas, eles foram ter ao rio Rá a que nós chamamos de Rio de Caramansa nome que lhe deram porque o senhor daquela terra se chamava assim. Daí navegaram até Cabo Vermelho e daí regressaram à vila de Lagos, ao reino de Portugal. Estas ilhas foram doadas pelo rei Dom João II, no ano de 1489, a Dom Manuel, duque de Beja e de Viseu que depois foi rei muito próspero e feliz no reino de Portugal e chamam-se por ordem, a primeira Santiago e as outras Maio, São Cristóvão do Sal, Ilha Brava, São Nicolau, São Vicente, Rasa Branca, Santa Luzia e Santo António.
Voltando às nossas navegações, neste mesmo ano de 1445, Antão Gonçalves descobriu, num navio do Infante Dom Henrique, um rio a que chamam do Ouro. Também em 1445, partiram 14 caravelas juntas a descobrir. O Infante Dom Henrique deu a capitania desta armada ao capitão Lançarote de Freitas, da vila de Lagos que com toda a sua companhia passou vários casos e fortunas antes de chegar a Cabo Verde e por isso algumas das caravelas regressaram a Lagos sem poderem seguir viagem e ele com duas caravelas só alcançou a Ilha de Tider onde tomou 59 negros e regressou à vila de Lagos.
No ano de 1446, Nuno Tristão chegou até ao Rio Grande que é 60 léguas além de Cabo Verde e dali passou a 20 léguas mais adiante e entrou noutro rio aonde vieram atacá-lo os da terra em 13 almádias com muitos dardos e flechas com veneno com que o mataram e mais dezoito homens da sua companhia. Os que ficaram no navio regressaram à vila de Lagos e por respeito àquele infortúnio se chama àquele rio o Rio de Tristão.
Também no ano de 1446, Álvaro Fernandes, sobrinho do capitão do Funchal, descobriu o Cabo dos Mastos e passou cem léguas além de Cabo Verde. Nesta paragem houve em terra vitória sobre o senhor dela que o matou com suas próprias mãos e desta paragem foi ter à foz do Rio de Tabite que fica além do rio de Tristão 22 léguas e dali regressou à vila de Lagos.
Deste tempo ao ano de 1455, ano em que o rei Dom João nasceu, não encontrei nada escrito nem por memória de qualidade para a mencionar, salvo que já em 1455, estavam descobertas as ilhas dos Açores; o que se pode afirmar por testemunho que disso dá um privilégio que o rei Dom Afonso V deu aos moradores da ilha de São Miguel porque lhes concedeu que não pagassem dízima de tudo o que trouxessem ao reino de Portugal. Era senhor desta ilha o Infante Dom Pedro irmão do Infante Dom Henrique e o privilégio foi concedido no ano de 1447, dois anos antes da sua morte.
Assim por todas as mais coisas que até este tempo passaram nestas navegações serem de pouca substância como também o são algumas que aqui pus mais por representarem a antigüidade delas do que por ornamento que possam trazer à nossa história, fica este assunto concluído.=       p. 41   

Capítulo IX     
Em que o autor trata de algumas particularidades das ilhas dos Açores e de uma antigualha que nelas se achou.

Constrange tanto o testemunho das coisas antigas aos escritores que por delas o fazerem se não o fazem muito a propósito do que tratam, são forçados a saírem um tanto fora da ordem do que escrevem para assim iluminarem o descuido e esquecimento em que a antigüidade dos tempos as pôs. E porque eu a esta lei e obrigação tão honesta não posso fugir, é necessário escrever algumas particularidades das ilhas dos Açores, já que foram descobertas antes do nascimento do rei Dom João, para descobrir uma antigualha bastante antiga que se achou numa destas ilhas nos nossos dias.
Estas ilhas chamam-se dos Açores pela muita criação de açores que havia nelas quando foram descobertas e ainda há, mas não tantos como costumava o que causam mal às povoações que nelas se foram formando e por isso os açores são mais alvos para abate do que os da Irlanda, mas não são melhores porque os açores da Irlanda são mais ligeiros e de muito melhor ralé. Estas ilhas situam-se a leste – oeste da rocha de Cintra e estão perto da nona ilha, a saber São Miguel que foi a primeira que se encontrou e após esta, foi descoberta a ilha de Santa Maria e depois a ilha Terceira que se chama de Jesus Cristo e logo São Jorge, Graciosa, Faial, Pico, Flores e Corvo. Estas ilhas são muito temperadas de inverno e verão e muito viçosas por fontes e ribeiras de muito boas águas e frutas em especial de espinho de toda a sorte. São tão abundantes de pão que muitas vezes os lavradores recolhem de um alqueire de sementes 20 e 30 alqueires que se mandam para o continente e outras partes. Faz-se nelas muito pastel que se leva para a Flandres, Inglaterra e outras províncias. São muito abastadas de carne, peixe e criação de gado. Há nelas muitas matas de cedros, loureiros e faias e um pau vermelho a que chamam “sanguinho” que se escolhe muito para obras marchetadas.
Destas ilhas a que mais está ao norte é a ilha do Corvo que tem uma légua de terra. Os mareantes chamam-lhe a ilha do Marco porque ela tem uma serra alta se demarca quando vêm para qualquer das outras ilhas. No cume desta serra, da parte do noroeste, encontrou-se uma estátua de pedra posta sobre uma laje que era um homem em cima de um cavalo em osso e o homem tinha uma capa como bedém, sem barrete com uma mão na coma do cavalo e o braço direito estendido e os dedos da mão encolhidos, excepto o segundo dedo a que os latinos chamam índex com que apontava contra o ponente. Esta imagem que saía toda maciça da mesma laje mandou o rei Dom Manuel tirar pelo natural por um homem da sua Casa de profissão desenhador por nome Duarte de Armas e depois que viu o desenho, mandou um homem engenhoso, natural da cidade do Porto que andara muito em França e Itália que fosse a esta ilha para com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha. Este, quando regressou da ilha, disse ao rei que a encontrara desfeita devido a uma tempestade que acontecera no inverno anterior.
A verdade é que a quebraram por mau manuseamento e trouxeram pedaços dela: a cabeça do homem e o braço direito com a mão e uma perna, a cabeça do cavalo e uma mão que estava dobrada e levantada e um pedaço de uma perna. Tudo esteve no guarda-roupa do rei alguns dias, mas o que se fez depois com estas coisas ou onde se puseram, eu não o pude saber.
Esta ilha do Corvo e a ilha de Santo Antão pertenciam a João da Fonseca, escrivão dos bens do rei Dom Manuel e dele as herdou seu filho, Pero da Fonseca, escrivão da chancelaria do mesmo rei, Dom Manuel e de Dom João III, seu filho. No ano de 1529, Pero da Fonseca foi vê-las e soube pelos moradores que na rocha abaixo daquela onde estivera a estátua, estavam entalhadas na mesma pedra da rocha umas letras e, por o lugar ser perigoso para se poder ir aonde o letreiro está, fez descer alguns homens por cordas bem atadas e estes imprimiram as letras que ainda a antigüidade não tinha feito desaparecer, em cera que para isso levaram. Contudo as que trouxeram impressas na cera já estavam muito gastas e quase sem forma assim que ou por não conhecerem ou por na companhia não haver pessoa que conhecesse para lá da língua latina e a este facto nenhum dos presentes soube dar razão nem do que as letras diziam nem ainda puderam conhecer que letras fossem.
Espanta-nos tanto esta antiqüissima antigualha por se encontrar no lugar em que se achou que se pode com razão dizer o que diz Salomão fizeram o que nós agora fazemos”. Se se acredita nas opiniões de alguns “não haver coisa que já não tivesse sido criada e que houve outros que já filósofos ou se aos históricos gentios, nesta parte, se deve dar algum crédito facilmente se poderia cair em muitos erros se deles não nos desenganara a Sagrada Escritura, dos quais se não pode escusar Pompónio Mela, gravíssimo escritor latino no seu primeiro livro, falando da antigüidade dos egípcios, onde escreve que tinham histórias certas de mais de treze mil anos e o mesmo faz Heródoto no segundo livro da sua história que escreveu em grego muito antes de Pompónio e ambos dizem que depois que os egípcios começaram a ter nome e a ser conhecidos que o percurso do céu se mudara quatro vezes, pondo-se o sol duas vezes no lugar onde agora nasce. Estrabo, que há bem mil e quinhentos anos escreveu em língua grega, não se pode escusar de outro tal erro como foi dizer no Terceiro Livro da sua Geografia que os turdetanos ou tordolos, que é toda a terra da Andaluzia, Algarve e Portugal, começando pelos montes de Gibraltar até ao rio Lima, que foi sempre a gente de Espanha que mais soube e mais usou leis e continuou estudos e que estes tinham histórias certíssimas de há seis mil anos.
Não deixarei de escrever acerca desta antigualha a opinião que disso tenho. Esta gente que veio ter a esta ilha do Corvo e nela deixou esta memória poderia ser da Noruega, Gótia, Suécia ou Islândia porque nos tempos passados e muito antes que os habitantes destas províncias fossem cristãos, havia entre eles muitos corsários e tão poderosos que aos males que faziam pelo mar, oceano e da Alemanha se podia muito dificilmente resistir do que dão testemunho Saxo Gramático, antigo escritor e Joanes Magnus Gotos, arcebispo de Uppsala no reino da Suécia, homem com quem naquelas partes eu tive estreita amizade e depois em Itália de cuja vida e infortúnios trato na deploração que em língua latina compus da gente e província lapiana, da Lapónia. Estes escritores ambos nas crónicas que escreveram sobre as coisas aquilonares tratam assaz bem destes corsários e o maior argumento que se pode ter desta opinião é que todas estas nações costumavam fazer entalhar e esculpir todos os seus feitos, acontecimentos e façanhas em rochas de pedra viva para maior lembrança e perpetuidade dos casos que lhes aconteciam como naquelas províncias todas, hoje em dia, se vê e acham em muitas partes imagens delas e histórias entalhadas, abertas, esculpidas e escritas em rochedos e outras pedras altas e de grandeza maravilhosa.
E esta antigüidade desta ilha do Corvo e do toque destas outras, pode-se acreditar que algum destes corsários tivesse vindo ter desgarrado da fortuna do mar a estas ilhas e por as encontrar desertas e desabitadas quisesse deixar de si aquela memória. Isto facilmente se tiraria a limpo se a esta ilha fosse ter alguma pessoa ou a mandassem que soubesse as línguas destas terras o que se faria com pouca dificuldade se os príncipes e senhores que possuem as províncias fossem tão curiosos em saber com o são de haver e lograr os bens e rendas que delas lhes resultam.=      p.47

