SEGUNDA PARTE DA CRÓNICA
sobre “Dom Francisco de Almeida e a sua viagem à Índia: 1505-
”
CHRONICA DO REI D. MANOEL escrita por Damião de Goes e dirigida ao príncipe Infante Dom Henrique, seu filho, cardeal de Portugal, do título dos Santos
Quatro Coroados; 1749; PDF - pp. 161 - 188.
Capítulo
I
Do regimento (=
memorandum) que o rei Dom Manuel deu a Dom Francisco de Almeida antes que
partisse para a Índia.
No
ano de 1505, o rei Dom Manuel I
ordenou mandar Dom Francisco de Almeida
por governador à Índia porque
Tristão da Cunha a quem já tinha entregado este cargo, adoeceu de doença de que
ficou cego. Então Dom Manuel mandou chamar Dom Francisco a Coimbra onde,
naquela altura, estava com seu irmão, Dom Jorge, bispo da mesma cidade –
Coimbra – filhos de Dom Lopo de Almeida, primeiro conde de Abrantes.
O
rei Dom Manuel já entendia bem dos negócios da Índia e, por isso, sabia que,
para segurança da Índia, lhe era necessário mandar uma maior armada e mais
gente do que até então fizera e capitão
geral que naquelas partes residisse. Ordenou que nesta viagem fossem
mil e quinhentos soldados em dezasseis naus e seis caravelas
cujos capitães eram o mesmo Dom
Francisco de Almeida, Dom
Fernando de Sá, Fernão Soares, Rui Freire, Vasco de Abreu, João da Nova,
Pero da Anhaia, Sebastião de Sousa, Diogo
Correia, Pero Ferreira Fogaça, Lopo Sanches, Filipe Rodrigues, Lopo de
Deus - capitão e piloto, João Serrão,
Antão Gonçalves – alcaide de
Sesimbra e Fernão Bermudas,
castelhano, filho de Cristóvão Bermudas que foi preso na derrota de Dom Garcia
de Menezes, bispo de Évora e degolado na vila de Lobom em Castela por ter a
parte portuguesa, como na Crónica do Príncipe Dom João é descrito, o trato por
extenso. Das caravelas, eram capitães Gonçalo
Vaz de Goes, Gonçalo de Paiva, Lucas da Fonseca, Lopo Chanoca, João Homem
e Antão Vaz.
A
Dom Francisco de Almeida, o rei Dom Manuel fez muitas mercês por aceitar
este cargo sem nisso pôr dúvidas nem mostrar agravos por o ter dado a Tristão
da Cunha primeiro do que a ele e o mesmo fez a Dom Lourenço de Almeida, seu filho, que o acompanhou à Índia.
Poucos
dias antes que esta armada partisse, o rei Dom Manuel deu o memorandum a Dom Francisco de Almeida tanto para o percurso da viagem como para
depois de estar na Índia e também sobre o poder deste título (por ser o
primeiro a que se deu: governador e
vice-rei da Índia).
Primeiramente,
entre outras coisas:
Mando-lhe
que, de caminho, trabalhe por fazer uma fortaleza
em Sofala, de que dei a capitania a Pedro da Anhaia que consigo mando com navios e gente que para isso
ordenei. Para fazer esta fortaleza, usar com o xeque da terra de toda a amizade
e bem-querença que lhe seja possível, deixando-o livremente usar e gozar dos
direitos que costuma receber dos mercadores que àquele seu porto vêm. Também
quantos aos mouros que ali encontrar, resgatando os aprisionar e lhes tomar o
ouro que tenham resgatado. Se o xeque disto se queixar lhe dizer que o faz por
eles provocarem constantemente guerra aos cristãos, lhes tomarem os seus bens e
os aprisionarem onde quer que o possam fazer. Por tudo isto licitamente lhes
pode fazer a mesma guerra.
Assim
que a fortaleza estiver construída em altura que os nossos se possam defender partir
para Quíloa, onde ordeno que se faça
outra fortaleza. Quando lá chegar,
mandar pedir ao rei as páreas que deve e que, dando-lhas, o trate como
amigo e se ele lhe oferecer resistência, lhe faça guerra como a inimigo e pela
força, faça a fortaleza que fica sob a capitania
de Pero Ferreira Fogaça e por alcaide mor Duarte de Mello. Lá deixar a gente que seja necessária, uma caravela
e um bergantim para guarda da costa.
Com
a maior brevidade que lhe seja possível, partir dali para chegar à Índia a tempo de poder carregar as
naus que hão-de regressar ao reino de Portugal. Antes de partir ou depois,
por qualquer navio da terra, mandar ao rei de Melinde, por um dos degredados que consigo vão, as cartas que lhe
leva e me escrever o que se passara em Quíloa
e, da minha parte, faça-lhe muitos oferecimentos como a bom amigo.
Assim
que partir de Quíloa, mande dois bergantins, que sem entrar no mar do
estreito da Arábia, percorram toda a costa até ao cabo de Guardafum para lhe
trazerem novas (= notícias) a Anchediva de tudo o que
encontrarem naquela costa.
Fazer
também uma fortaleza nesta ilha de Anchediva, cuja capitania fica a cargo
do capitão Manuel Pessanha. Da
madeira que leva mandar fazer galés e fica ali por provedor desta obra João Serrão.
Isto
feito e a fortaleza construída em altura que lhe pareça defensável, partir para
Cochim, deixando Manuel Pessanha com duas caravelas
das que leva e se lhe parecer necessário deixar-lhe mais alguns navios, faça-o.
De
Anchediva vá sempre ao longo da
costa até Cochim para ver se pode
tomar algumas naus de Calecut. Ao rei de Calecut faça sempre guerra cruel por
ser inimigo capital, mas aos de Cochim e de Cananor favorecer
sempre como amigos. Dar-lhes-á as minhas cartas e presentes que lhes leva com
os oferecimentos que lhe pareça necessários.
Feito
isto, trabalhar para despachar as naus que hão-de regressar ao reino de
Portugal de que serão capitães Rui
Freire, Fernão Soares e Sebastião de Sousa. Sabida a carga que
há em Cochim para as naus, passar logo a Coulão
com as outras naus para lá as fazer carregar e entregar as cartas que leva para
o rei de Coulão, estando ele ali e, sobretudo trabalhar para ter licença do rei
para construir ali uma fortaleza.
Em
qualquer lugar destes que as naus fazem carga; assim que três estejam prontas
dêem-lhes capitães e despachem-nas para o reino de Portugal sem
esperarem pelas outras até que todas estejam enviadas em Janeiro. Despachadas
aquelas que haveria de mandar com carga até ao mês de Janeiro seguinte, vá ao
mar da Arábia, deixando providas de defesa as fortalezas de Cochim e Anchediva e, na sua opinião, onde melhor lhe parecer, faça uma fortaleza
para impedir a navegação aos mouros de Meca para a Índia. Quando a fortaleza
estiver acabada, fica nela por capitão Manuel
Pessanha que consigo leva de Anchediva e por alcaide mor Fernão Sanches. Deixar-lhes todas as
munições de guerra que lhes sejam necessárias, segundo a qualidade do lugar,
lembrando-lhe quão longe ficam do socorro.
Depois
de tudo feito, regressar à Índia. Assim que lá chegar, mandar fazer a fortaleza de Coulão (se para isso tiver
licença do rei) e nesta fica por capitão Lourenço
de Brito.
Quanto
ao rei de Calecut, se ele mandar pedir paz, aceite; se o rei de Cochim ficar
contente com isso, mas com a condição de todos os mouros de Meca saírem da
cidade, dando o rei de Calecut, para acordo desta paz, todos os reféns e
seguranças necessários e quando regressar do mar da Arábia para a Índia, fazer
da sua armada as frotas que lhe parecer adequadas, mandando com elas percorrer
as costas de Chaul, Dabaul, Cambaia e Ormuz.
Com
todos os reis que queiram comigo paz
faça-a, impondo-lhe os tributos que honestamente possam pagar.
Recomendo-lhe
que trate muito bem todos os cristãos que nessas partes houver e o mesmo para
aqueles que se convertam à fé de qualquer Lei e seita que sejam.
Se
lhe parecer bem, dar assentamentos aos senhores e pessoas principais
daquelas províncias, faça-o segundo a qualidade de cada um deles.
Sobretudo
pela grande confiança que em si
tenho lhe dou poder para providenciar tanto nas coisas da justiça como nas dos
bens. Recomendo-lhe que faça de maneira que seja inteiramente guardado o seu
serviço e a justiça conservada e feita a todos geralmente, cumprindo além do
que está obrigado pelo cargo que tem. Nisso me fará muito grande
serviço.= p. 163
Capítulo
II
Do que Dom Francisco de
Almeida passou desde o dia que partiu do porto de Belém, Lisboa até chegar a
Quíloa e o que aí fez.
A
armada pronta e o rei Dom Manuel
presente, Dom Francisco de Almeida
partiu do porto de Belém no dia 25 de
Março de 1505, sem a nau de Pero da Anhaia porque se perdeu no mesmo porto
com a tormenta. Por este motivo, no fim do memorandum que o rei Dom Manuel deu
a Dom Francisco de Almeida lhe mandou que não parasse em Sofala e fosse directo
a Quíloa fazer a fortaleza que lhe
mandava que lá fizesse.
Partida
a armada com muito bom tempo, Dom
Francisco de Almeida chegou ao porto Dale,
na costa da Guiné, onde esteve nove dias, fazendo aguada e foi ali bem
festejado pelo rei da terra. Após fez-se à vela no dia 25 de Abril e estando já quase junto da linha equinocial
apanhou calmarias que duraram catorze dias.
Andando
assim neste trabalho, por parecer e conselho dos outros capitães porque algumas
destas velas eram indolentes e não conseguiam acompanhar as outras, Dom Francisco de Almeida dividiu
a frota em duas capitanias, tomando para a sua capitania treze naus e
a caravela de Gonçalo de Paiva e das naus de Lopo Sanches e de Sebastião
de Sousa com as cinco caravelas deu a capitania a Manuel Pessanha, sogro de
Sebastião de Sousa, em cuja nau ia provido do material necessário para
construir a fortaleza em Anchediva.
Separadas
estas capitanias, passaram todos juntos a linha equinocial no dia 29 de Abril, depois das armadas
apartadas uma da outra e na rota a nau de Pero Ferreira Fogaça com
calmarias e banzear (= pequena ondulação) por ser muito velha, fez por duas vezes água e na última foi ao
fundo sem dela se salvar mais do que a gente e uma arca de prata da capela
de Dom Francisco de Almeida.
Passada
esta calmaria e seguindo sua viagem, os pilotos, por má navegação e por medo do
cabo da Boa Esperança, puseram-se em altura de 40º sul, onde por já nesta
altura ser inverno naqueles lugares, tiveram dias muito pequenos com tantos
frios e neves que as pás a lançavam fora das naus. Com este trabalho Dom Francisco de Almeida dobrou o cabo da Boa Esperança no dia 26 de Junho, 175 léguas a la mar e
chegando-se o mais que pôde a terra, no dia 02 de Julho, apanhou uma trovoada tão forte que rompeu as velas da
sua nau e as de Diogo Correia. Na
nau de Diogo Correia, três homens caíram ao mar e um só se salvou porque sabia
nadar. Para todo o príncipe, rei e senho,r por grande que seja, é muito
importante que dê oportunidade a seus filhos de aprenderem a arte e
exercício do nadar, com o qual muitos se salvaram de grandes perigos e outros,
por não saberem nadar se afogaram em pequenos vãos. Este homem chamava-se Fernão Lourenço; como caiu à água ao
vir à superfície da água levantou um braço para que o vissem e disse em alta
voz que mandassem ter atenção a ele até pela manhã porque até então se atrevia
a nadar. O capitão assim fez e no dia seguinte foi retirado da água.