Capítulo X     
Do apercebimento que o rei Dom Afonso V fez para passar em África a tomar a vila de Alcácer e perseguir os mouros.

Foi o Papa Calisto III, homem zeloso do bem e desejoso de, por seu intermédio, se restituir a Terra Santa à fé em Jesus Cristo, sobre este assunto mandou legados a todos os reis cristãos, concedendo-lhes para isso Cruzada. Entre estes legados veio ao rei Dom Afonso V o bispo de Silves, homem de muita autoridade na Corte de Roma, de cujas mãos, em nome do Papa, o rei aceitou a Cruzada, desejoso de nisso servir a Deus.
Dom Afonso V logo fez grandes preparações de naus e navios com doze mil homens portugueses de guerra além da marinhagem e gente de serviço para ele em pessoa também ir neste empreendimento. E porque ou por inconvenientes do tempo ou pela pouca vontade que os outros reis cristãos para isso tiveram este assunto não se concretizou. Como Dom Afonso V era naturalmente inclinado para a guerra contra os mouros determinou com esta armada e companhia dobrada passar a África e tomar alguma vila aos infiéis. Tendo conselho sobre isso, determinou ir sobre Alcácer Ceguer e, porque a armada era grande e naquele tempo Lisboa tinha uma epidemia de peste, o rei Dom Afonso V embarcou em Setúbal e o Infante Dom Henrique embarcou em Lagos, Algarve e o marquês de Valença foi fazer na cidade do Porto o mais desta armada.
Quando a armada do rei estava pronta partiu de Setúbal a um sábado, último dia de Setembro de 1458, levando consigo o Infante Dom Fernando, seu irmão e Dom Pedro, filho do Infante Dom Pedro, que o veio servir com gente muito nobre e bem preparada para os feitos de guerra e logo na terça-feira seguinte, dia 03 de Outubro, dobraram o Cabo de São Vicente e vieram ter a Sagres, onde o Infante Dom Henrique o estava esperando numa caravela e dali o rei e todos foram para Lagos, onde o rei esteve oito dias até que o marquês de Valença veio com a sua armada do Porto. Assim que ele chegou e outra fustalha que faltava, o rei embarcou em Lagos, numa quinta-feira, dia 17 de Outubro, levando consigo 26 mil homens portugueses de peleja e duzentas e oitenta naus, galés e outros navios de carga e serviço e com tempo feito partiu, seguindo sua viagem para vir concretizar os seus elevados pensamentos, intenção boa e católica.
Neste ano de 1458, no dia dois de Maio nasceu Dona Leonor, filha do Infante Dom Fernando, irmão de Dom Afonso V  e da Infanta Dona Beatriz, que depois foi rainha de Portugal.=    p. 50

Capítulo XI     
Da antigüidade  e sítio da vila de Alcácer e do conselho que o rei teve antes de a cercar.

Mansor, rei e pontífice de Marrocos como o contam os historiadores árabes, foi rei muito guerreiro e quase todos os anos passava de África a Granada, Espanha para daí com seus exércitos fazer entradas nas terras dos cristãos e porque no caminho de Ceuta, onde costumava vir embarcar havia muitos estreitos dificultosos e ásperos por onde o seu exército e gente não podiam passar sem terem muito trabalho, determinou edificar de novo a vila de Alcácer Ceguer a que os mouros chamam Casar Ezzaghir que quer dizer passo pequeno e a causa de a edificar naquele sítio foi por ter lugar bem assentado a três léguas de Espanha e a melhor passagem que há no Estreito mais perto e com bom porto próprio para ali formar as suas armadas e embarcar a sua gente com muito menos trabalho do que em Ceuta. A vila de Alcácer, pelo bom sítio que tinha, logo se povoou de gente do mar, mercadores e outra gente de que a maior parte se sustentava de tecer e fazer panos de linho muito bons e por sempre haver nela gente do guerra, principalmente nos negócios de mar, nos quais eram muito experientes e acostumados a fazer mal e dano aos cristãos da Espanha e a outros que navegavam para aquele estreito. O rei Dom Afonso V decidiu ir atacá-la mais por aquele motivo do que nenhum outro.
No sábado seguinte da quinta-feira da partida de Lagos, se encontrou antemanhã com a sua armada diante da barra de Tânger e porque para ir para Alcácer o tempo não servia por ser escasso, esteve ali esperando aquele dia por alguns navios que faltavam da sua frota e no domingo seguinte, como os pensamentos do rei eram elevados vista a grandeza e nobreza da cidade de Tânger, decidiu combatê-la se nos Infantes e nos do seu Conselho achasse a mesma vontade. Reuniram-se logo na nau real e Dom Afonso V falou-lhes desta maneira:
- Não vos pareça mudança de conselho o motivo que vos fiz aqui vir, senão o desejo de adquirir mais honra e glória para vós e para mim. Por isso vos quero descobrir a minha intenção que é, se assim vos parecer, de atacar esta cidade de Tânger porque, além do ganho que nisso fazemos, tomarmos vingança do dano e desbarato que os nossos nela receberam como muito bem todos sabeis. Por esta vingança ser necessária à nossa honra e eu ter por muito certo que os moradores de Alcácer assim que souberem que Tânger está por nós tomada, de sua vontade nos virão apresentar a vila de Alcácer. Por isto, decidi dar-vos disto conta. Contudo porque não sei se me cega o desejo de tamanha vitória, para confirmar a minha intenção, vos peço e rogo que sem nenhum pejo, saiba de vós as vossas razões porque a vossos pareceres e conselho me submeterei de todo o meu juízo, como a pessoas em quem tanto confio e devo por boas razões confiar.
Acabando o rei a sua fala, o Infante Dom Henrique como mais velho ( com 64 anos, nasceu a 04/03/1394) e em quem, mais do que nos outros, cabia a resposta como seu tio e muito experiente nas coisas da guerra e especialista nos casos de Tânger em que estivera presente lhe disse:
- Senhor, vossas razões dão sinal do vosso invencível ânimo e eu não duvido que onde Vós estais possa haver coisa difícil para se poder combater e ganhar. Da fortaleza de Tânger e dificuldades que há em lá quererdes entrar, não falo nem trato nada, senão em Vos lembrar que, já que sois rei e bom capitão isso não basta para poderdes pôr em prática o que quereis fazer porque para a execução da Vossa vontade, mesmo que não vos falte poder que aqui tendes com muito boa gente de guerra, vos faltará por ventura a vontade dessa mesma gente sem a qual, mesmo que tantas campanhas tivésseis como o rei Xerxes trouxe consigo quando passou a Grécia, pouco vos aproveitaria, visto que os casos da guerra consistem mais na força da vontade que na dos corpos e porque esta vossa gente toda partiu de Portugal para vos servir no feito de Alcácer que é a vila que lhes destes a entender que queríeis atacar e para isso estão todos prontos, com as vontades tão fixas e tão prontas que não há na vossa companhia soldado por de pouca estima que seja, por de sua vontade, não se tenha persuadido ser Alcácer já ganho por vós. Se agora souberem que tomais outro conselho, havei por certo que além de se lhes mudarem as vontades para o combate desta cidade, cuidando nos casos adversos que aos vossos aqui tem acontecido que de todo desmaiaram e o que fizerem será mais com vergonha do que por vontade. Disto vos poderá causar partirdes daqui com desonra porque não tomareis Tânger como cuidais e de a combaterdes e não ganhardes vos ficará a gente tão cansada e destroçada que, em lugar de irdes atacar Alcácer vos será forçado, sem fazerdes feito de que possais haver louvor, tornardes para vossos reinos com grande plasmo de terdes feitas tantas despesas e gastos sem deles tirardes fruto que de louvar seja. Por isso peço-vos, senhor, em nome de todo este vosso exército, que vossa mercê seja prosseguir na sua primeira intenção porque para isso achareis o vosso exército todo muito pronto.
Isto ouvido pelo rei, este disse ao Infante Dom Henrique e a todos os que presentes estavam que em nome de Deus fosse, que se preparasse logo a armada e seguisse a via de Alcácer, pois a sua intenção era de a irem combater.=    p. 55

Capítulo XII     
Do primeiro combate que deram à vila de Alcácer e do que se passou nele.

Ficou decidido que não se fizesse mudança no assunto de Alcácer que o rei e toda a sua armada se fez à vela e na segunda-feira, chegou diante da vila de Alcácer, mandou armar os batéis para logo a ir combater no que houve algum impasse por a fustalha ser muita e assim a gente que havia de sair em terra, como pelo Infante Dom Henrique não poder chegar tão facilmente onde o rei estava por causa das correntes que o fizeram ancorar bem duas léguas afastado da nau do rei com quarenta navios da frota. Ao chegar, embora fosse já tarde, o rei fez logo remar para terra e como os que iam nos batéis cada um desejasse para si a honra de ser o primeiro a desembarcar foi a vaga feita com tanta pressa que quase todos juntos chegaram à praia de modo que nunca se pôde saber na verdade qual fora o primeiro que chegara nem a primeira pessoa que desembarcara. Não acharam o desembarcadouro tão fácil como cuidavam porque na praia estavam mais de quinhentos mouros a cavalo e muitos a pé. Contudo como os nossos levavam vontade de pelejar assim como saíram dos batéis os atacaram de maneira que com perda de alguns dos seus que ali morreram se começaram a recolher uns para a vila e outros para a serra.
Dos nossos ao desembarcarem foram muitos feridos, dos quais morreram Rui Gonçalves de Marchena, capitão de homens a pé e Rui Barreto, comendador da Ordem de Cristo, homens nobres e bons cavaleiros e na fuga dos mouros por os perseguirem até muito perto da vila João Fernandes de Arca, homem nobre e bom cortesão deram-lhe uma pedrada de que logo caiu morto.
Isto acabado anoitecia e o rei mandou tirar da frota todos os apetrechos necessários para o ataque à vila porque já estava certo, pelo recontro passado e modo que via nos mouros que só com gente, sem outros instrumentos de guerra a não poderia tomar tão cedo como tinha imaginado e lho tinham dado a entender.
Tudo estava preparado para no dia seguinte, que era terça-feira, se dar o combate. Os mouros conheceram bem que as suas vidas, pessoas e vila estavam em maior perigo do que cuidavam e para solução faziam novos consertos, defesas e as obras fortificavam o melhor que podiam com muita diligência. Contudo o rei não lhes deu tanto tempo nem lugar quanto eles precisavam porque como todas as coisas pertencentes ao combate foram postas em ordem e as estâncias repartidas e distribuídos os lugares de combate, mandou logo tocar as trombetas e enfrentar as tranqueiras da vila que foram acometidas tão bravamente que ainda que os mouros se defendessem com muitas panelas de fogo e tiros de artilharia como esforçados homens, não podendo suster o peso da peleja, recolheram-se para a vila.
Os nossos vendo fugir os inimigos, subindo por elas (tranqueiras) alguns e outros entrando por buracos que nelas fizeram, iam no seu alcance. Sabendo isto os homens a cavalo da companhia do Infante Dom Henrique quebraram as portas destas tranqueiras e entrando de tropel por elas foram acometer as da vila que por serem barradas de grossas chapas e lâminas de ferro não conseguiram quebrar por muito que se esforçassem. Além deste inconveniente tinham outro maior que era a grande resistência que os do muro faziam com tiros de arremesso e materiais de fogo que, de cima, lançavam. Por isso com muito dano foram constrangidos a se afastar, deixando o combate até que se pusessem as mantas ao muro e outros engenhos para com menos perigo entrarem na vila. Este combate durou até ao sol posto e dos nossos ficaram muitos feridos, mas nenhum morto.=      p. 58

Capítulo XIII     
Do segundo combate que o rei Dom Afonso V mandou dar à vila de Alcácer Ceguer e de como foi tomada a partido.

O rei, irritado com a resistência que achava nos mouros da vila, mandou chegar as mantas e outros engenhos de guerra ao muro. Isto ordenado, andando sempre em sua companhia o Infante Dom Fernando, o rei foi para a parte da vila onde o Infante Dom Henrique estava dando combate com escadas que já tinha postas nos muros pelo que mandou logo tocar as trombetas e com o som destas quase de novo se começou de todas as partes uma áspera peleja ao que não faltava o grande ânimo do rei que correndo todas as estâncias acompanhado da sua guarda dava ordem ao que se havia de fazer. Tudo era muito necessário porque os mouros se defendiam como bons guerreiros, resistindo ao combate e lançando das escadas abaixo os que queriam subir por elas e isto durou até à meia-noite em que, de ambas as partes, houve alguns mortos e feridos. O Infante Dom Henrique, como bom soldado e prático nas coisas da guerra, determinou tomar outro caminho para com menos perda e trabalho ganhar a vila, mandando colocar uma bombarda grossa onde lhe pareceu que o tiro faria maior dano. Mandou ao bombardeiro que carregasse bem, prometendo que lhe faria mercê se com ela fizesse entrada no muro o que ele fez muito à vontade do Infante Dom Henrique. Do primeiro tiro derrubou um bom lanço de muro e continuando a sua obra viram os mouros que contra a fúria daquela bombarda não havia resistência. Assim que, com o trabalho que já tinha passado e pouca esperança de breve socorro e sobretudo os prantos, lágrimas e choro das mulheres que os forçavam a terem mais em conta suas vidas, delas e de seus filhos, do que com suas próprias honras, fizeram logo de cima do muro sinal de paz pelo que o Infante Dom Henrique mandou para o combate cessar o ruído da gente para saber o que queriam. Disseram-lhe que confiados na bondade e misericórdia do rei, lhe queriam entregar a vila assim que fosse dia na condição de os deixarem sair da vila livremente sem receberem dano, levando consigo suas mulheres, filhos, familiares e bens.
O Infante Dom Henrique respondeu-lhes:
- O rei, meu senhor, não veio cá buscar haveres nem tesouros, mas sim servir a Deus. Da sua parte, lhes dou lugar para saírem do modo que pedem, contanto que deixem na vila todos os prisioneiros cristãos que nela haja e que para isso dêem logo reféns.
(Acredito que o Infante Dom Henrique tinha muita esperança de assim salvar o seu irmão, Infante Dom Fernando do cativeiro.) Estes vendo que tinham impetrado do Infante Dom Henrique o que requeriam, pediram-lhe que fosse sua mercê mandar que o combate cessasse para ficarem prontos e deixarem na vila os prisioneiros.
O Infante Dom Henrique respondeu-lhes:
- Tal não farei sem ter primeiro os reféns no arraial.
Então pediram-lhe uma só hora para lhos mandarem. Esta hora de tréguas, como prudente e sábio cavaleiro, negou-lhes o Infante Dom Henrique dizendo que por força os entrava. Que de pessoa alguma se tomaria a vida, de qualquer qualidade que fosse.
Destes arranjos, logo o rei que andava com o Infante Dom Fernando, visitando as estâncias do arraial, foi avisado pelo Infante Dom Henrique a quem lhe respondeu que nisso fizesse o que bem lhe parecesse.
Vendo os mouros a determinação do Infante Dom Henrique tomaram o conselho que lhes era mais proveitoso que foi mandarem logo os reféns por segurança da paz. O Infante Dom Henrique mandou logo levar os reféns à tenda do rei e assim se pôs fim ao combate com bastante perda e dano de uma e outra parte.
No dia seguinte pela manhã, que era quarta-feira, dia 23 de Outubro de 1458, despejaram os mouros a vila, levando consigo as suas mulheres, filhos e bens sem dos nossos receberem nenhum agravo. O Infante Dom Fernando tomou a cargo a sua segurança e pôs-se do lado do sertão com a sua gente para defender que não lhes fosse feito qualquer dano e também para pôr vigias que não levassem consigo nenhum cristão ou cristã prisioneiro para o que mandava visitar todos para não se cometer engano.
Como a vila foi despejada por volta do meio-dia, o rei entrou nela a pé e foi em procissão até à mesquita e a fez consagrar e dedicar a Nossa Senhora da Conceição onde já encontrou um altar posto em ordem para diante dele poder fazer oração como fez com os que aí com ele estavam, agradecendo muito a Deus pela grande mercê que lhe tinha feito.
Isto foi no ano da Egezira de 863, conta que os árabes e os mouros têm do tempo de Maomé, seguido por muita gente por causa da sua religião e se retirou à vila de Medina Thenebi que quer dizer cidade do profeta situada quatro jornadas do mar da Arábia, onde o dito Maomé está sepultado. Esta conta dos árabes começa variamente porque fazem os anos de doze luas inteiras.=     p.62 


Capítulo XIV     
Do que o rei fez no tempo que esteve em Alcácer Ceguer e como se passou dali a Ceuta.