Nesta
tormenta, perdeu-se da frota, a nau de João
Serrão, pela qual Dom Francisco de Almeida a andou procurando durante
alguns dias, mas vendo que não aparecia mandou seguir viagem e no dia 18 de Julho viram as ilhas Primeiras e logo enviou Gonçalo de Paiva para Moçambique
a saber se as armadas de Afonso de Albuquerque, de Francisco de Albuquerque e
de Lopo Soares Alvarenga já tinham passado para o reino de Portugal e para
saber o que lhes acontecera nas suas viagens.
Depois
Dom Francisco de Almeida partiu em
rota directa para Quíloa, onde
chegou no dia 22 de Julho e, porque
a nau de Gonçalo de Paiva lhe ficava
a ré e Dom Francisco de Almeida já avistava Moçambique, enviou Fernão Bermudas com a mesma missão.
Ancorada
a armada na barra de Quíloa, Dom Francisco de Almeida mandou João da Nova visitar o rei, mas o rei,
com receio dos erros que tinha cometido contra os nossos depois da visita, saiu
da cidade o mais secretamente que pôde, ficando nela Mahamed Anconii.
Com
este Mahamed Anconii fizeram corpo os que ficaram na cidade em que haveria mil
e quinhentos homens de peleja com intenção de se defenderem.
Dom Francisco de Almeida vendo que o rei não lhe vinha falar
como lhe mandara dizer por cinco mouros que, com receio do que já suspeitava,
não quis deixar regressar a terra, no dia seguinte pela manhã, dia 23 de Julho, véspera do dia do apóstolo Santiago, deu na cidade
com trezentos homens e Dom Lourenço,
seu filho, com duzentos; Dom Francisco de Almeida desembarcando na parte que
estava à frente da frota e Dom Lourenço
desembarcando à frente das casas do rei chegaram à praia na altura em que batia
a água nas casas por ser preamar.
Dom
Francisco saiu logo primeiro do que todos a terra com a bandeira real que Pero Cão, que servia de alferes levava
e, após ele os outros capitães sem acharem resistência. Parecendo isto cilada,
Dom Francisco de Almeida mandou que entrassem pela cidade muito atentos na
ordem que para isso lhes deu.
Nesta
ainda encontraram alguma gente ainda tão desordenada que sem nenhum perigo
chegaram a umas casas do rei que estão no cabo da cidade, onde Dom Francisco de Almeida já encontrou o
seu filho Dom Lourenço que até ali
viera sem encontrar quem lho estorvasse. Mahamed
Anconii tinha por intenção não pelejar com os portugueses e por isso, na
mesma hora em que desembarcaram, ele saiu da cidade com a mais gente de guerra
que lá havia.
Quando Dom
Francisco de Almeida chegou às casas do rei mandou logo quebrar as portas
que estavam fechadas e, pensando que o rei estivesse lá dentro, disse a Dom Lourenço que entrasse adentro e o
prendesse e lho trouxesse vivo, mas Dom Lourenço não o encontrou nos paços e de
alguns mouros que ali se acolheram, que para sua salvação puseram uma bandeira
das quinas numa torre dos paços, soube que o rei tinha fugido.
Encerrado
este assunto, Dom Francisco de Almeida
foi instalar-se numa das melhores casas da cidade que estavam sobre o mar,
dando logo permissão à sua gente que fosse saquear a cidade, mas impondo-lhes
que não pusessem fogo a coisa nenhuma e que tudo quanto achassem de valor
pusessem numa casa junto das suas para ser depois repartido por todos e assim
foi feito. Relativamente a muitas mercadorias e algumas coisas de ouro e prata
que trouxeram, Dom Francisco tomou para si apenas uma flecha, dizendo que para
ele aquilo bastava.
Após
esta pacifica vitória, Dom Francisco de Almeida armou alguns cavaleiros e um
deles foi Fernão Peres de Andrade, pessoa que depois na Índia e em outras
partes fez serviços assinaláveis a estes reinos de Portugal.
Logo
no dia seguinte se começou a construir a fortaleza nas mesmas casas onde se
hospedava por estarem em lugar próprio para a construção da fortaleza por a
água bater nestas casas. Para segurança, mandou derrubar tantas casas vizinhas
a estas quantas achou necessárias. Fez um terreiro muito espaçoso por onde a
artilharia podia varejar uma boa parte da cidade e por honra do bem-aventurado
apóstolo Santiago, em cujo dia a construção da fortaleza foi iniciada, esta
fortaleza de Quíloa foi chamada fortaleza
de Santiago.
Neste
mesmo dia, sabendo Dom Francisco de
Almeida que Mahamed Anconii estava com a gente que com ele
saíra, perto da cidade mandou João da
Nova dizer-lhe que a sua intenção era fazê-lo rei de Quíloa. Podia
regressar e da sua parte dizer o mesmo a todos os que com ele fugiram. Ele
dava-lhes para isso licença e os teria e manteria em justiça como a vassalos do
rei de Portugal, seu senhor, a cuja obediência haviam de ficar com muitas mais
liberdades e privilégios do que tinham em poder do tirano que tinha fugido.
Com
este recado, regressaram todos à cidade no dia
de Santa Ana, 26 de Julho, vindo
Mahamed Anconii num formoso cavalo que
Dom Francisco de Almeida mandou-lhe consertar a gineta com jaezes de ouro e
prata e todos os outros a pé, indo à frente Gaspar, dizendo em alta voz em língua árabe “este é o vosso rei. A ele haveis de obedecer em nome do rei Dom Manuel
de Portugal, nosso senhor, de quem vassalos todos sois.”
Desta
maneira andou por todas as ruas principais da cidade até chegar às casas onde
se fazia a fortaleza, pois ali o estava esperando Dom Francisco de Almeida no terreiro, num palanque aparamentado de
panos de ouro e de seda. Neste lugar, à vista de todo o povo e demais da
nobreza daquela cidade, pôs-lhe uma coroa de ouro na cabeça que levava para o
rei de Cochim e o instituiu rei do reino de Quíloa e ele jurou sobre a sua Lei
de ser leal aos reis de Portugal e de ser seu vassalo com o tributo que já
estava atribuído aos reis daquele reino de Quíloa.
Tudo
assim solenizado, Dom Francisco de
Almeida coroou-o e entregou-lhe o reino e mandou fazer decretos públicos em
línguas árabe e portuguesa que mandou a estes reinos assinados pelo rei Mahamed Anconii e pelos principais
da terra que neste evento estiveram presentes e por Dom Francisco de Almeida e
por todos os capitães da frota e pessoas nobres que nela iam que, no futuro,
serão perdidos como o são muitas outras coisas dignas de memória por não serem
depositadas na Torre do Tombo.
Após
Dom Francisco de Almeida levou o rei Mahamed Anconii aos paços onde o deixou
com muito contentamento dos da cidade e dos nossos por ele mesmo merecer e
pelas boas obras que nele havia. Estando os assuntos neste ponto chegaram de
Moçambique Gonçalo de Paiva e Fernão Bermudas com a notícia de a
terra estar pacífica e cartas que o xeque lhe dera de Francisco de Albuquerque
e de Lopo Soares Alvarenga em que davam aviso aos capitães que por ali
passassem das condições e estado em que deixavam as coisas da Índia. Logo dali
a três dias, dia 03 de Agosto chegou
a Quíloa João Serrão capitão da nau
“Bota Fogo” que com a tormenta se perdera da armada.
Juntas
estas naus e continuando a obra da fortaleza, o rei Mahamed Anconii veio
visitar Dom Francisco de Almeida e
pediu-lhe os mouros que na entrada da cidade tinham sido presos. Dom Francisco
de Almeida mandou-lhos dar e também disse a Dom Francisco de Almeida que ele
fora tão grande amigo do rei Alfudail
que o tirano Abrahemo matara que, se ainda fora vivo, lhe daria o reino de sua
própria e livre vontade com as condições em que o recebera. Já que estava morto,
pedia-lhe que quisesse conceder, por morte dele, Mahamed Anconii, que ficasse o
reino a um filho do dito rei defunto, embora ele mesmo tivesse filhos que lhe
podiam suceder e que, antes que dali se fosse, o fizesse jurar por príncipe,
para o que o mandaria logo vir e o teria consigo como a próprio filho.
Dom
Francisco de Almeida concedeu-lhe o que pedia espantado e tanto ele como todos
os da frota e os de terra com uma tão grande e desacostumada virtude. Mandou
logo João da Nova buscar este filho do rei Alfudail
que estava em terra firme, a meia légua da ilha e o fez jurar por príncipe
herdeiro do reino de Quíloa por
falecimento do rei Mahamed Anconii que, nesta altura, teria setenta anos de
idade.
Tudo
acabado e a cidade pacífica, ficando já a fortaleza em altura que se podia
muito bem defender, Dom Francisco de
Almeida partiu de Quíloa na véspera do bem-aventurado
São Lourenço, dia 09 de Agosto
para ir a Mombaça, deixando
instruções a Pero Ferreira Fogaça
que ia nomeado para a capitania desta fortaleza do que havia de fazer e cartas
para Manuel Pessanha, capitão da
frota que, na viagem se separara da sua em que lhe mandava que assim que ali
chegasse (Quíloa) partisse
logo para Mombaça e que se ali não o encontrasse fosse logo para a Índia ou
para Melinde, sabendo que estava ali e que, por guarda daquela costa, deixasse
em Quíloa Gonçalo Vaz de Góis na sua
caravela e um bergantim que depois se havia de armar.= p.166
Capítulo
III
Do que Dom Francisco de
Almeida fez em Mombaça e como depois de a tomar e queimar partiu para Melinde e
de lá para a Índia.
Quatro
dias depois de Dom Francisco de Almeida
se fazer à vela de Quíloa chegou à boca da barra de Mombaça onde, assim que ancorou, mandou logo Gonçalo de Paiva a sondar a cidade com dois mouros pilotos que
trouxera de Quíloa e indo sondando chegaram a um baluarte do qual lhe atiraram
duas bombardadas: uma passou-lhe pelo costado da caravela. Respondendo com a
sua artilharia, tratou o baluarte de maneira que o fogo se acendeu nele e os
que o guardavam fugiram para a cidade.
Após,
regressou com recado a Dom Francisco de
Almeida de que podia entrar sem perigo por a barra ter fundo para isso. Ancorado
diante da cidade, mandou por um dos pilotos mouros recado ao rei de Mombaça que a sua vinda ali era
não para lhe fazer guerra, mas o fazer vassalo do rei de Portugal, seu senhor. Se
quisesse a sua amizade seria tratado com a mesma honra e favor que o eram
muitos reis e senhores de África e da Índia, seus vassalos e amigos, os quais
costumava favorecer e defender e fazer guerra a todos os que faziam a eles. Dom Francisco de Almeida mandou que João da Nova levasse este mouro piloto
no seu batel. Este, antes de chegar a terra, falou na sua língua a alguns
mouros dos que estavam na praia, dizendo-lhes que levava recado de paz.
Se o rei desse permissão ir-lhe-ia falar.
Responderam-lhe
que, se saísse a terra, o fariam em pedaços. Transmitisse ao capitão que havia
muita diferença entre os cavalheiros de Mombaça e as galinhas de Quíloa e que,
na altura adequada, o experimentaria cada vez que quisesse sair com a sua gente
a terra. Dado este recado, Dom Francisco
de Almeida mandou João da Nova,
de noite, no seu batel e outro capitão para lhe sequestrarem o
intérprete como o fizeram e acertou em ser um criado do rei, contínuo de sua
casa.
Dom
Francisco de Almeida prometeu-lhe liberdade se lhe dissesse a verdade do que o
rei determinava e se ele achasse que o estava a enganar, mandá-lo-ia enforcar.
O mouro lançou-se a seus pés e disse que o rei de Mombaça, assim que soubera da
notícia da tomada de Quíloa, se começou a preparar para a guerra e para isso já
tinha na cidade quatro mil soldados e muita artilharia colocada no muro e
torres e que além desta gente esperava ainda mais dois mil homens. Com esta
notícia e com a resposta que da praia deram ao piloto mouro, Dom Francisco de
Almeida teve como certa a guerra.