Depois que o rei tomou Alcácer, a primeira coisa que fez foi mandar fortalecer as partes dos muros e fossos que lhe pareceu terem disso necessidade e da artilharia que consigo trazia mandou colocar alguma nos lugares em que melhor podia servir e nisto se trabalhou os dias que aí esteve que foram quarta, quinta, sexta, sábado e domingo. E porque o ofício que o rei, em todo o tempo da sua vida, com maior cuidado teve, foi fazer mercês e galardoar os serviços que lhe faziam no meio destes trabalhos, além de armar muitos cavaleiros daqueles que o bem mereciam e lhes fazer muitas mercês de sua própria e liberal vontade, deu a capitania e governança daquela vila de Alcácer a Dom Duarte de Menezes, filho de Dom Pedro de Menezes, conde de Vila Real, primeiro capitão que foi da cidade de Ceuta, negando-a a muitos que, por si ou por meio dos infantes e outras pessoas influentes, lha requeriam. O rei lembrado dos grandes e leais serviços de Dom Duarte de Menezes e das promessas que, de palavra e por seus papéis assinados, lhe tinha feito, lhe deu este honroso cargo e publicamente afirmou que comparando os seus merecimentos com a mercê ficava-lhe ainda muito em dívida pela obrigação em que lhe estava, mas esperava em Deus lhe galardoar e satisfazer com o passar do tempo.
Com estas palavras tão próprias à obrigação do Estado e pessoa real e à mercê de tanta confiança houve grandes invejas entre os nobres que ali estavam com murmurações costumadas em casos onde a mesma inveja tem maior lugar. Assim como os feitos da honra sempre cometem o mais alto dos pensamentos dos homens assim ela (inveja) como chama de fogo ardente com o fumo que de si lança, busca o mais alto de todas as coisas a que pode chegar até se consumir a si mesma e apagar sem a outrem estorvar senão a quem a si mesmo gera e cria.
Voltando à nossa história, depois que o rei acabou de ordenar todas as coisas que com parecer dos Infantes e dos do seu Conselho decidiu serem necessárias para guarda e defesa da vila e tomar a Dom Duarte de Menezes homenagem do cargo e ofício de capitão e governador de Alcácer se partiu na segunda-feira para Ceuta.=           p. 64

Capítulo XV     
Do sítio, nobreza e antigüidade da cidade de Ceuta.

Não parece razoável passar pela antigüidade e nobreza de Ceuta do modo que o fez Gomes Eanes de Zurara na história que escreveu de como ao rei Dom João o primeiro de Boa Memória a tomou aos mouros, da qual segundo afirmam os escritores árabes, o princípio e nobreza procede dos romanos, já que foi fundada por um neto de Noé, 230 anos depois do dilúvio, segundo afirma Abilabez, escritor de muita autoridade entre os mouros de quem o dito Gomes Eanes de Zurara, no princípio da mesma história da tomada de Ceuta, cidade em tempos dos romanos, segundo dizem os mesmos escritores árabes que se chamava Civitas Romanorum que quer dizer “cidade dos romanos” e a causa porque em tempo dele era tão freqüentada e povoada foi porque o lugar onde está situada que é na boca do Estreito de Gibraltar, a légua e meia da serra de Ximeira, a que os antigos chamam Abila, lhes servia muito para, com menos trabalho, poderem passar da Espanha a África e terem naquele lugar certa e segura desembarcação para as suas armadas tanto por o porto ser bom como pela passagem ser dali a Gibraltar cerca de cinco léguas.
Neste tempo que era dos romanos, Ceuta cresceu tanto em grandeza, riqueza e nobreza dos cidadãos que veio a ser a mais importante de toda a província da Mauritânia. Estando assim nesta prosperidade foi ganha pelos godos no tempo que passaram a África, ficando sempre em sua honra e posse com os governadores que ali os reis dos godos punham e nesta dignidade continuou até ao tempo em que os árabes e seguidores da religião muçulmana ganharam e adquiriram para si toda a Mauritânia. Em seu poder foi muito mais próspera que dantes. Assim da nobreza de cavaleiros, mercadores e artesãos, pois as coisas que se lavravam nela de ouro, prata, cobre, latão e outros metais eram tão perfeitas que em artifício e bondade tinham vantagem sobre todo o género de obra lavrada em Damasco; de maneira que as desta qualidade e de panos de lã, linho e de seda, tapetes e outras coisas deste tipo toda a Europa e a maior parte de África se abastecia daquela cidade por mercadores que nela negociavam.
Estando Ceuta muito próspera no tempo que, por erros do rei Dom Rodrigo e pecados seus e de seus súbditos foi quase toda a Espanha ganha pelos mouros, seguidores da religião de Maomé, era governador de Ceuta Dom Julião, conde de Espartaria ou de Mancha, que dizem agora Monte Aragão. Este conde era da geração dos Césares e não dos godos como alguns o escrevem, a quem o rei Dom Rodrigo dera a governança desta cidade e de outras na mesma província.
O rei possuiu ardilosamente uma filha do mesmo conde que se chamava Cava ou segundo alguns dizem a condessa Dona Fandina, sua esposa, que era filha do rei Beriza e irmã do bispo Dom Opas. O conde, afrontado na sua honra de tamanha injúria, levou a condessa a Ceuta, tirando-a dissimuladamente da corte onde ela residia com esperanças falsas que o rei lhe dava de casar com sua filha Cava.
Depois, fingindo estar a condessa, sua esposa, muito doente, alcançou licença para a mesma sua filha a ir visitar. Como o conde estava em Ceuta deu logo conta da injúria que lhe era feita por um mouro, bom cavalheiro por nome Muza Abenazair que, segundo o escrevem os árabes, em nome do pontífice Abulet ou Elgualid, filho de Abdulmalit, naquele tempo, governava a parte da África que então era dos mouros da Mauritânia, prometendo-lhe, para se vingar do rei Dom Rodrigo, dar maneira de como seguramente entrasse em Espanha.
Isto ouvido por Muza, logo disso avisou por suas cartas o pontífice Elgualid que, na altura, residia em Damasco do que a resposta foi que ele, em pessoa, não passasse a Espanha, mas que desse toda a ajuda e favor ao conde Julião que este lhe pedisse. Ele assim fez, donde se seguiram tantos males, mortes e abominações da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo quantas das histórias que disso tratam a todos são notórias.
Isto aconteceu no ano do Senhor de 719 e no que corria a Egezira e conta dos árabes no ano de 91. Neste ano, os mouros apoderaram-se desta cidade de Ceuta, ficando ela em sua prosperidade em que (ainda que por duas vezes fosse ganha à força das armas uma do pontífice e rei Mumen e outra do rei de Granada) esteve até ao ano de Egezira de 818 que é o ano do Senhor de 1415, em que a ganhou o rei Dom João I de Portugal, sendo dela capitão e governador em nome de Abuçaide, rei de Fez, um homem muito valoroso e bom cavalheiro por nome Calabencala.
Escrevem os mouros que Ceuta, além de muita riqueza, poder e exercício de letras que nela havia, está em sítio com bons ares e frescura da terra, a mais útil à vida humana que todas as outras terras daquela província de África. Por este motivo mutas pessoas de outras partes vinham ali viver. Fora dela, há um vale contra a parte de Alcácer muito fértil em que na altura havia tantas quintas e segundas casas que, ao longe, parecia ser tudo uma grande vila romana, cuja frescura, segundo se escreve, espantava a vista de quantos o viam. Neste vale havia muitas vinhas e parreiras que, pela quantidade ser tanta lhe chamavam vinhões. Contudo as outras partes do sertão são ásperas e de terra não muito fértil nem proveitosa.
Entre outros louvores desta cidade pode-se pôr este: está situada de maneira que, de dentro e de fora, se vê toda a ribeira de Granada, coisa que acrescenta muito em seu louvor por ser aprazível aos que nela vivem.
Pode causar espanto uma tal cidade e importante ao reino de Fez não ser logo socorrida como a razão o requeria, parece-me que é adequado escrever as coisas donde procedeu tanto descuido. No tempo em que o rei Dom João o primeiro de nome ganhou esta cidade aos mouros, reinava em Fez Abuçaide, homem dado a vícios e maus costumes. Naquela altura, em que lhe deram a notícia de que Ceuta tinha sido tomada por cristãos, o rei estava em Fez, fazendo festas e banquetes e nestes continuou sem fazer conta de tamanha perda nem mandar socorro para ver se poderia recuperar coisa tão nobre que tinha perdido.
 A sua vida foi sempre assim, segundo escrevem os históricos árabes que, por muitos erros que cada dia, os seus pecados induziam, permitiu Deus que, naquela altura, o matasse um seu vizir, que é justiça mor, também era seu secretário por nome Abubaba, homem poderoso no reino a quem o dito rei tinha feito muitas mercês. Contudo ele matou-o às punhaladas porque ele violara sua esposa. Não o matou somente, mas também a seis filhos seus.
Isto aconteceu no ano da Egezira de 824. Deste assunto se seguiram grandes divisões e desconcertos no reino de Fez, ficando oito anos sem rei. Tempo em que o rei Mulei Buçaide, homem principal no reino se levantou contra o seu próprio irmão por nome Mulei Aco que se queria fazer rei e tiveram entre si tanta guerra e dissensões que nunca se pôde concretizar virem os do reino de Fez cercar a cidade de Ceuta, já que o rei de Granada (muçulmano) chamado Rei Esquerdo, homem muito valoroso e de grande coração, a viesse cercar por mar com grande companhia de mouros de Espanha.
No fim destes oito anos que o reino de Fez esteve sem rei, se descobriu um filho do dito rei Abuçaide e de uma cristã que fugira para Tunes com um filho, sendo ainda criança quando mataram o seu pai que se chamou Habdulahed que, depois de reinar algum tempo, por tirania e mau governo, morreu às mãos do povo sem deixar filho e este foi o último da Casa dos verdadeiros Marins até àquela altura que era geração real como em Espanha a dos godos, donde os reis de Espanha descendem.=         p.71

Capítulo XVI     
Do que o rei Dom Afonso V fez enquanto esteve em Ceuta e de como regressou ao reino de Portugal.