Logo
no dia seguinte que era véspera da Assunção
de Nossa Senhora, por conselho de Fernão
Soares mandou pôr fogo à cidade por duas partes de que arderam algumas
casas, apesar da sua intenção ser atacar a cidade por assalto antes de lhe
porem fogo. Nisto foi contrariado pelos demais capitães da frota porque a
cidade era muito grande e nela havia muita gente de peleja.
O
fogo ateou-se ao longo da praia de maneira que Dom Lourenço e Fernão Soares que o foram atear não puderam
esperar na praia e recolheram-se aos batéis e dali às naus. Antes de atear o
fogo, houve bastante resistência da parte dos inimigos em que morreram deles
mais de setenta e dos nossos morreram um criado de Dom Francisco chamado Francisco Serrão e um bombardeiro e muitos
foram feridos. No mesmo dia em que se ateou fogo à cidade, Dom Francisco de Almeida decidiu atacá-la no dia seguinte. Duas horas
antemanhã, saiu defronte donde estava ancorado e com ele Dom Francisco de Sá e Lourenço
de Brito, Rui Freire, Gonçalo de Paiva, Filipe
Rodrigues, Fernão Bermudas, Antão Gonçalves e a gente da nau de João
Serrão porque ele estava ferido.
Na
outra parte da cidade, desembarcou Dom
Lourenço de Almeida e com ele Fernão
Soares, Diogo Correia, João da Nova e, apesar de ser tão cedo,
puderam ver dos batéis, pela claridade do fogo que ainda durava, que não havia
gente na praia. Contudo, receando-se Dom
Francisco de Almeida que fosse cilada não quis desembarcar senão ao
amanhecer; então saiu a terra com a bandeira real que Pero Cão levava.
Dom Lourenço de Almeida ocupou a parte que lhe estava destinada
com os seus homens e entrando pelas ruas, por serem muito estreitas, recebiam
grande dano por pedras, zagunchos e lanças de arremesso que lhe lançavam homens
e mulheres das janelas e terraços das casas em tanta quantidade que foram
forçados a se acolherem debaixo das sacadas sem se poderem servir à sua vontade
das bestas (para atirar setas) e espingardas que levavam. Contudo debaixo destas sacadas atiravam aos
que estavam nas janelas e terraços, mas nem por isso os de cima deixavam de
atirar tantas pedras e penedos que nenhum dos nossos ousava passar a descoberto
nas ruas. Constrangidos decidiram acometer a porta de uma casa, onde duas
mulheres cafres de nascimento e alguns mouros que estavam com elas faziam muito
dano aos nossos. Porta arrombada, subiram à casa com assaz perigo, mas quis
Deus que com uma seta um besteiro atravessou a garganta de uma destas mulheres
que logo caiu morta. Os outros espantados começaram a fugir por cima dos
terraços, sendo perseguidos por aqueles que, dos nossos, subiram no alcance deles
até os lançarem fora do lanço daquela rua.
Os
que estavam debaixo das sacadas, começaram a caminhar para a frente, mas
chegando ao início da outra rua, tendo já passado adiante Dom Lourenço de Almeida, entre ele e o esquadrão de João da Nova, os mouros derrubaram uma
parede velha que lhes ocupou o passeio da rua pelo que o guia de João da Nova
de nome Vaqueiro se deteve e assim
fizeram todos os que vinham atrás vendo o guia parado e, nesta espera, foram
tão bem servidos de tiros de arremesso e pedras dos terraços e janelas das
casas que se se mantivessem muito tempo ali seria de grande perigo.
Vendo
isto, o contramestre da nau de João da Nova decidiu subir acima das casas com
dois seus companheiros: um chamado Rui
Fernandes que depois foi seleiro (que trata das selas dos
cavalos) do rei e o outro João Lopes que foi seleiro do cardeal
Dom Afonso, filho do rei. Todos os três, quebrando a porta de uma destas casas,
subiram acima e ao subir a escada, por serem poucos, encontraram bastante
resistência e foram muito maltratados. Se atrás deles, não tivessem subido Fernão Peres de Andrade, o feitor e o escrivão
da nau de João da Nova e Duarte
Fernandes que depois foi tesoureiro do Tesouro Real e outros que fizeram
fugir os mouros, de terraço em terraço, até despejarem toda a rua.
Isto
feito, passaram adiante, onde Dom
Lourenço de Almeida os encontrou e sabendo do perigo em que estavam,
voltara atrás a socorrê-los e assim todos juntos chegaram aos paços do rei que
já tinha fugido. Nestes paços, encontraram Fernão
Bermudas que bradando de um terraço “Portugal;
Portugal” disse a Dom Lourenço
que Dom Francisco, seu pai, já tinha
passado adiante e o mesmo lhe disse Rui
Freire que encontrou a porta destes paços e lhe mostrou a rua por onde
fora.
Dom Francisco de Almeida, antes disso, guiado pelo mouro que
João da Nova tomara, chegou quase até aos paços do rei sem encontrar
resistência, mas dali por diante encontrou alguma. Contudo chegou a eles sem
nenhum dos seus ser ferido e já não encontrou o rei porque este, sabendo como a
cidade tinha sido entrada e que os nossos estavam já juntos nas ruas vizinhas
aos paços, saiu dos paços fugindo para uns palmares onde se fez valentão. Vendo
Dom Francisco de Almeida como os
paços estavam sem gente deixou a guardá-los Fernão Bermudas, Rodrigo
Rabelo e Rui Freire com a gente
de suas capitanias de naus.
Dom Lourenço de Almeida, passando adiante em busca de seu
pai, achou-o bem ocupado com os inimigos. Com a sua vinda e socorro muito audaz
dando logo Santiago nos mouros com tanto esforço que foram constrangidos a
deixar a rua e acolherem-se a uns palmares onde o rei estava.
Após,
Dom Francisco de Almeida mandou Dom
Lourenço ir para os paços e pôr guarda nos bens que lá havia e para lhe mostrar
as casas e lugares onde o rei tinha seus tesouros e recâmara mandou com ele o
mesmo mouro que tomara a João da Nova que, por ser criado do rei, sabia muito
bem onde estas coisas estavam e Dom Francisco de Almeida foi com a sua gente
dar uma volta pela cidade. Percebendo que de todo estava vazia, regressou aos
paços do rei, onde já estava Dom
Lourenço de Almeida sem neles ter encontrado o tesouro que pensava existir
nem coisa que fosse de valor. Isto foi por volta do meio-dia e a esta hora já
estavam ali todos os capitães que, após comerem e tomarem um pouco de repouso,
Dom Francisco mandou que fossem saquear a cidade e que o despojo fosse levado
às naus para depois se repartir por todos e assim foi feito.
O
rei de Mombaça, vendo o erro em que
caíra, quando Dom Francisco de Almeida se recolheu à cidade, mandou pedir
paz, mas este seu pedido não teve resposta, apesar de sobre isso terem ido
e vindo alguns recados.
Na
cidade, foram encontradas muitas bombardas de ferro e outras munições de guerra
que levaram para a frota com todo o resto do despojo. Dos da cidade, morreram
mais de mil e quinhentas pessoas como depois se soube e ficaram prisioneiros
duzentos entre os quais mulheres muito brancas e formosas e estes todos
escolhidos entre mais de dois mil que aprisionaram e aos outros pô-los em
liberdade. Entre os prisioneiros estavam os senhorios de três naus de Cambaia
que estavam em manutenção diante da cidade.
Dos
nossos morreram cinco homens da companhia de Dom Lourenço de Almeida e muitos
ficaram feridos, entre os quais Dom
Fernando de Sá com uma flecha no dedo polegar do pé direito que o
trespassou. Desta ferida, por a seta estar envenenada, ele morreu dali a poucos
dias.
Depois
da cidade ser saqueada, quando Dom Francisco de Almeida se recolheu, mandou
atear-lhe fogo novamente e ardeu toda e, porque o vento era contrário, mandou
toda a frota sem rumo fora do porto e assim esteve sete dias. Por estes dias,
chegou ali Vasco Gomes de Abreu que
se perdera da armada.
Postas
as naus ao largo, Dom Francisco de Almeida tomou a sua rota para Melinde, mas não pôde tomar a cidade
porque a corrente o levou a uma angra que está abaixo oito léguas, chamada Santa Helena, onde encontrou as
caravelas de João Homem e Lopo Chanoca que eram da armada que se
apartara da sua e de que dera a capitania a Manuel Pessanha, mas não encontrou nem João Homem nem Lopo Chanoca
porque estes tinham ido por terra em busca de mantimentos e dos que encontrou nas
caravelas soube que, com tormenta, se separaram da outra armada e que João Homem descobrira, antes de chegar
ao cabo da Boa Esperança três ilhas, a dez léguas uma da outra a que pusera
nome a uma Santa Maria da Graça, a
outra São Jorge e à terceira São João. Eram muito frescas e de
muitas águas e arvoredos; lá fez aguada e tomou muito pescado, lobos marinhos e
aves de que tinha muita necessidade para provisão da viagem.
Daquela
ilha viera ter a Zanzibar, onde o
rei lhe fizera muita cortesia e outros muitos oferecimentos e lhe mandava muita
fruta e refrescos da terra, vacas, carneiros e galinhas como presentes,
mostrando-se muito grande servidor do rei Dom Manuel.
Dom Francisco de Almeida, apesar de desejar muito se
encontrar com o rei de Melinde não o
pôde fazer por o vento não ser o adequado para poder chegar com a frota à
cidade e por não poder esperar mais porque se passava o tempo estipulado, dali
mandou Fernão Soares e Lopo Correia visitar o rei com um
presente que lhe enviava o rei Dom Manuel. Com eles regressaram João Homem e Lopo Chanoca e veio também um irmão do rei por quem este mandava
visitar Dom Francisco de Almeida com refrescos da terra e outros presentes.
Desta
angra, Dom Francisco de Almeida quisera ir à cidade de Magadoxo para a destruir, mas por conselho e parecer dos capitães e
pilotos não o fez porque era fora do seu caminho e poderia, por causa disso,
passar-se-lhe o tempo de navegação da Índia.
Partiu
desta angra no dia 27 de Agosto.
Neste dia, faleceu Dom Fernando de Sá
da seta com que foi ferido em Mombaça
e Dom Francisco de Almeida deu a capitania da sua nau a Rodrigo Rebelo. Seguindo viagem com tempo galerno (=
bom tempo), chegou à ilha de Anchediva no dia 13 de Setembro do mesmo ano de 1505 em que partira de Portugal. Em Anchediva, encontrou as cartas
de Gonçalo Gil Barbosa, feitor de Cananor, que lhe deu um mensageiro
indiano a que os da terra chamam patamares porque avisava qualquer
capitão que ali chegasse que tinha muita especiaria pronta para a carga das
naus e que se pudessem esperar todo o mês de Setembro viriam dar às suas mãos
três naus de Meca muito ricas e bem armadas que vinham para Calecut.
Dom
Francisco de Almeida despachou logo João
Homem para Cananor, Cochim e Coulão a dar novas da sua chegada e
aviso das naus que havia de mandar para o reino de Portugal por a sua carga
estar pronta e a Lopo Chanoca e Gonçalo de Paiva mandou que vigiassem a
costa de maneira que estas três naus não passassem.
Depois,
começou logo a edificar a fortaleza de
Anchediva sobre os alicerces de um
antigo edifício que encontrou na ilha junto do mar e a par deles algumas cruzes
pintadas de preto e vermelho em paredes por serem, noutro tempo, de alguma
ermida ou igreja de cristãos. Nesta obra, tanto nobres como populares trabalhavam
todos cada um em seu turno e para ajuda deste trabalho veio a calhar a chegada
de Sebastião de Sousa em cuja nau
vinha Manuel Pessanha por capitão da
armada que Dom Francisco de Almeida
apartou da sua antes de passar o cabo da Boa Esperança e com ele Antão Vaz porque Gonçalo Vaz de Góis ficara em Quíloa
por assim deixar estabelecido Dom Francisco de Almeida e de Lucas da Fonseca nem de Lopo Sanches souberam dar notícias, mas
antes, segundo os temporais que passaram, os tinham por perdidos.
Contudo
Lucas da Fonseca invernou em
Moçambique e veio depois ter à Índia, mas Lopo
Sanches perdeu-se entre o cabo das Correntes e a aguada da Boa
Paz onde morreu afogado com todos os que com ele iam, salvo cinco homens
que Pero Barreto, um dos capitães da
armada de Pero da Anhaia, indo ao longo da costa, tomou quase meio-mortos de
fome. Por Manuel Pessanha, Dom Francisco de Almeida soube que Abrahemo rei que fora de Quíloa, vendo-se despojado do reino,
assim que Dom Francisco partira, ordenara matar à traição o rei Mahamed Anconii para o que mandou um homem muito esforçado que, pondo em
marcha aquilo a que viera, ferira o rei Mahamed
num braço com uma agomia de que se curou, mas o traidor foi logo preso e
esquartejado por justiça com pregões ao modo deste reino de que o rei Mahamed
ficou muito satisfeito e os da terra muito atemorizados.= p. 170
Capítulo
IV
De como o rei de Onor,
Timoja e o alcaide de Cintacora mandaram
pedir paz a Dom Francisco de Almeida e este lha concedeu e de como o rei
de Onor a quebrou e foi desbaratado.
Dois
dias depois da vinda de Sebastião de
Sousa, chegaram Lopo Chanoca e Gonçalo de Paiva com uma presa de zambucos
de mouros onde traziam muitos prisioneiros e com eles entrou um catur do
Malabar em que vinha um português com recado de Gonçalo Gil Barbosa, feitor de Cananor para Dom Francisco de Almeida de como, das três naus de Meca que
esperavam, uma nau já tinha chegado a Calecut, onde vinham quatro
venezianos, mestres de artilharia que o rei de Calecut mandara pedir ao sultão
da Babilónia e que se fazia prestes para a guerra que se receava por causa da
sua vinda (de Dom Francisco de Almeida) e que em Cananor, Cochim e Coulão haveria vinte mil quintais de especiarias. Sabendo Dom
Francisco de Almeida que a nau de Meca tinha passado, voltou logo a mandar Lopo
Chanoca e Gonçalo de Paiva a vigiar as outras duas que esperavam. Com os mouros
que tomaram nos zambucos povoaram uma galé real de duas que trazia para
preparar de Portugal e deu-lhe a capitania a João Serrão por vir assim ordenado no memorandum do rei Dom Manuel, encomendando-lhe a
guarda da costa com dois bergantins que se fizeram para acompanhar a galé
e eram seus capitães Simão Martins e
Jácome Dias. Por esta altura,
recebeu recado de Merlão, rei de
Onor, uma cidade que fica dali a oito léguas, situada ao longo de um rio que
abaixo dela uma légua e meia desagua no mar e esta cidade é povoada por muitos
mouros e gentios. Este rei, Merlão, pagava páreas ao rei de Narsinga e
consentia acolher-se no porto desta cidade um armador gentio chamado Timoja, corsário de tudo o que
apanhasse porque este lhe pagava todos os anos quatro mil pardaus de páreas
das presas que fazia. Estes sabendo que Dom Francisco estava em Anchediva mandaram-lhe pedir paz
com um bom presente de mantimentos que este logo lhes concedeu. Deste
mensageiro Dom Francisco soube que a uma légua dali, na entrada de um rio,
estava uma fortaleza de mouros chamada Cintacorá do reino de Dacam
onde haveria mais de mil homens a pé e de cavalo e o alcaide desta fortaleza
era vassalo do Cambaio senhor de Goa
que tinha às vezes guerra com o rei de Onor.
Assim
que o mensageiro partiu, Dom Francisco
de Almeida mandou Dom Lourenço de Almeida sondar a barra
deste rio e com ele Sebastião de Sousa,
João da Nova e Antão Vaz, todos em batéis com bandeiras de paz. Chegados ao rio,
descobriram que na foz teria três braças de altura e dentro cinco e da entrada
da barra viram a fortaleza sobre um outeiro. Logo desceram mouros à praia que
segundo o corpo que faziam deviam ser mil homens todos gente limpa e bem
armada a pé, salvo oito que vinham em cavalos à bastarda muito formosos entre
os quais o alcaide era um que vendo como os nossos iam com bandeira de
paz, foi receber Dom Lourenço à praia, onde logo a estabeleceu com ele. Depois o
alcaide recolheu-se à fortaleza sem saber quem era Dom Lourenço, mandando logo
um presente de refresco da terra a Dom Francisco de Almeida e dali a nove dias
mandou um embaixador para confirmar esta paz com dois zambucos
carregados de arroz, trigo e outros mantimentos. Dom Francisco de Almeida confirmou-lha e deu-lhe visto para
poder tratar e navegar para onde quisesse. Ali naquela ilha de Anchediva antes que a frota se
espalhasse, Dom Francisco mandou vender em leilão o despojo de Mombaça e
repartir por todos segundo a qualidade de cada um.
Após
e estando já para partir, os nossos viram uma nau atravessar à vista da ilha de
Anchediva e logo saíram alguns capitães nos batéis. Os que iam nessa nau, que
eram mouros com medo, puseram a proa em terra para se salvar já perto do rio de
Onor. Nesta nau, os nossos encontraram dezanove cavalos que quiseram
levá-los nos batéis por não poderem desencalhar a nau. Ocupados nisto,
subitamente levantou-se uma enorme tempestade em que se perderam os batéis,
pelo que os nossos, contentando-se com nove que tinham já embarcados, se
afastaram da nau. Foi tanta a fúria do mar que os lançaram dos batéis para se
salvarem em terra onde já acudiam alguns mouros de uma povoação que está perto
dali a quem os nossos rogaram que, como vassalos do rei de Onor, pois aquela
terra lhe pertencia e com quem o governador estava em paz, lhes guardassem
aqueles cavalos e por o temporal não lhes dar lugar para mais
acolheram-se a Anchediva, donde
depois regressaram para apanhar os cavalos, mas os mouros disseram que o rei
de Onor mandara buscá-los.
Dom Francisco de Almeida sabendo disto queixou-se ao rei por
ter com ele paz que ficaria quebrada se ele não lhe devolvesse os cavalos. O
rei respondeu que pagaria os cavalos. Não cumprindo com o que dizia, Dom
Francisco de Almeida decidiu ir sobre ele porque já tinha pouco a fazer na
fortaleza que, por estar de maneira que se podia defender, entregou a Manuel Pessanha e deu-lhe artilharia,
mantimentos e oitenta homens
portugueses e oficiais para a acabar.
Após
partiu para Onor a uma quinta-feira,
dia 16 de Outubro e no mesmo dia à
noite chegou à foz do rio e na sexta pela manhã mandou Fernão Soares a sondar o rio no seu batel. Este achou que não
podiam entrar no rio senão caravelas e outros navios pequenos e disse a Dom Francisco de Almeida que vira
muitas naus em manutenção e elas tão grandes como as nossas e que alguns mouros
mercadores lhe pediram que as não queimasse porque queriam paz com ele e fariam
com que o rei pagasse os cavalos. Com este recado Dom Francisco de Almeida esperou
todo aquele dia, mas vendo que eram palavras ocas o que os mouros diziam,
mandou logo embarcar nos batéis, esquifes e numa caravela seiscentos
homens e com o luar que fazia foi ter antemanhã sobre a cidade, onde toda a
noite os moradores não fizeram senão retirar as mulheres, filhos e bens para se
salvarem para uma terra perto do lugar e bem quiseram todos que o rei pagasse
os cavalos o que ele não fez por ser
muito cobiçoso dos bens dos outros.
Contudo
no dia seguinte em amanhecendo, dois mouros foram falar a Dom Francisco dizendo-lhe da parte dos mercadores que queriam
paz e que fariam com que o rei pagasse os cavalos. Dom Francisco de Almeida
respondeu-lhes que ou os pagava ou as naus que estavam no porto seriam
queimadas porque sabia ao certo que estavam ali algumas de Calecut. Os mouros
negaram isto e foram-se embora sem mais regressarem. Dom Francisco de Almeida comunicou a Dom Lourenço que se não
houvesse conclusão no que os mouros diziam, saísse a terra com alguma gente e
queimasse as naus e assim se fez.
O
rei, vendo isto da serra donde estava, mandou a maior parte da gente que tinha
consigo juntar-se aos que já mandara à cidade para a defenderem que aparentava
serem cerca de quatro mil homens de que a maior parte eram flecheiros. Dom Francisco de Almeida, vendo que o
corpo da gente dos inimigos crescia, mandou gente da sua nau a Dom Lourenço para que os fosse atacar,
deixando-se estar nos batéis para não deixar que os inimigos apagassem o fogo
das naus nem o fogo que já alastrava pela cidade.
Dom
Lourenço achou os inimigos em muito boa ordem porque os adargados estavam adiante,
amparando os flecheiros que dali atiravam ao inimigo ferindo alguns dos nossos.
Vendo isto, Dom Lourenço esforçou os nossos ainda mais, apertando tão rijo com
os inimigos que os fez retirar para a serra. Dom Francisco que estava nos
batéis, vendo que os inimigos fugiam e temendo que os nossos os seguissem mais
do que necessário, mandou dizer a Dom Lourenço que se recolhesse. Os inimigos,
pensando que era com medo, voltaram a atacar-nos e andaram tanto às voltas com
os nossos até que chegaram todos de mistura ao rio, onde os nossos acharam os
batéis metidos para dentro para não ficarem em seco que vazava a maré, o que
foi causa de se embarcarem pela água.
Contudo
Dom Lourenço com toda a mais companhia recolheu-se nos batéis ficando a salvo,
onde encontrou o seu pai ferido no polegar esquerdo com uma flechada que
lhe deram quando os nossos se recolhiam.
Isto
acabado, recolheram-se para as naus deixando queimadas 14 naus dos inimigos e
mortos vinte e dois e muitos feridos e queimada grande parte da cidade sem lhe
matarem mais do que um só homem.
Recolhido
Dom Francisco de Almeida à frota, no
mesmo dia à tarde, o rei de Onor mandou-lhe dizer por Timoja e por dois mouros que ele estava muito arrependido do que
fizera. Queria pagar os cavalos e fazer-se vassalo do rei de Portugal. Eles
ficaram por reféns. Dom Francisco respondeu-lhe que, por enquanto, não podia
estabelecer com ele paz porque estava muito ocupado. Quando estivesse em Cochim mandaria o seu filho com quem
ele estabeleceria a paz. Para sua segurança deixava uma bandeira com as
armas de Portugal para que a nossa armada não lhe fizesse dano. Os
mensageiros regressaram muito contentes para a cidade.
Depois
disto, Dom Francisco de Almeida partiu para Cananor no mesmo dia, onde chegou a uma quarta-feira, dia 22 de Outubro.= p. 173
Capítulo
V
Do que João Homem fez a
uns mouros de Calecut que estavam em Coulão e do que mais lhe aconteceu e de
como o governador Dom Francisco de Almeida chegou a Cananor e se chamou
vice-rei.
Da
ilha de Anchediva, o governador mandou João
Homem a dar recado da sua vinda aos feitores de Cananor, Cochim e Coulão.
Depois dos recados entregues em Cananor e Cochim se foi a Coulão onde soube
pelo feitor António de Sá que havia
na terra muita pimenta e que já fora carregada em trinta e quatro naus de mouros
de Calecut que ali estavam. Ele não se queixara disso ao rei, mas parecendo
a João Homem que isto não bastava, como era guerreiro e pouco ponderado,
pareceu-lhe melhor outro conselho: mandar tomar os lemes e velas às naus dos
mouros. O feitor, sem pensar nas consequências destes actos, consentiu e João
Homem fez, com a ajuda de Pero Rafael
que aí estava com a sua caravela, sem os mouros ousarem resistir com medo que
lhes metessem as naus ao fundo. Tomadas as velas e lemes, João Homem entregou tudo ao feitor que ficou muito contente,
crendo que ficava seguro com penhores que depois lhe custaram a vida.