Estando o rei em Ceuta e vendo o sítio e grandeza que representava a sua antigüidade, reconheceu tão grande feito que o rei Dom João I, seu avô, fizera em ganhar uma tal cidade e tão necessária para bem e segurança não tão somente de seus reinos e dos de Castela, mas ainda de toda a cristandade. Quanto nisto mais pensava tanto o seu grande e invencível ânimo o atormentava mais com lhe pôr no pensamento que em comparação com tão grande vitória, tinha feito pouco em ter tomado uma tão pequena vila como era Alcácer; revolvendo em seu coração que, por sua honra, não devia regressar ao reino de Portugal sem primeiro tomar Tânger.
Andando nestes pensamentos e provendo algumas coisas da cidade em que, por estar presente, era necessário que atendesse, soube por certo que Molei Abdehac, rei de Fez que era o mesmo que reinava quando os Infantes Dom Henrique e Dom Fernando, irmãos do rei Dom Duarte, foram sobre Tânger, vinha com trinta mil homens a cavalo e muita gente a pé cercar Alcácer e com ele, além de outros senhores Molei Aboacim, Benautuz, grande seu amigo e grande senhor naquele reino por cujo parecer e conselho se governava e que eram já chegados a Tânger do que também foi avisado por cartas de Dom Duarte, a quem logo respondeu e mandou socorro de gente e mantimentos.
Além do pensamento de tomar Tânger o seu desejo era ficar em Ceuta para dali, como fronteira, fazer guerra aos mouros. Teve sobre isso Conselho, onde houve vários pareceres, mas a resolução foi que a sua ida para o reino de Portugal parecia mais necessária do que ficar do modo que queria. Contudo porque a sua partida havia de ser súbita por causa da grande armada que ali tinha e que não podia aguentar por muitos dias tanto por causa dos mantimentos que já lhe começavam a faltar como pelas grandes e insuportáveis despesas com salários e fretes a que já as suas rendas e as ajudas de seus povos não podiam corresponder; que seria bem, para os mouros não dizerem que fugia com medo do rei de Fez, mandá-lo desafiar para uma batalha campal o que seguramente podia fazer, pois consigo tinha bastante gente e assim podia partir com honra e louvor cada vez que quisesse.
Ao rei pareceu bem, pelo que logo decidiu mandar a Tânger Martim de Távora e Lopo de Almeida com uma carta de desafio para o rei de Fez, anotada com toda a cortesia que a reis convém e com eles mandou um rei de armas para desafiar o rei, mas o assunto não se concretizou. Sabendo ele ao que vinham, em lugar de os ouvir, mandou atirar bombardadas aos navios, de maneira que lhes foi necessário afastarem-se da praia.
Martim de Távora, vendo a intenção do rei de Fez, se foi para Alcácer desejoso de ganhar honra no cerco que já começavam; o que também fizeram alguns outros fidalgos e cavaleiros dos que estavam em Ceuta, onde Lopo de Almeida regressou com as notícias do recebimento que, em Tânger, lhe fizeram. Sabido isto pelo rei Dom Afonso V, este embarcou e com toda a sua armada veio lançar âncora diante da vila de Alcácer que estava já cercada pelo lado do mar e da terra, de modo que teve por escusado estar ali mais tempo. vendo que não podia lançar gente na vila nem dar-lhes mais mantimentos dos que já tinham dentro que davam para cerca de três meses.
Isto decidido, partiu logo para o reino e com bonança chegou a Faro, no Algarve, donde se foi para Évora com intenção de pessoalmente voltar a socorrer Alcácer. Isto não pôde fazer porque outros assuntos que lhe sucederam no reino o impediram. Contudo mandava dos seus e da sua Casa todos os dias até que soube por certo ter a vila descercada.
Voltando às navegações, é bom que se saiba que neste ano de 1458, o rei Dom Afonso V confirmou uma lei e ordenação que o Infante Dom Henrique fez em que declarava que as pessoas que tratassem do Cabo Não por diante, de quaisquer mercadorias e escravos que trouxessem ao reino de Portugal pagassem a vintena. Também diz a carta que naquele tempo eram já descobertas trezentas léguas de costa para lá deste Cabo Não.
No mesmo ano, o rei fez doação ao conde Dom Pedro de Menezes da vila de Almeida com seus termos e rendas.=          p. 75


Capítulo XVII     
De algumas coisas que da altura da chegada do rei Dom Afonso V de Ceuta até à tomada de Arzila se passaram no reino de Portugal.

O que neste reino sucedeu foi o cerco que no mesmo ano de 1458, pelo espaço de 53 dias, o rei de Fez pôs à vila de Alcácer Ceguer do qual, constrangido pelos nossos se partiu a 02 de Janeiro de 1459. Neste mesmo ano, tendo já Dom Duarte de Menezes uma couraça acabada que o rei Dom Afonso V lhe mandara fazer em Alcácer Ceguer, voltou o dito rei de Fez, no princípio de Julho, com grande quantidade de gente a cercar a vila de Alcácer e teve-a cercada outros 53 dias, mas desesperado por não a poder recuperar, mandou, com muita afronta sua e repreensões que muitos dos seus lhe davam, levantar o cerco.
Neste ano de 1459, deu o rei Dom Afonso V o governo do Algarve a Dom Sancho, conde de Mira com título de Adiantado e sobre este assunto os nobres e Conselhos do Algarve se agravaram ao rei e também à cidade de Lisboa que, logo no mesmo ano, o rei por suas cartas patentes lhes prometeu não dar mais poder ao dito conde do que lhe tinha dado e que por sua morte não poria mais regedor no Algarve. (Vivia em Lagos e era seu senhor o Infante Dom Henrique).
No ano seguinte, 1460, Dom Duarte de Menezes com permissão do rei veio ao reino de Portugal, deixando por capitão de Alcácer Dom Afonso Teles, seu sobrinho. O rei Dom Afonso V, em galardão dos bons serviços prestados atribuiu a Dom Duarte de Menezes o título de conde de Viana e de Caminha.
Neste ano, no mês de Agosto, faleceu de febres, em Tomar, Dom Afonso, marquês de Valença, filho primogénito de Dom Afonso, duque de Bragança, sem ter casado nem deixado mais do que um filho natural, por nome Dom Afonso que foi bispo de Évora e também era filho de Dona Beatriz, filha de Martim Afonso de Sousa.
Deste Dom Afonso, bispo de Évora, ficaram dois filhos, a saber, Dom Francisco, primeiro conde do Vimioso, a quem com razão podemos chamar outro Catão Censorino no saber e prudência porque tal o foi ele vivendo assim nas coisas da paz como nas da guerra, como no Conselho dos Reis que serviu Dom Manuel e Dom João III, seu filho, de quem foi Veador da Fazenda (ministro das Finanças). É seu filho herdeiro mais velho Dom Afonso que actualmente vive também com o título de conde do Vimioso e ministro das Finanças.
O segundo filho, Dom Martinho, arcebispo do Funchal, homem de altos pensamentos e grande cortesão na Corte de Roma, onde durante muitos anos residiu em serviço do reino de Portugal com muita honra e grande família.
No mês de Setembro, o rei Dom Afonso V confirmou ao Infante Dom Fernando, seu irmão, as ilhas de Jesus Cristo (Terceira) e Graciosa que o Infante Dom Henrique, seu tio, como a filho adoptivo lhe deu, por carta dada na vila de Lagos, a vila de Lagos – vila do Infante – a 02 de Agosto de 1460.
No dia 13 de Novembro deste ano, 1460, às onze horas da noite faleceu perto de Sagres, Raposeira, este ínclito príncipe Infante Dom Henrique magnânimo, virtuoso, de gloriosa memória com a idade de 67 anos. Todo o reino teve grande sentimento pela sua morte. O seu corpo foi logo enterrado na igreja (de Santa Maria da Graça mandada construir por ele), em Lagos. No ano seguinte, o Infante Dom Fernando, seu filho adoptivo, levou o seu corpo para o Mosteiro da Batalha, onde o rei Dom Afonso V o estava esperando. Mandou pô-lo na capela do rei Dom João I, seu pai, numa sepultura própria e separada com muita honra e solenidade por cujo falecimento, por carta dada a 03 de Dezembro, o rei fez doação ao Infante Dom Fernando, seu irmão, para ele e para seu filho das ilhas da Madeira, Porto Santo, Deserta, São Luís, São Dinis, São Jorge, Santo Tomás, Santa Iria, de Jesus Cristo, Graciosa, São Miguel, Santa Maria, São Tiago, São Filipe, das Maias, São Cristóvão e Alana e no dia 28 de Novembro, depois do falecimento do dito senhor Infante, o rei decidiu que Alvor ficasse por termo de Silves. 
Nos tempos passados houve entre o reino de Portugal e os duques da Bretanha  grandes diferenças e ocasiões de guerra por respeito de se fazerem, de uma e da outra parte, grandes danos e represálias entre os sujeitos e vassalos. O rei Dom Afonso V como era valoroso e de ânimo invencível, não podendo sofrer as queixas que os seus lhe faziam dos danos que receberam dos bretões, pôs nisso tal ordem que o duque da Bretanha que então vivia, vendo os seus sujeitos tão maltratados pelos portugueses, tomou a decisão de mandar pedir ao rei Dom Afonso V paz e amizade que lhe foi concedida neste ano de 1460 e deu licença e privilégios aos sujeitos do duque da Bretanha para poderem livremente vir por mar e por terra tratar dos seus negócios no reino de Portugal, o que dantes não ousavam fazer.
No ano de 1461, o rei Dom Afonso V fez doação (…) a Dom Fernando, marquês de Vila Viçosa, filho de Dom Afonso, duque de Bragança, por falecimento de seu pai, da vila de Guimarães por carta dada a 06 de Dezembro e a Dom Fernando, seu filho, fez mercê de Fronteiro mor de entre Douro e Minho e Trás os Montes do modo que o fora o duque de Bragança, seu avô, que faleceu neste mês e ano cujo corpo jaz sepultado em Chaves e neste ano, o rei deu licença ao dito Dom Fernando, neto do duque, Dom Afonso, para o ir servir em Alcácer Ceguer, onde esteve os meses de Abril, Maio e Junho com 200 homens a cavalo e mil a pé. Ganhou muita honra tanto no muito que despendeu como nas entradas que fez por terra de mouros, algumas vezes chegou até às portas de Tânger.
No ano seguinte, 1462, Dom Afonso V deu por carta a governança de Ceuta ao conde Dom Pedro de Menezes, senhor de Almeida, com todos os direitos que rendem os 10 reais que para a dita cidade pagam os de entre Douro e Minho e Trás os Montes declarados na doação onde lhe chama primo, capitão e governador de Ceuta com declaração que lhe dá o tal cargo do modo que o tiveram o Infante Dom Henrique, seu tio e o Infante Dom Fernando, seu irmão (do rei).
No ano de 1463, o rei Dom Afonso V passou a África, no mês de Dezembro, com intenção de tomar a cidade de Tânger aos mouros. Já no ano anterior, tinha mandado dissimuladamente Dom Pedro de Menezes com esta agenda, mas sucedeu ao contrário do que Dom Afonso V imaginava porque perdeu muita gente na viagem devido a uma grande tormenta que passou no mar e também pelo combate que se deu à cidade a 20 de Janeiro de 1464 e numa entrada que Dom Afonso V fez pelo sertão até à serra de Benacofu, onde os mouros mataram Dom Duarte de Menezes, conde de Viana, capitão e governador de Alcácer Ceguer, tendo já o Infante Dom Fernando, seu irmão, regressado ao reino e Dom Pedro, filho do Infante Dom Pedro partido para Aragão por vontade e licença do rei em duas galés de Barcelona que os Estados do reino de Aragão lhe mandaram secretamente para sua embarcação, tendo-o entre si elegido para rei por falecimento do rei Dom Afonso de Aragão e de Nápoles. (…)
No ano de 1464, o rei Dom Afonso V regressou ao reino de Portugal e se foi logo em romaria a Guadalupe. Neste mesmo ano, fez doação do castelo e vila de Lagos ao Infante Dom Fernando, seu irmão, senhor de Lagos e a Dom Fernando, conde de Guimarães deu todos os padroados das igrejas e mosteiros de Lagos.=   p. 85
No ano (…) de 1467, o rei Dom Afonso V confirmou por carta a capitania e governança da cidade Ceuta a Dom Pedro de Menezes, conde de Vila Real e mandou no mês de Agosto a Alcácer Ceguer Gomes Eanes de Zurara para se informar dos feitos e proezas do conde Dom Duarte e lhe fazer a sua crónica como fez. Lá esteve um ano e a crónica veio acabá-la ao reino de Portugal.
No ano de 1468, o Infante Dom Fernando passou a África com uma armada de dez mil homens de que os escritores árabes em suas histórias fazem menção e foi sobre a vila de Ansa que nós chamamos Anasé, que queimou e destruiu sem nenhuma resistência porque os mouros, sabendo da armada e gente qualificada que o Infante levava, despejaram-na antes que desembarcasse. O Infante Dom Fernando mandou primeiro espiar por Estevão da Gama, fidalgo da sua Casa. 
Para maior dissimulação foi lá com um navio carregado de figo seco do Algarve como se fosse mercador e para melhor conhecer o sítio da vila, ele mesmo vestido de marinheiro, andava com as peças de figos e passas às costas, vendendo-as pela vila de Anasé para notar o que nela havia e a fortaleza que tinha e a gente que era necessária para a tomarem.
Os escritores árabes escrevem que o rei Dom Afonso V se decidiu a mandar destruir esta vila de Anasé entre os mouros muito nomeada e celebrada por respeito das entradas que muitas vezes os mouros faziam na costa de Castela e Portugal com galés e fustas que tinham bem armadas de que estes dois reinos continuamente recebiam muito dano. Da formosura e grandeza desta vila de Anasé dão testemunho alguns edifícios que ainda hoje em dia se lá vêem.
No ano de 1469, por o rei Dom Afonso V ter mais despesa com a guerra de África do que com os descobrimentos nem proveitos das coisas da Guiné arrendou por cinco anos o negócio das terras descobertas a Fernando Gomes, cidadão de Lisboa por preço e quantia de cem mil reais brancos cada ano com a condição de que ele fosse obrigado a descobrir neste período cem léguas cada ano para lá da Serra Leoa que era o extremo do que até então os nossos tinham descoberto.

No ano de 1470, o rei Dom Afonso V deu por carta a governança de Alcácer Ceguer a Dom Henrique de Menezes, conde de Valença, senhor de Caminha, filho de Dom Duarte de Menezes, conde de Viana, capitão que fora da mesma vila de Alcácer, com dois milhões e 2024 reais brancos para refeições de 400 homens assalariados e cem meias refeições para mulheres, moços e outras pessoas de serviço que ordenou para lá estarem em guarnição. Neste ano, no dia 18 de Setembro, faleceu o Infante Dom Fernando em Setúbal com a idade de 37 anos. Estiveram presentes o rei Dom Afonso V e a sua esposa, a Infanta Dona Beatriz. O corpo foi enterrado no Mosteiro de São Francisco da Observância, situado junto da vila. Depois os seus ossos foram com grande solenidade trasladados para o Mosteiro da Conceição, em Beja. O Infante Dom Fernando teve de sua esposa seis filhos e duas filhas, sendo o sexto Dom Manuel que veio a ser rei de Portugal e uma das filhas, Dona Leonor, que veio a casar com Dom João II, rei de Portugal no dia 22 de Janeiro de 1421.=        p. 93 

    Capítulo XVIII     
De como o rei Dom Afonso V determinou passar a África para tomar a cidade de Tânger e como, por conselho e parecer dos seus, ordenou atacar a vila de Arzila.

O rei Dom Afonso V determinou pôr em prática um pensamento que, sobre todos os outros, trazia decidido no seu coração e que era passar a África e ir cercar Tânger (talvez por tudo o que lá passou o seu tio Dom Fernando, irmão do rei Dom Duarte). Sobre isto, no ano anterior, tivera muitos conselhos, mas o parecer dos demais foi “que por enquanto se devia deixar a ida a Tânger por ser cidade grande e forte e assim por no reino (por causa das guerras passadas em África) não haver dinheiro para se poder pagar as despesas que tão grande empreendimento requeria, mas já que o grande desejo do rei era passar a África, os Conselhos do rei pediram-lhe que já que assim era que fosse cercar Arzila e por enquanto desistisse de querer tomar Tânger tanto pelos motivos já afirmados como por aquela cidade estar em posse de haver vitória dos nossos, pelo que parecia bem deixá-la em paz até que o tempo por si desse ocasião para se realizar tal empreendimento de tanto peso e perigo.
O rei concordou de boa vontade porque, de qualquer modo, a sua intenção era passar a África. Assim com muita diligência mandou preparar por todo o reino e fora dele todas as coisas necessárias para a sua passagem, mandando logo Pero de Alcáçova, seu escrivão dos seus bens, pessoa em quem muito confiava e Vicente Simões, homem muito experiente nas coisas do mar e nas daquela costa de África que fossem, pelo modo mais dissimulado que pudessem, a Arzila, fingindo serem mercadores e lhe espiassem as forças dela e lugares onde seria mais prudente desembarcar e eles tudo isto fizeram conforme o estabelecido e, após regressaram ao reino a relatar tudo ao rei.=      p.95

Capítulo XIX     
De como o príncipe Dom João alcançou do rei, seu pai, que o quisesse levar consigo e do modo que nisto teve.