Isto
feito, João Homem partiu para Cochim
para se encontrar com o governador e dar-lhe conta do que fizera. Não o
encontrou em Cochim e seguiu adiante. Na paragem de Cananor, tomou duas naus pequenas de mouros em que depois de
os meter debaixo da coberta pôs em cada uma três portugueses para com este
aparato ir receber o governador que avistou antes de dobrar o monte Deli. Dom Francisco de Almeida vendo,
de súbito, as três velas imaginou que eram inimigos porque sabia que não fora
adiante mais do que a caravela de João Homem. João Homem foi tão mofino (=
infeliz) que, avistando o governador, os
mouros soltaram-se de uma das naus que ia afastada dele a la mar e mataram os
três portugueses e se foram sem os portugueses os poderem tomar de novo.
Dom Francisco de Almeida ficou tão irritado que quisera
tirar-lhe de imediato a capitania da caravela se não fosse os muitos fidalgos
lhe rogarem por ele, contudo João Homem
nunca mais foi do agrado do governador.
Neste
mesmo dia, quarta-feira, 22 de Outubro,
o governador chegou ao porto de Cananor
com o intuito de deixar aí por feitor Lopo
Cabreira que para isso tinha vindo de Portugal e depois ir a Cochim a
carregar as naus que havia de mandar para Portugal.
Isto
sabido pelo feitor Gonçalo Gil Barbosa
disse-lhe que os mouros de Cananor
não eram homens para aí ficarem portugueses sem fortaleza porque, por serem
muito ricos e poderosos, tinham em muito pouca conta o rei que lhe certificava
que muitas vezes estiveram para o matar pelo medo que tinham de que os
havíamos de lançar fora da Índia e em todos estes perigos nunca o rei de
Cananor lhe poderá valer e para isso tinha já começado os alicerces, fazendo
crer ao rei que eram para uma casa de feitoria que fosse forte em que se
pudesse defender dos mouros. Estes motivos de Gonçalo Gil Barbosa pareceram bem
ao governador, pelo que mudou o propósito que levava de ir primeiro a Cochim e
fazer a fortaleza e depois em Cananor e em Coulão.
Isto
estabelecido, decidiu receber na sua nau um embaixador do rei de Narsinga que ali esteve esperando por ele alguns dias. Por
este motivo, foi acordado por todos que já que aquele embaixador era de um tão
grande e poderoso rei e o governador representava a pessoa do rei de Portugal
que, para maior autoridade dali por diante o chamassem de vice-rei e lhe falassem por senhoria,
embora pelo memorandum que trazia não pudesse usar desta dignidade até à
construção das fortalezas em Cochim, Cananor e Coulão que podiam suprir as
fortalezas construídas em Quíloa, Anchediva e Cananor. Dom Francisco de Almeida
consentiu nisto por lhe parecer que cumpria assim a serviço do rei Dom
Manuel. Depois disto estabelecido, mandou Gonçalo
Gil Barbosa que trouxesse o embaixador à nau, no dia seguinte.= p. 174
Capítulo
VI
Em que se tratam de
algumas coisas do reino de Narsinga e poder do rei e ordem de sua Casa.
Este
reino de Narsinga é muito grande,
muito povoado e muito abastado de arroz e legumes, carnes, pescado, frutas e
caças de monte e ribeira; é muito viçoso de hortas e outros arvoredos e de
fontes, rios e ribeiras; há nele minas de ouro e de diamantes.
As
cidades e lugares que tem ao longo do mar estão povoados por mouros e os do
sertão por gentios. Tem muitas e muito diversas idolatrias, crêem muito em
feitiços e agouros. Crêem principalmente em um só Deus que confessam ser Senhor de todas as coisas e depois nos
diabos e crêem que lhes podem fazer mal e por isso lhes fazem muita honra e
casas a que chamam pagodes de que há
muito por todo o reino e muito sumptuosos e de grandes rendas (rendimentos) em que estão brâmanes e noutros pagodes mulheres.
Há aí outros homens que têm por santos a que chamam baneanes. Estes trazem ao pescoço uma pedra tão grande como
um ovo com um buraco onde metem três linhas e dizem que aquele é o seu Deus. São muito acatados por reverência
destas pedras a que chamam tambarane.
Não comem carne nem peixe. Casam uma só vez na vida. Quando morrem as suas
esposas enterram-se vivas ao lado deles e as dos gentios leigos se queimam; o
que fazem de sua própria vontade tanto umas como as outras. Têm jejum em certa
altura do ano. Fazem o seu dia de descanso à sexta-feira. Têm dias certos e
solenes em que fazem grandes festas. Crêem que há outra vida depois desta
e que os bons têm glória e os maus penam, mas não para sempre.
A
gente deste reino é baça e parte dela preta e bem disposta. Tratam-se bem em
seu comer e vestir. Costumam muito andar apaixonados e sobre isso se fazem
muitos desafios. Os que desafiam pedem campo ao rei e se são homens de linhagem
o rei vai o ver, o que fazem a pé em estacada. Têm padrinhos e juízes que
julgam o desafio. Estes são entre eles tão acostumados que o rei que sabe que é
um homem bom cavaleiro manda pôr no braço direito uma cadeia de ouro
em sinal de valentia pelo que fica obrigado a defendê-la por armas a
quem quer que lha queira tomar, a que chamam vueert na língua alemã(?) que quer dizer merecimento. Os oficiais mecânicos costumam também fazer estes
desafios sobre quem sabe melhor o seu ofício e também outras pessoas sobre
qualquer boa arte das que os homens têm.
A
maior cidade deste reino e principal chama-se Bisnegar que tem uma boa légua de circuito de muro muito forte. É
bem arruada, tem muitas praças e muito boas casas de pedra e cal e outras
palhotas e muito grandes e muito formosos pagodes.
Há
nela tanta gente que não cabe pelas ruas; há muitos mercadores cristãos,
gentios, mouros e judeus de diversas nações porque de todas as partes do mundo
podem ali vir seguramente comprar e vender. Nesta cidade, encontra-se todo o
género de mercadorias com que os mercadores podem entrar no reino sem pagarem
direitos se levam cavalos de Ormuz, Pérsia e Arábia e o rei compra-os todos. Os
que não levam cavalos pagam os direitos costumados nos lugares por onde passam.
O
rei de Narsinga dá esta liberdade aos mercadores porque lhe levam muitos destes
cavalos e não ao reino de Dacam e a outros senhores com quem muitas vezes tem
guerra, o que é causa de entrarem cada ano naquela cidade três a quatro mil
cavalos.
O
rei tem nesta cidade uns muito grandes e sumptuosos paços tanto de casas
como de pátios, jardins e tanques onde há muito peixe. O rei é gentio e
serve-se com muito grande estado; vive mais polidamente em seu comer e vestir
do que os reis do Malabar. Continuamente tem guarda de muitos soldados e muitos
porteiros e falam-lhe com dificuldade tanto os grandes senhores como a outra
gente.
Estes
reis não casam,
mas têm mais de trezentas raparigas, todas filhas de grandes senhores do reino
que estão no paço aos meses e no outro tempo na casa dos pais. Quando o rei de
Narsinga morre queimam-lhe o corpo numa grande fogueira de sândalo (árvore), daqüila e outros paus perfumados e
queimam-se com ele todas estas mulheres e quantos privados tem e todos os
oficiais da sua Casa que o fazem com tanto amor que pelejam sobre quem primeiro
chegará à fogueira onde lançam muita moeda de ouro, crendo que tudo aquilo vai
para o outro mundo com eles e que têm lá disso necessidade.
Estes
reis fazem guardar muito inteiramente justiça aos estrangeiros principalmente
aos mercadores. Trazem uma corte muito grande de muitos fidalgos e senhores que
têm deles grandes ordenados e governo de províncias e outros que são senhores
hereditários que têm por sobrenome Raus
que entre eles é como dom. Se estes fazem algum erro que não mereça a morte, o
rei manda-os açoitar secretamente no paço, estando ele presente e se são seus
parentes, ele mesmo o faz por sua mão.
Estes
reis de Narsinga têm por costume fazerem tesouro cada qual por si sem
tocarem no que fez o seu antecessor o que têm por grande glória e deste modo o
têm muito grande de ouro e prata além das pérolas e aljôfar e pedraria que é
tanta que se mede por medidas como trigo e isto de um certo peso para baixo.
O
rei tem diamantes que pesam duzentos e trezentos manjelins; destes faz um ou
dois quilates dos nossos e são muito diligentes em conseguir esta pedraria grande,
punindo com grandes penas os que vendem ou compram pedras preciosas de certo
preço para cima.
Têm
muitas vezes guerras com os reis seus vizinhos pelo que continuamente pagam
soldo a grande multidão de gente tanto a pé como de cavalo. No seu reino,
ninguém tem cavalos senão de sua mão nem os pode comprar ninguém senão ele e
tem mais de vinte mil cavalos da sua cevadeira o que tudo mantém à sua custa e
de sua mão os entregam aos seus capitães que os repartem pelos soldados de suas
capitanias a que chamam lascarins.
Estes lascarins são recebidos em soldo com grande exame porque os despem numa
casa perante quatro escrivães que escrevem quantos sinais tem no corpo, a cor e
o nome do lugar, província de que são, nome do pai e da mãe e da Lei que
crêem.
Depois
estabelecem o soldo de três, quatro até quinze pardaus de ouro por mês e ficam
obrigados a não poderem sair do reino sem permissão do rei. Além do soldo, aos
que são de qualidade para isso, dão-lhe um cavalo e um moço para
o servir e uma escrava para lhe fazer a comida e para a ração do cavalo
manda cada dia a cozinha do rei onde se faz a comida para todos os cavalos e
elefantes da sua cevadeira. O rei para lá dos vinte mil cavalos da sua cevadeira
tem espalhados pelo reino mais de oitenta mil cavalos para que dá mantimento àqueles
a quem os manda entregá-lo. Os piões não têm conto porque facilmente se juntam
num exército mais de novecentos mil.
Estes
reis costumam trazer nos seus arraiais militares até quatro mil mulheres
solteiras a quem pagam soldo primeiro do que a ninguém e dizem que com elas
fazem mais guerra do que com tantos homens porque, por causa das mulhere,s eles
pelejam com mais esforço.
Sabendo
o rei que reinava nesta altura as grandes façanhas que os nossos tinham feito
na Índia, desejou ter paz e amizade com o rei Dom Manuel e por isso mandou um
embaixador ao vice-rei Dom Francisco de
Almeida que o esteve esperando em Cananor para aí lhe dar a sua embaixada.= p. 176
Capítulo
VII
Do recebimento que o
vice-rei Dom Francisco de Almeida fez ao embaixador do rei de Narsinga e da
permissão que houve do rei de Cananor para fazer a fortaleza e de como em
Coulão mataram o feitor António de Sá e os portugueses que com ele estavam e do
que sobre isso fez.
Porque
em Cananor não tínhamos ainda fortaleza nem casa que fosse de qualidade para o
vice-rei nela receber o embaixador do rei de Narsinga foi decidido que o
fizesse na nau. Para isso mandou todos os capitães, cada um em seu batel, para
o irem receber à praia donde o trouxeram à nau, tendo o vice-rei mandado
alcatifar a tolda e cobrir de panos de ouro e seda para nela receber o
embaixador.
Ao
entrar na nau, o vice-rei veio recebê-lo a bordo ao som de bombardas, trombetas
e atabales com todos os capitães e fidalgos que com ele estavam e pela mão o
levou até a um estrado onde se sentaram cada um em sua cadeira de espaldas.