A intenção do rei Dom Afonso V, quando determinou passar a África, foi deixar o príncipe por governador do reino e com ele Dom Fernando, primeiro duque de Bragança, mas como os pensamentos do príncipe em tudo passassem os limites da sua idade propôs logo ter permissão do rei para o acompanhar num tão grande empreendimento e nisto andou alguns dias cuidadoso por não se saber determinar se ele em pessoa descobrisse a sua vontade ao rei ou lha mandasse dizer por outrem e considerando que, por ser tão moço como era, poderia haver nele menos autoridade do que a que convinha para si mesmo poder fazer o seu pedido, determinou descobrir a sua intenção a Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, por ser pessoa em quem ele confiava muito e saber que era muito bem aceite pelo rei. Assim que, confirmado neste seu parecer, mandou dizer ao conde que o mais dissimuladamente que pudesse, se encontrasse com ele, o príncipe, para lhe dar conta de algumas coisas que muito lhe importavam. O conde assim fez e encontrou-se com o príncipe. Este disse-lhe:
- Conde, a muita confiança que o rei, meu senhor, tem em vós dá-me a ousadia para fazer o mesmo e vos dar de mim e das minhas coisas parte; à uma, para delas me aconselhardes e à outra, para, se vos bem parecerem, me ajudardes no efeito delas e por esta ser de tanto peso como logo ouvireis eu não a quis, por mim nem por outrem pôr em prática, esperando que vós fosseis o orientador do meu pedido. Se este vos parecer inadequado, sem nenhuma dificuldade mo tireis do pensamento em que ando. Nem de noite nem de dia deixo de ser atormentado e para que não estejais mais em suspenso no para que vos mandei chamar, sabei que eu me acho ofendido pelo rei, meu senhor, não me querer honrar com a minha presença nesta viagem que faz contra os infiéis porque a coisa que mais desejo é ganhar honra por minha própria mão e porque vejo o tempo disposto e o empreendimento tão santo e tão honroso vos digo que de todo estou determinado, por qualquer modo que seja, seguir o rei, meu senhor e acompanhá-lo do que ele não deve ter desprazer e porque eu receio por algumas dúvidas que terá por justas que me negue isto e com razões mo queira estorvar, entre elas a minha pouca idade misturada com a muita obediência que lhe tenho, não ousaria nem saberia replicar. Peço-vos e rogo, Conde, que deis disto conta a Sua Alteza e façais tanto que dele me tragais o consentimento porque se ele mo nega, sabede certo que, de duas coisas se há-de seguir uma: ou de desprazer hei-de cair em alguma grave doença ou depois de Sua Alteza ter partido o hei-de seguir e se não for como príncipe será como um aventureiro soldado.
O conde não menos aturdido das vivas razões do príncipe que alegre de ver nele tão generoso ânimo disse-lhe:
- Senhor, como a vontade do que me tendes dito não depende da minha, senão da do rei, vosso pai, não tenho de vos responder nem razão que possa dar acerca do que tendes determinado; mas isto vos peço que aquilo que por ventura o rei poderia altercar comigo, contrariando o que pedis, vos praza que ambos o pratiquemos porque ao longo das réplicas que tivermos me resolverei nas razões que lhe hei-de dar, caso não se incline a aceitar o vosso requerimento. Vós, Senhor, sois moço, único herdeiro deste reino de Portugal, casado há pouco que são três pontos porque as leis divinas e humanas vos escusam de sairdes fora da vossa casa a fazer guerra em terras estranhas. A estas três razões se junta a quarta, que sobre todas se deve receber: com a ida do rei e a vossa fica o reino de Portugal órfão de legítimo herdeiro. Se a sorte nesta viagem vos respondesse ao contrário do que cuidais, ora seja assim: que a vossa ida possa, por qualquer modo, vos parecer lícita e necessária e que dela se deva seguir grande bem a este reino e a todos os que convosco forem. Quando isto fosse, não poderia, por boa razão ser, senão ficando vosso pai no reino.  O vosso pai, quando Deus ordenasse outra coisa de vós, tem idade para se casar e haver fruto de bênção para o bem e amparo para todos nós e desta vossa terra. Ele vai em pessoa e na sua ida não pode haver estorvo. Eu teria por bom conselho que vós, Senhor, ficásseis em companhia da princesa, vossa esposa, cuja nova idade e matrimónio e não terdes ainda filho nem filha dela serão causa dela tomar desta vossa ida tanto desprazer que facilmente de todo podereis ser causa e azo principal da sua morte.
Ouvindo o príncipe o discreto modo que o conde teve em replicar o seu propósito, continuando no desejo que tinha, disse-lhe:
- No que respeita aos desgostos da princesa, os homens nas coisas que muito lhe cumprem se, de facto, são homens, não devem ter em nenhuma conta as intenções nem desejos das esposas. Estas são sempre mais inclinadas a seus particulares apetites e vontades do que a toda a boa razão e honra de seus maridos. Quanto a eu ser jovem, nessa parte me parece que tenho melhor causa porque a arte da guerra, na qual a experiência é a que mais se requer, não se pode aprender senão na mocidade. No que toca à sucessão do reino, apesar de não ter filho, saiba ao certo, que assim o podia dizer ao rei, seu senhor, que a tão honradas heranças nunca faltaram tais herdeiros que a elas lhes convém porque em tamanhos casos Deus, a cuja providência tudo é presente, sempre ordena o que é mais seu serviço tanto para o bem do reino como dos reis dele por cuja infinita bondade terá a cargo como até agora sempre o fez.
O conde mais admirado do replicar do príncipe do que com o que antes propusera, disse-lhe:
- A primeira coisa que vou fazer é dar conta ao rei do que Vossa Alteza me disse e farei tudo o que me for possível para lhe trazer uma boa resposta ao seu requerimento.
Assim fez porque do recado que o conde deu ao rei e prática que com ele teve, resultou o príncipe obter a permissão que tanto desejava.=    p. 100

Capítulo XXI     
De como o rei Dom Afonso V partiu de Lisboa e do que se passou até ancorar diante da vila de Arzila.

A decisão que o rei tomou de levar o príncipe herdeiro consigo não foi tão fácil que depois de lhe ter dado o consentimento ainda houve diferentes pareceres. Contudo o príncipe teve tais modos e meios que a sua ida não pôde ser impedida. Assim decidido, ficou a princesa Dona Leonor por regente e o primeiro duque de Bragança por primeiro-ministro. O rei mandou com muita brevidade preparar a sua armada e, porque sabia que entre alguns senhores e outras pessoas qualificadas que com ele iam, havia ódios e mal-entendidos, pelos quais andavam alguns deles excomungados e lhes estavam por isso interditos os sacramentos da Igreja, mandou que nenhum dos tais o acompanhasse sem primeiro se reconciliar com os que tinha ódio ou desavenças. Todos assim o fizeram.
Nesta viagem, o rei ordenou que só os condes levassem cavalos por não haver, naquela altura, necessidade disso e por ter por escusada a despesa que com eles se poderia fazer.
Da armada que se fez na cidade do Porto, o rei deu cargo de capitão da capitania a Dom Fernando duque de Guimarães, filho do duque de Bragança, Dom Fernando. Chegado com esta frota a Lisboa, partiu logo toda a armada do Restelo no dia 15 de Agosto de 1471 e, dois dias depois, chegou com bom tempo à vila de Lagos, onde encontrou preparada a armada do Algarve com Dom Duarte, conde de Viana que veio de Alcácer Ceguer a mando do rei e que os estava esperando.
Nesta armada havia entre naus grandes, galeões, galés, fustas e outros navios de carga trezentas e trinta e oito e gente de guerra nobre e soldados, não contando com a marinhagem e outra gente de serviço, vinte e quatro mil homens. O que toda esta armada de Lisboa fez de despesa foi cento e trinta e cinco mil dobras de ouro, valor que encontrei nos memoriais feitos por Dom Vasco de Ataíde, prior do Crato, que fez a armada que se ordenou em Lisboa e tomou as contas de toda, tanto a ida como a vinda e a despesa que se fez com a tomada de Alcácer, de que ele também tomou as contas, se despenderam cento e quinze mil dobras, gasto tão moderado para o que não sei se bastaria agora um conto de réis de ouro para cada uma destas armadas, segundo a desordem que cresceu em todas as coisas e a cobiça nos oficiais dos reis.
Voltando à viagem, assim que o rei chegou a Lagos, sem mais esperar, partiu no dia seguinte depois de ouvir missa e pregação no fim da qual disse publicamente que o lugar que ia pôr cerco era Arzila, onde chegou com toda a armada no dia 20 de Agosto, já de noite.=          p. 106

Capítulo XXII     
Do sítio e antigüidade da vila de Arzila.

À vila de Arzila, os mouros chamam Asela e dizem (segundo o contam suas histórias) que foi fundada pelos romanos no mesmo lugar onde agora está que é na costa do mar Oceano 17 léguas do Estreito de Gibraltar.
Esta vila esteve, nos tempos dos romanos, sujeita ao senhor de Ceuta que era tributária aos mesmos romanos. Depois foi tomada pelos godos que nela tiveram sempre seus capitães a cuja obediência esteve até ao ano de Egezira e conta dos mouros e árabes de 94, que foi três anos depois da perda de Espanha e de Ceuta ser tomada pelos mouros. Por isto se vê quão forte e poderosa era esta vila que sendo Ceuta de mouros e Espanha tomada por eles, a tiveram cristãos contra o poder de tanta mourisma, tão cheia de vitórias do sangue cristão por tanto espaço de tempo.
Em poder dos mouros esteve próspera tanto de armas como de letras e mercadorias durante 220 anos até que por exortação dos reis de Espanha, descendentes da geração dos godos, foi cercada por uma grande armada de ingleses e tomada com grande dano e perda que de uma e de outra parte se fez e pela muita gente que no cerco os ingleses perderam como é gente áspera nas coisas da guerra e que sofre mal as perdas e afrontas que nela recebe a destruíram de todo e mataram a ferro e fogo toda a gente que nela havia sem deixarem vivos e assim esteve destruída e desabitada quase trinta anos.
Passado este tempo e reinando na Mauritânia os senhores e pontífices de Córdova foi, de novo, por ele edificada de melhores, mais fortes e magníficos edifícios do que antes tinha e cresceu em riqueza e grandeza havendo nela muitos homens muito letrados e muitos mais de guerra que continuamente faziam estragos por mar na Espanha que então era de cristãos vizinhos ao mar e de quem os fronteiros de Ceuta e de Alcácer Ceguer depois que foram ganhas pelos portugueses, recebiam muitos e contínuos danos.
Nesta prosperidade esteve até que o rei Dom Afonso V a ganhou. A comarca desta vila é muito fértil tanto que poucas daquela costa de África lhe têm vantagem tanto de frutas como de sementeiras que é tão abastada que é notório aos portugueses fronteiros que nela no nosso tempo estiveram e habitaram até ser ganha pelos mouros.
Na altura em que o rei Dom Afonso V a foi cercar, reinava anda em Fez Eslerif Moley Abdelac, contra o qual se levantou o senhor Saic Abra que o veio cercar a Fez, mas Eslerif derrotou-o por conselho de um seu capitão e conselheiro que era primo-irmão de Saic.
Depois desta guerra, o rei Eslerif mandou aquele seu capitão e conselheiro a Temezara a pacificar aquela comarca que se revoltara, Saic Abra voltou com oito mil árabes a cavalo e outra gente a pé e cercou Fez a nova e depois de a ter cercada durante um ano, os cidadãos de Fez, não podendo mais sofrer as conseqüências do cerco, secretamente aceitaram o ocupante e entregaram-lhe a cidade e Eslerif se foi com toda a sua família para Tunes.
Neste ano em que Saic tinha cercada Fez a nova, veio o rei Dom Afonso V sobre Arzila e tomou-a e aprisionou duas mulheres de Moley, xeque, grande senhor entre os mouros que, por causa de se revoltar a província de Habar que era sua, vivia então em Arzila, de que era senhor.
Depois que foi rei de Fez, onde, neste tempo, estava por causa da guerra que Saic fazia a esta cidade-nação e o rei Dom Afonso V aprisionou, de Moley, mais um seu filho, Maomé e uma filha, ambos de idade de sete anos e os trouxe prisioneiros para Portugal, onde Maomé esteve sete anos, a quem os mouros por ele saber muito bem a língua portuguesa lhe chamavam Moley Maomé o Português. Este, sendo já rei, veio cercar duas ou três vezes Arzila com grande poder e desejo de a tomar como lugar do seu nascimento e numa destas vezes, reinando em Portugal Dom Manuel, ganhou a vila e os nossos recolheram-se ao castelo e, segundo contam os historiadores árabes, fizeram acordo com o rei Maomé que, se dentro de dois dias não lhes viesse socorro, lhe entregariam o castelo, salvas as vidas e os bens. Deus, por sua misericórdia, não quis que coisa tão importante à cristandade voltasse para a posse dos infiéis porque foi socorrida dentro destes dois dias pelos nossos e também por castelhanos, cujo capitão era  Pedro Navarro, homem muito esforçado e experiente nas coisas da guerra.=     p. 111

Capítulo XXIII     
De como o rei Dom Afonso V desembarcou com a sua gente e mandou logo cercar a vila de Arzila.

Na mesma noite em que o rei Dom Afonso V chegou a Arzila com toda a sua armada, teve Conselho sobre o modo da desembarcação e cerco que lhe queria pôr. Depois de vários pareceres ficou concluído que, em amanhecendo, Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto e o conde de Marialva, Dom João Coutinho saíssem a terra com a gente que para isso lhes foi ordenada e que assim que chegassem à praia, abalasse o rei com toda a sua companhia e coisas necessárias para o cerco de maneira que, no mesmo dia, o cerco ficasse instalado de modo que a vila não pudesse ser socorrida nem dela pudesse sair pessoa alguma e como estes dois condes eram pessoas de grande competência e muito desejosos do serviço ao rei, ordenaram tudo tão bem que, ao romper da madrugada, com barcas, bergantins e outros navios de remo chegaram à praia.
 Como o desembarcadouro daquela vila era áspero e tinha más entradas e perigosas e, nesta altura, com tormenta, o mar andasse de levadio, os do remo não podiam tanto ajudar sem que as vagas não estorvassem. Assim, apesar de ser antes do tempo estabelecido, o rei embarcou logo com o príncipe nos navios que os estavam esperando, fazendo remar com tanta força que, em breve espaço de tempo, chegou ao perigo em que os condes andavam, no qual sem nenhum medo lhes quis ser igual companheiro. Visto pelos da armada, não ficou pessoa que ou nos navios que eram de qualidade para poderem chegar à praia ou em batéis não seguisse logo o rei Dom Afonso V e assim todos lutando contra a fúria do mar e força dos ventos trabalharam tanto até que chegaram a terra, mas isto não se fez sem grande perda porque se alagou uma galé e outros navios e batéis em que se afogaram mais de duzentos homens de que oito eram fidalgos, cujos nomes não achei escritos. Esta negligência é de repreender nos cronistas daquele tempo porque nomes de tais pessoas se há-de fazer menção por bem e honra das linhagens e famílias.
Voltando ao rei, assim que desembarcou, não esperou o palanque que vinha na armada que, por causa da tormenta não foi possível trazer logo e mandou instalar o seu arraial e assegurá-lo com cava, bastiões e outras coisas que, para o tempo e qualidade do lugar lhe pareceram necessárias. Tudo se fez sem os da vila oferecerem nenhuma resistência, já que dentro havia muita e boa gente de guerra com depois se viu.=     p. 113

Capítulo XXIV     
De como se começou o combate e a vila foi entrada sem o rei Dom Afonso V o saber.

A tormenta demorou tanto que não foi possível trazer o palanque a terra nem mais do que duas bombardas. Contudo o rei era apressado nos seus assuntos principalmente nos da guerra (na qual a diligência não só resiste à sorte, mas ainda a vence) mandou logo dar o combate e atirar à vila com duas bombardas com que derrubaram dois lanços do muro no espaço de três dias contínuos e, no dia seguinte, que era dia do apóstolo São Bartolomeu, dia 24 de Agosto, em amanhecendo, os da companhia de Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, que era a guarda da estância do lado do castelo, viram sobre as ameias de uma das torres posta uma bandeira que parecia de paz, pelo que o conde mandou fazer sinal aos de dentro para seguramente poderem sair e dizerem o que queriam. Assim se fez, dando-lhe da parte do alcaide recado para sobre seguro virem falar sobre o acordo de paz. Logo o conde mandou dizer ao rei que respondeu que desse ao alcaide todas as seguranças que lhe pedisse para se encontrar com ele. Andando eles nestes recados de uma e outra parte se teve por suspeita que alguns dos capitães e gente mais inclinada à vitória misturada com sangue do que à paz e concórdia, tendo-se por afrontados por o rei exigir a vila para o acordo, acometeram com tanta fúria pelas partes por onde o muro estava derrubado que subitamente entraram pelo alto do muro. Os mouros que estavam descuidados por causa do acordo que de ambas as partes se fazia, acudiram com muita pressa, defendendo tanto o muro quanta a sorte em caso tão súbito quis conceder. Os nossos como já tivessem pressuposto de antes morrer que regressar ao rei sem vitória que, sem seu mandado, determinaram naquele dia alcançar, fizeram recolher os mouros para dentro de maneira que, embora a entrada custasse a vida a muitos deles e a muitos mais o sangue, eles a fizeram segura aos que os seguiam de modo que a vila foi entrada antes de o rei saber. Depois de o saber, o rei pediu com grande pressa o capacete porque das outras peças necessárias andava sempre armado e fazendo o príncipe o mesmo se foram ao lugar por onde a vila fora acometida e porque as entradas que se fizeram no muro não eram tão grandes para que pudesse passar bem tanta gente quanta se requeria e a gritaria e brados eram tão grandes dentro da vila que o rei Dom Afonso V bem podia pensar ser muito necessário acudir aos seus. Então mandou pôr aos muros algumas escadas que já eram tiradas por terra porque subiu muita gente. Alguns acudiram às portas da vila e as abriram por onde o rei e o príncipe logo entraram. Com este socorro, não podendo os mouros resistir ao ímpeto dos nossos, uns recolheram-se à mesquita e outros ao castelo, lugar muito forte, onde depois posta boa guarda, o rei com os seus agradeceram muito a Deus por tão bom princípio de vitória, apesar de ser com perda e dano dos seus.=           p. 116  
                                             
  Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal e com notas da mesma.

Lagos, 10 de Julho de 2017