Depois de lhe perguntar pela saúde e disposição do rei de Narsinga e pelo
percurso do seu caminho, recebeu as cartas de crédito que trazia, dizendo ao
vice-rei que o rei de Narsinga seu senhor, sabendo da sua vinda e das vitórias
que Deus lhe dera em sua viagem e de quantas os capitães do rei de Portugal seu
irmão tiveram na Índia desejara ter amizade com tão poderoso rei para, se
necessário fosse, o ajudar com as naus de todos os portos de mar que tinha na
costa da Índia e com quanta gente quisesse e para maior confirmação da sua
amizade lhe consentiria que nos mesmos portos mandasse fazer fortalezas
para o que daria toda a ajuda necessária e para que esta amizade fosse mais
certa e segura lhe oferecia uma sua irmã jovem e de bom parecer para
casar com o príncipe seu filho com o qual lhe daria tão grande dote de
terras e dinheiro de que ficasse bem contente.
Depois
de isto dizer, deu ao vice-rei uma carta do rei de Narsinga para o rei Dom
Manuel em que lhe escrevia o conteúdo da embaixada e para o príncipe
entregou-lhe dois colares de pedraria e alguns anéis com pedras
de muito valor e panos de ouro e seda. Após, regressou a terra donde o
vice-rei depois o despachou entregando-lhe de presente algumas peças de ouro
e prata lavrada, das que trouxe de Portugal.
No
dia seguinte, o vice-rei desembarcou e encontrou-se com o rei de Cananor num
palmar debaixo de uma tenda à borda de água e logo nos primeiros momentos lhe
pediu para fazer uma fortaleza na cidade de Cananor. O rei concedeu-lhe permissão para tal de boa vontade e o
vice-rei logo o satisfez com peças que lhe mandou a que o rei também respondeu
com outras que deu ao vice-rei e a Dom Lourenço e a todos os capitães da frota.
No dia seguinte, pela manhã, dia 23 de
Outubro do mesmo ano de 1505,
mandou proceder na obra da fortaleza sobre os alicerces que o feitor Gonçalo
Gil Barbosa tinha começado sob a aparência de casa de feitoria no que todos os
portugueses trabalhavam por turnos com muita diligência e com a grande ajuda
que para isso deu o rei de Cananor. Em cinco dias foi posto o muro e torres em
altura em que se podia colocar a artilharia e defender os que dentro estavam.
Feito isto, o vice-rei partiu para Cochim e na fortaleza a que pôs o nome de Santo
Ângelo, deixou por capitão Lourenço
de Brito, copeiro mor do rei que ia destinado à fortaleza de Coulão, mas
quis antes esta por estar já começada e por alcaide mor Guadelajara, castelhano e feitor Lopo Cabreira e com guarda de cento e cinquenta soldados
portugueses.
Antes
do vice-rei partir de Cananor, soube como os mouros de Coulão mataram o feitor António de Sá e doze portugueses
que com ele estavam e isto por causa dos lemes e velas das naus que João Homem
lhes tomara. Os que assaltaram a casa onde moravam e por não se poderem lá se defender
acolheram-se à ermida de Nossa Senhora
e por os mouros não poderem lá entrar atearam-lhe fogo e ardeu toda e todos os
homens que estavam lá dentro.
Pero Rafael, que lá se encontrava, não pôde
acudir por toda a cidade estar levantada contra os nossos, contudo antes que
partisse do porto queimou cinco naus que ali estavam e foi para Cochim onde o vice-rei chegou no último
dia de Outubro e por ele soube ao pormenor como tudo se passou. No mesmo dia, o vice-rei Dom Francisco de Almeida
despachou Dom Lourenço de Almeida com
todos os capitães da frota para, de súbito, atacarem Coulão e queimarem quantas
naus encontrassem dos mouros e dos da terra em vingança da traição que fizeram
e aconteceu que a nossa frota chegou a Coulão
antes que os da cidade soubessem da sua ida e atearam fogo a vinte e sete naus
de mouros que encontraram no porto, donde não partiram sem primeiro vê-las
arder completamente. Depois disto fizeram-se à vela para Cochim, mandando
adiante João Homem com a notícia do
que fizeram, cuidando que por alvíssaras disto o reconciliasse com seu pai, mas
sucedeu ao contrário porque o vice-rei em vez da recompensa, tirou-lhe a
capitania da caravela e deu-a a Nuno Vaz
Pereira.= p.
177
Capítulo
VIII
De como o vice-rei Dom
Francisco de Almeida investiu o rei de Cochim no reino em nome do rei Dom
Manuel I e mandou oito naus para Portugal de que deu a capitania a Fernão
Soares e da viagem que fez até chegar a Lisboa.
No
dia seguinte ao da partida de Dom
Lourenço de Almeida para Coulão, saiu o vice-rei a terra onde logo o veio
visitar o rei de Cochim que já não era Trimumpate. Este rei novo chamava-se Nambeadora, sobrinho de Trimumpate,
muto amigo dos portugueses e desejoso de servir o rei de Portugal do que logo
deu mostras nesta primeira visita, oferecendo-se ao vice-rei para tudo o que
dele e do seu reino lhe cumprisse fazer e com estas e outras palavras de muita
amizade depois regressou aos seus paços. Naquela tarde, o vice-rei teve
conselho sobre a quem daria a coroa e outras coisas que o rei Dom Manuel
mandava ao rei Trimumpate, mas havidas sobre isso muitas altercações, decidiram
que se desse ao rei novo, já que Trimumpate lhe tivesse mandado pedir estas
peças.
Depois
do regresso de Dom Lourenço de Almeida de Coulão, o vice-rei determinou dar
estes presentes ao rei que reinava. Mandou fazer um palanque, no qual estando
presentes os mais dos senhores da terra, disse ao rei de Cochim que o rei Dom Manuel de Portugal seu senhor, tendo em
consideração a grande amizade que Trimumpate, rei que fora de Cochim, com ele
sempre e com seus capitães e vassalos tivera, lhe mandava em sinal de amizade,
entre outras coisas, uma coroa de ouro para trazer como rei, já que
investido naquele reino por sua mão e que já que ele sucedera a seu tio
Trimumpate no reino, que a ele era motivo que se desse com a qual lhe
entregava a posse daquele reino de Cochim, já que a qualquer outra pessoa pudesse
pertencer para de sua mão o ter e reger como seu vassalo e lhe dar conta dele e
de como o governava cada vez que lhe mandasse tomar e o isentava de toda a
obrigação que os reis de Cochim costumavam ter ao samorim rei de Calecut e que
ele senhor rei de Portugal se obrigava a defender e guardar, a ele e seu reino,
senhorios e vassalos contra todos aqueles que o provocar ou fazer dano
quisessem. Estas palavras ditas e interpretadas pelo intérprete Gaspar, o rei de Cochim respondeu que
faria tudo o que o rei de Portugal seu irmão lhe mandasse porque sem seu favor
e ajuda o reino de Cochim já teria sido tomado e junto à coroa de rei de
Calecut.
A
estas palavras e outras ditas de ambas as partes, o vice-rei levantou-se da
cadeira onde estava e foi ter com o rei de Cochim e pôs-lhe a coroa na cabeça e
mandou-a entregar a seus oficiais com as mais peças que lhe trazia, dizendo-lhe
que o rei seu senhor lhe dava permissão para em todas as suas terras mandar
cunhar moeda de ouro, prata e cobre e que pudesse usar de todas as
liberdades e prominências que a rei pertencem e de tudo se fizeram decretos
públicos. Acabada esta cerimónia, o rei de Cochim com os seus caimãs e naires,
todos muito contentes, recolheu-se aos seus paços, indo adiante dele as nossas
trombetas, atabales e Lourenço Moreno
que havia de ficar por feitor com a coroa nas mãos com que o rei se
alegrou muito e tomou-o por grande honra.
Isto
terminado, o vice-rei Dom Francisco de
Almeida, atendeu à carga das naus que haviam de regressar ao reino de
Portugal, que foram oito, e deu a sua capitania a Fernão Soares. Os outros capitães eram Sebastião de Sousa, Rui Freire, Manuel Teles, Antão
Gonçalves, Diogo Correia, Gonçalo Gil Barbosa que fora feitor em
Cananor e Diogo Fernandes Correia
que fora alcaide mor e feitor do castelo de Cochim. Estas oito naus partiram no
dia 26 de Novembro de 1505 e foram tomar alguma carga que
lhes faltava a Cananor.
Seguindo
viagem, no primeiro dia de Fevereiro de
1506, foram ter a uma terra que nenhum dos pilotos conheceu; vieram às naus
muitos homens baços de cabelo revolto em dez almádias, destas uma aproximou-se
da nau-capitã e entraram lá dentro 25 homens nus a quem logo Fernão Soares mandou dar panos
para se cobrirem e de comer e beber. Tudo aceitaram, mostrando
por acenos muito prazer, pois a linguagem que falavam era nova para todos os
que iam na nau. Os visitantes, depois de vestidos e bem alimentados, lançaram-se
de súbito na almádia e recuando, começaram a atirar flechas aos que estavam a
bordo. Os nossos, vendo isto, fizeram-nos alargar às bombardadas. Fernão
Soares, vendo que algumas almádias se encaminhavam para a nau de Rui Freire que
estava tão perto da sua que se podiam ouvir, fez-lhe dizer que tomasse alguns
deles. Rui Freire chegando duas almádias a bordo, mandou alguns homens saltar
dentro e tomaram 21 porque os outros saltaram borda e afastaram-se a nado.
Após,
a frota seguiu viagem ao longo daquela costa de que a maior parte era muito
alta até chegarem a uma ponta onde sai uma ribeira. Aí fizeram aguada e foram
assaltados pelos da terra e feriram um dos nossos antes que se pudessem acolher
ao batel. Os das naus, vendo isto, fizeram-nos fugir da praia à força de tiros
de bombardas. No dia seguinte, os nossos saíram armados para acabar de fazer a
aguada e carregar lenha e encontraram dois mortos e a terra coberta de sangue
em muitos lugares. Passados quatro dias, a frota se fez à vela, indo todos com
suspeita de não ser ilha, mas terra firme e tendo corrido à vista dela 17 dias,
a 18 de Fevereiro, ultrapassaram-na.
Esta terra não sendo conhecida na altura, depois tomaram conhecimento pelos
cosmógrafos de ser a ilha de Madagáscar
e os nossos puseram-lhe o nome de São
Lourenço. Este descobrimento pelo lado de fora deve-se a Fernão Soares, capitão desta frota que
no dia 23 de Maio de 1506 entrou no
porto de Lisboa com toda a sua frota junta.= p. 179
Capítulo IX
De como o rei Dom Manuel
depois da partida de Dom Francisco de Almeida mandou Pero da Anhaia a Sofala
com seis velas para aí fazer uma fortaleza e do que em sua viagem passou até
que faleceu e da chegada de Cid Barbudo e Pero Quaresma à Índia que partiram do
reino depois dele.
Pero
da Anhaia era capitão de uma das naus que iam em companhia de Dom Francisco de
Almeida para ficar por capitão da fortaleza que se havia de fazer em Sofala e
esta nau não se perdeu no porto de Lisboa.
Partido
Dom Francisco de Almeida, o rei Dom Manuel mandou preparar seis naus e deu a
sua capitania a Pero da Anhaia.
Os outros capitães eram Francisco da Anhaia, seu filho, que havia de
ficar por capitão do mar em Sofala com duas naus, Pero Barreto de Magalhães que depois da fortaleza acabada havia de
ir para a Índia por capitão das outras quatro naus; os outros capitães eram João Leite, natural de Santarém e Manuel Fernandes que ia destinado à
feitoria desta fortaleza e João de
Queirós.
Esta
armada partiu do porto de Belém a um domingo, Dia da Santíssima Trindade, 18 de Maio de 1505 e tanto adiante como a
Serra Leoa, querendo João Leite do garoupés da sua nau aferrar uma dourada caiu
ao mar e sem o verem mais foi ao fundo e para o substituir os da nau elegeram
por capitão Jorge Mendes.
Desta
paragem foram tanto na volta do Sul para dobrarem o cabo da Boa Esperança que se puseram em altura
que acharam tanto frio e neve que se gelava a água e vinho e quase que não
podiam vencer a neve com as pás e com este trabalho passaram o cabo da Boa
Esperança sem o verem.
No
dia 04 de Setembro, Pero da Anhaia passou o cabo
das Correntes com Francisco da Anhaia e Manuel Fernandes e foi surgir sobre
a barra de Sofala para ali esperar as outras três naus. Depois chegou a
nau de que fora capitão João Leite e agora era Jorge Mendes e a nau de que fora capitão João de Queirós e agora
era João Vaz de Almada. Este contou
a Pero da Anhaia como João de Queirós viera ter à baia das Vacas e que,
querendo abastecer-se de carne entrara meia légua pelo sertão. Os da terra
mataram-no a ele, ao mestre da nau, piloto e dos que com
ele foram não escaparam senão Antão de Gá, escrivão da nau, muito ferido e
outros quatro.
Depois
de saírem daquela baía avistaram a nau de que fora por capitão João Leite e
pediram a Jorge Mendes que lhes
desse capitão para os reger e um piloto que os governasse. Jorge
Mendes rogara-lhe que se passasse para aquela nau por capitão dela e lhe dera o
seu mestre para mandar.
Depois
da vinda de Jorge Mendes e de João Vaz de Almada chegou António de Magalhães, irmão de Pero Barreto num batel com recado a
Pero de Anhaia de como ficara no cabo de São Sebastião, porquanto o seu
piloto, por não saber o parcel, não ousava chegar. Pedia-lhe que mandasse o seu
piloto para o levar daquele porto ao porto de Sofala.
Assim
Pero da Anhaia mandou lá João Vaz de Almada com a sua nau e com ele o piloto de
Francisco da Anhaia. Pero Barreto,
chegado à barra de Sofala, Pero da Anhaia entrou para dentro com quatro das
suas naus mais pequenas e as duas por serem grandes deixou de fora. Após
ancorar mandou logo recado ao senhor da terra de nome Sufe para se encontrar com ele. Estabeleceu-se que este encontro
seria numas casas que tinha sobre o rio junto de uma povoação chamada Segoe com cerca de mil vizinhos de que
muitos eram mouros mercadores que dai negociavam em ouro para Quíloa, Mombaça e
Melinde porque os mais do lugar, costa e sertão são gentios, cafres.
As
casas eram grandes, térreas cobertas de ola. As paredes eram de sebe barradas
com barro. Tinham muitos pátios cercados com árvores e cava ao redor delas com
sebe de espinheiros tecidos, mais forte do que se fora de pedra e cal. Estes
espinhos tecidos na Flandres e Alemanha cercam os jardins com suas cavas porque
assim os têm mais seguros dos ladrões.
O
rei ou senhor de Sofala seria homem
de setenta anos, alto de corpo, baço, com grandes membros e cego. Segundo o que
os da terra diziam, fora muito esforçado guerreiro e temido. Pero da Anhaia encontrou-se com ele
nestas casas, numa câmara pequena, decorada com panos de seda, lançado sobre um
catel (= cama de ferro)
coberto com um pano de seda e junto dele um grande molho de azagaias. Esta
câmara estava no fim de uma sala muito comprida e estreita, onde estariam bem
cem mouros baços, nus da cintura para cima e para baixo cachados com panos de
seda e algodão e outros tais e sobraçados com fitas de seda; nas cabeças e nas
mãos ramais de âmbar e nas cinturas cutelos sem protecção com tachas de marfim
guarnecidos a ouro e todos estavam sentados em tripeças baixas com os assentos
de couro com cabelo. Estes mouros, quando Pero
da Anhaia passou pela sala com os capitães, feitor e gente nobre da frota
porque a outra ficava à porta da sala, levantaram-se todos, fazendo-lhe grande
cortesia com as cabeças baixas quase até ao chão. Entrando Pero da Anhaia nesta
câmara o rei, mesmo cego como era,
fez-lhe muita cortesia e bom acolhimento e logo houve ali dele permissão para
construir uma fortaleza, oferecendo-se-lhe a tudo o que mais dele fosse
necessário.
Após
as despedidas, saiu com Pero da Anhaia um mouro muito privado do rei de nome Acote Abexi de nascimento, fazendo-lhe
mutos oferecimentos, pelo que Pero da
Anhaia, sabendo o valor que este Acote tinha, com um presente que mandou ao
rei mandou também outro para ele. Em retorno, Acote mandou-lhe vinte
portugueses que tinha em seu poder que eram dos que escaparam da nau de Lopo
Sanches e segundo estes portugueses foram sempre muito bem tratados por ele.
Pero da Anhaia trabalhou logo com a ajuda de Acote para juntar tudo o que era
necessário para a construção da fortaleza e depois de tudo junto afundou para
criar os alicerces da fortaleza entre Segoe
e outra povoação com cerca de quatrocentos vizinhos junto da barra e nela se
começou a trabalhar no dia 21 de Setembro
de 1505 e estando a maior parte da fortaleza já construída, Pero Barreto partiu para a Índia com a
sua nau e com a nau de Pero da Anhaia de que foi por capitão Gonçalo Álvares que viera por piloto da
frota.
Continuou-se
a obra da construção da fortaleza com muito trabalho e diligência até ao fim de
Novembro e estando já quase acabada, Pero
da Anhaia mandou o seu filho Francisco
da Anhaia percorrer a costa até Moçambique e com ele Gonçalo Vaz de Góis que ali viera ter e João Vaz de Almada que havia de se ir dali para a Índia e deu-lhe
mais outro navio de que ia por capitão um seu criado que havia de ficar
com ele a guardar a costa. Gonçalo Vaz
de Góis e João Vaz de Almada
apartaram-se em Moçambique de Francisco da Anhaia e foram ter a Quíloa, onde encontraram Pero Barreto, Gonçalo Álvares e Lucas da
Fonseca que se perdera da frota do vice-rei, onde pouco tempo depois veio
ter Francisco da Anhaia com um
zambuco que tomara aos mouros porque a sua nau se perdeu com outra que tinha
tomado em Cambaia carregada de muita roupa.
Após
todos sob a capitania de Pero Barreto
partiram de Quíloa para a Índia na Semana Santa do ano de 1506 e chegaram a Anchediva no dia 28 de Maio onde todas as naus
invernaram excepto a de Lucas da Fonseca que passou. Partidas estas naus, Pero
da Anhaia continuou para acabar completamente a fortaleza para o que ajudavam
muito os da terra.
Vendo
os mouros que lhes tiravam muita parte do resgate de ouro do seu negócio com os
mercadores que vinham do sertão, decidiram lançar da terra os nossos dando a
entender ao Sufe que a nossa vinda
não fora buscar a sua amizade, mas sim afastá-lo da terra como o tínhamos feito
em Quíloa e em muitos lugares da Índia. Com estas palavras e outras do género
induziram-no a trazer secretamente mais de mil cafres para, de súbito,
atacarem os nossos e tomarem a fortaleza. Pero
da Anhaia foi avisado disto pelo mouro Acote
que além da amizade que nisto mostrava ofereceu-se-lhe para o ajudar com toda a
sua experiência.
Sabendo
disto, Pero da Anhaia começou a preparar-se com a maior dissimulação que pôde
para o dia em que esta guerra havia de declarar-se. Nesse dia, os cafres vieram
atacar os muros da fortaleza muito denodadamente com tiros de arremesso e setas
de fogo, estando já Acote dentro dos
muros com cem homens seus parentes e criados e, com esta ajuda, os
cafres foram tratados de maneira que se afastaram para fora e logo foram
atacados com tiros das bombardas que mataram a maior parte deles e os outros,
vendo isto, afastaram-se e logo os nossos saíram com Acote e tentando
alcançá-los chegaram à aldeia onde estavam as casas de Sufe. Pero da Anhaia, entrando por elas se
foi directo à sua câmara. Apesar de velho e cego, não perdeu o ânimo e coração
de bom guerreiro, arremessando as azagaias que tinha ao seu lado contra a porta
da câmara e com elas feriu Pero da Anhaia no pescoço. O feitor Manuel Fernandes, vendo isto, lançou-se
a ele e cortou-lhe a cabeça.
Após,
os nossos ficaram senhores das casas e do lugar. Pero da Anhaia mandou que não
se fizesse mais mal aos moradores. A cabeça do Sufe, para espanto de todos os
da terra, foi posta na ponta de uma lança na tranqueira da fortaleza e em
galardão do serviço que Acote fizera e amizade, Pero da Anhaia deu-lhe aquele
senhorio de Sofala e o investiu nela em nome do rei de Portugal Dom Manuel em
acto público que para isso se fez. Acote aceitou, declarando-se vassalo dos
reis de Portugal e com promessa de sempre os servir bem e lealmente e de tudo
se fizeram decretos públicos assinados por ele e pelos principais da terra e
por Pero da Anhaia e oficiais da feitoria e outros portugueses que seriam até
quarenta porque os demais já eram mortos de doença por a terra ser de maus ares
e doentia. Dali a poucos dias, Pero da
Anhaia faleceu por causa da infecção causada pela azagaia e
sucedeu-lhe o feitor Manuel Fernandes
que, depois de ser capitão, fez dentro da tranqueira uma torre de pedra
e cal muito forte. Esta capitania ele serviu pouco tempo porque no ano de 1506, chegaram à Índia Cid Barbudo e Manuel Quaresma
que partiram do reino de Portugal depois de Pero da Anhaia com a missão de
percorrerem toda a costa desde o cabo da Boa Esperança até Sofala para ver se
sabiam novas de Francisco de Albuquerque e Pero de Mendonça. Por Cid Barbudo e
Manuel Quaresma o vice-rei Dom Francisco
de Almeida soube da morte de Pero da Anhaia, pelo que despachou logo por capitão
de Sofala Nuno Vaz Pereira ao qual
mandou que de caminho prouvesse nos desentendimentos que havia em Quíloa por o rei Mahamed Anconii ter
sido morto à traição pelo rei Tirendicundi, parente do rei Abrahemo
desterrado e por alcaide mor
mandou Rui de Brito Pantaleão. Assim
Manuel Fernandes foi para a índia no navio em que eles vieram sem mais querer
ser feitor, tendo-se por injustiçado por o vice-rei lhe responder tão mal às
mercês que por galardão de seus serviços esperava.= p.182
Capítulo X
Em que trata da terra de Sofala e dos costumes dos que nela vivem e no grande reino de Benomotapa.
Os escritores antigos partem a Etiópia em Superior e Inferior e no Superior Oriental está o lugar e terra de Sofala, na costa do mar que chamam Prassodum. Estas duas Etiópias tomaram o nome de Etíope, filho de Vulcano, que foi rei e senhor delas. Diz Diodoro Sículo que foram os etíopes os primeiros homens que tiveram conhecimento de Deus e primeiro usaram religião e cerimónias no culto divino e foram os primeiros que acharam o modo de escrever e que deles veio o conhecimento destas coisas aos egípcios donde diz que eles descendem e tomaram as leis por que se governavam. Mas estes etíopes, a meu juízo, devem ser os da terra do Abexi por ser gente que há muito tempo tem a Lei que Deus deu aos judeus pela mão de Moisés e não os que vivem do mar da Arábia até ao Cabo da Boa Esperança e no sinal disso é serem tão incultos e bárbaros como são.
Antigamente tiveram os etíopes daí dois deuses: um imortal que é criador de todas as coisas e as rege sem nelas haver nenhum defeito e outromortal que têm por incerto, assim a ele como as coisas que por ele se regem e governam. (pelo que sabemos actualmente, o imortal, Deus, do universo da Vida e do Bem e o outro é o Espírito Universal, das trevas e da morte)
É toda esta região dos etíopes tão abundante de minas de ouro que faziam antigamente mais cabedal de cobre que de ouro e ao cobre estimavam mais. Escreve Heródoto que, querendo Cambyses, rei da Pérsia, filho de Ciro, fazer guerra ao mesmo tempo a Cartagineses, Amónios e Etíopes mandou a estes orientais os seus embaixadores para, por amizade os submeter ao seu império e por estes mandou em presente ao rei (da Etiópia) que então era, entre outras algumas coisas, joias de ouro, de que o rei se rindo em desprezo do presente, mandou mostrar aos embaixadores as casas onde guardavam os malfeitores que, em vez de ferro, viram que eram de ouro todas as cadeias (casas) e outros instrumentos com os quais aqueles homens estavam presos.
Desta abundância de ouro, tiveram os gregos ocasião de efabularem, como é seu costume, dizendo que a mesa do sol estava nesta região das duas Etiópias, dando a entender ser esta terra toda uma pasta de ouro a que quiseram pôr o nome de mesa do sol. A esta estrela atribuem os poetas e alquimistas o metal do ouro.
Entre outros muitos costumes antigos desta gente, era um que, se o rei tinha algum jeito bom ou mau ou alguma deficiência física ou manqueira ou vício ou virtude, todos os nobres e domésticos da sua Casa faziam por imitar nos costumes e por manqueira ou aleijão se aleijavam todos na mesma parte do corpo onde o rei era aleijado.
Não sei se guardam ainda estes costumes porque não falei com homem português que estivesse na corte do rei de Benomotapa nem pus isto aqui senão para exemplo de que os reis e príncipes se devem muito guardar de terem maus feitios e costumes e modos de falar porque deles tomam os criados, familiares e ficam sujeitos a tais manhas, das quais os que os criam e instituem e andam no tempo da meninice e tenra idade a par deles, os podem pela maior parte por bons modos e honestos exemplos, divertir.
No sertão desta terra de Sofala e mais aquém para nós, começando quase do Cabo da Boa Esperança, fica o grande reino de Benomotapa, ao qual este reino de Sofala era sujeito antes que nós viéssemos a esta terra. Deste reino, rei e costumes farei aqui um discurso no mais breve modo que puder por me parecer que são todas estas coisas de qualidade que merecem fazer-se delas menção nesta nossa Crónica.
O rei desta província é grande senhor porque, segundo dizem, tem um circuito dos seus senhorios com mais de oitocentas léguas, além de alguns reis e senhores que lhe obedecem e pagam tributo de ouro, do qual já os da terra que os mouros que entre eles vivem, deram de muito tempo a esta parte e lhe nós acrescentamos, em quase setenta anos que descobrimos estas províncias.
Todo este reino de Benomotapa é muito fértil em mantimentos, frutos e animais de criação. Há nela tantos elefantes bravos que não se passa ano nenhum em que não matem, os que os caçam, de quatro a cinco mil de que vai para a Índia grande quantidade de marfim.
É muito abundante em ouro que se acha em grande quantidade tanto em minas como em rios e lagoas. Destas minas há umas, no reino de Batua, de que o rei é vassalo do de Benomotapa, a comarca em que estão chama-seToro e é toda em campo raso e são as mais antigas minas que se sabem em toda aquela região. No meio desta campina, está uma fortaleza toda lavrada de cantaria muito grossa e grande pelo lado de fora e de dentro, de obra muito bem feita e bem assentada tanto que, segundo dizem, não se vê cal entre as suas junturas. Sobre a porta desta fortaleza está um letreiro talhado em pedra que, por ser muito antigo não se compreende o que quer dizer. Em alguns montes que aquela campina tem, estão outras fortalezas feitas do mesmo modo, nas quais todas têm o rei, capitães e o que se pode delas julgar é que foram feitas para guarda daquelas minas de ouro e para receber o príncipe, a quem pagavam, por oficiais que, para isso, nelas teria porque assim o fazem ao presente os reis daquele reino de Benomotapa, do qual os habitantes são todos pretos, de cabelo frisado a que os vizinhos normalmente chamam cafres.
Estes não adoram nenhum ídolo nem o têm; crêem que há um só Deus, Criador de todas as coisas, que adoram e ao qual se encomendam, no que parece que, em parte, continuaram até agora no que atrás disse do seu antigo modo de crer. Têm por religião alguns dias de guarda, entre os quais entra o dia em que nasce o seu rei. Nenhum crime castigam com maior rigor do que o da feitiçaria porque a todos os feiticeiros matam por justiça sem perdoar a nenhum.
Têm tantas mulheres quantas podem manter, mas a primeira é senhora das outras e os filhos desta são herdeiros e não casam senão com mulher a que já viesse a sua menstruação porque acham que, se antes de lhe vir a menstruação conhecem homem, os seus filhos são todos fracos e de pouca vida.
Este rei de Benomotapa tem grande estado, serve-se (da comida) de joelhos e com salva. Quando bebe, tosse ou espirra, todos os que estão na casa, em alta voz, lhe dão profaça e o mesmo fazem os que estão fora de casa quando ouvem estes e, de mão em mão, corre o profaça e se lhe dá por todo o lugar e assim se sabe que o rei bebeu ou tossiu e espirrou.
Neste reino, nenhuma casa tem porta excepto as dos senhores e pessoas principais, isto acontece por privilégio que o rei para isso lhes dá e diz que as portas se põem nas casas com temor dos ladrões e malfeitores, dos quais ele é obrigado como rei, a guardar o seu povo e sobretudo os pobres.
As casas são todas de sebe, barradas de barro, do modo que pintei as do Xeque de Sofala. Este rei usa duas insígnias: uma é uma enxada muito pequena com o cabo em marfim que traz sempre à cintura porque dá a entender a seus súbditos que trabalhem e administrem a terra para com o que ganham, poderem viver em paz, sem tomarem os bens alheios; a outra insígnia são duas azagaias: com uma faz a justiça e com a outra defende o seu povo.
Traz continuamente na sua corte todos os filhos dos reis e senhores que lhe estão sujeitos por lhe terem amor de criação e também para que os pais deles não se levantem com as terras que dele têm.
Traz sempre no campo, quer em tempos de paz ou de guerra, um exército de muita gente, cujo capitão-geral se chama Zono e isto faz para ter a terra pacífica e se lhe não levantarem alguns dos senhores e reis que lhe estão sujeitos.
Todos os anos, manda muitos dos principais da sua corte por todos os seus reinos e senhorios a dar fogo novo; o que se faz do seguinte modo: cada homem destes, ao chegar às casas dos reis, senhores, cidades e lugares, manda apagar o fogo que aí há em nome do rei e, depois de apagado, vêm todos tomá-lo dele em sinal de obediência e quem isto não faz é considerado traidor e rebelde e, por tal, manda o rei castigá-lo e se é pessoa ou cidade poderosa, manda sobre eles o capitão Zono que anda sempre no campo para acudir a estas coisas.= p.184
Capítulo
XI
De como indo Dom Lourenço buscar as ilhas Maldivas
por mandado do vice-rei, seu pai, foi ter à ilha de Zeiland e do que aí fez e do sítio e costumes dos da terra.
No
mês de Novembro de 1505, em que estava prestes a partir a armada para o reino,
de que era capitão Fernão Soares
como atrás ficou dito, mandou o vice-rei o seu filho, Dom Lourenço às ilhas de Maldiva que estão a sessenta léguas de
Cochim para fazer presa nas naus que por dentro destas ilhas passam de Malaca,
Samatra, Bengala e outras províncias e com ele mandou Paio de Sousa, Lopo Chanoca
e Nuno Vaz Pereira e outros capitães
que ao todo eram nove; os quais, por má navegação, vieram à vista do Cabo de Comorim, donde constrangidos com
as correntes, foram ter ao porto de Gabalicão, a que os nossos chamam Galé, que é na ilha de Zeiland, o que sabido pelo rei daquela ilha, com medo de
que lhe destruíssem a terra e queimassem algumas naus que estavam no porto,
mandou um presente de refrescos a Dom Lourenço, pedindo-lhe paz e amizade.
Sobre
este recado, deixando nas naus reféns, Dom Lourenço mandou um cavaleiro, de
nome Fernão Cotrim, visitar o rei
com outro presente. Depois, para estabelecer as pazes, Dom Lourenço mandou Paio de Sousa com uma comitiva de
portugueses e o rei recebeu-os numa grande sala, sentado num estrado coberto de
alcatifas e panos de seda. O rei estava vestido com um baju de seda e na cabeça
uma carapuça de brocado com dois chifres de ouro, com muita pedraria, cingido
com um pano de seda que lhe chegava até aos joelhos, descalço e com muitos
anéis nos dedos dos pés e das mãos e arrecadas nas orelhas, tudo de pedraria.
Posto que fosse de dia, em cada ponta do estrado, estavam três homens com
muitas tochas de cera acesas nas mãos. Além destas, havia outras feitas de
prata sobre as quais estavam candeeiros também de prata que se alumiavam com
azeite e que davam muita claridade.
Na
sala, estavam muitos homens nobres bem ataviados a seu modo e Paio de Sousa
passou perante eles com os portugueses que o acompanhavam, aproximando-se do
rei que lhe fez muitas honras e logo ali decidiram que ele era contente de dar,
cada ano, como por tributo ao rei de Portugal quatrocentos bahares de canela na
condição de que os seus portos e gentes ficassem sob a nossa guarda para os
defendermos dos que lhes quisessem, por nosso respeito, fazer dano.
Dom
Lourenço consentiu condicionalmente; se o vice-rei, seu pai, o houvesse por
bem. A canela foi logo entregue e carregada nas naus e enquanto se fazia a
carga, Dom Lourenço mandou, com a permissão do rei colocar em terra um padrão de pedra com as armas e a divisa do reino, em
sinal de que tomava posse daquela ilha em nome do rei, seu Senhor, Dom Manuel.
Assim
que ficou feito, Dom Lourenço com as suas naus regressou a Cochim com esta
canela e algumas naus que tomara de mouros, as quais o vice-rei mandou carregar
nas naus de João da Nova e de Vasco Gomes de Abreu, por quem mandou
um elefante ao rei
Dom Manuel
que foi o primeiro elefante que da Índia
veio a estes reinos. Estas naus partiram de Cochim em Fevereiro de 1506.
Porque
a ilha de Zeiland é uma das nomeadas
da Índia e muito frequentada pelos nossos, apresento sumariamente algumas das
suas particularidades. É muito fértil de mantimentos, frutas e ervas de cheiro,
principalmente de árvores de espinho e laranjeiras. Todo o ano tem muita fruta
e flores, o que nasce pelos matos sem se plantar nem semear. Há nela muitos
bosques da árvore da canela que se parece com o loureiro, de que se carrega
muita para fora. Há muita pedraria: rubis, balais, jacintos, safiras, topázios,
jagonças, ametistas, crisólitas e olhos de gato. No mar, pescam-se pérolas, aljôfar
grosso e pequeno. Criam-se nela muitos elefantes que vendem para Cambaia,
Narsinga e Malabar e os habitantes desta ilha são os mais domésticos e que mais
facilmente se ensina e amansa que nenhuns outros que se saiba.
Há
nela sete senhores, a que eles chamam reis, dos quais agora é o principal o
senhor da cidade de Columbo. Dizem
que este rei tem um rubi de um palmo de comprimento e a grossura de um ovo de
galinha e que por ser muito limpo, de noite dá tamanha claridade como uma
grande vela; o que parece fábula. Contudo, lembro-me de que o rei de Calecut
mandou um seu naire, no ano de 1514, ao rei
Dom Manuel,
para andar na corte e aprender o modo dela e a língua portuguesa. Fez-se cristão e puseram-lhe o nome de Dom
João, a quem eu ouvi dizer que o rei de Calecut tinha um rubi tamanho como um
ovo de franga, tão perfeito que, de noite, dava de si claridade como uma
candeia.
Os
do sertão da ilha são gentios e os dos portos do mar, os mais deles mouros,
falam todos canará e malabar e têm quase os mesmos vestidos e costumes: são
homens fracos e pouco de guerra; muito efeminados e dados a vícios. São bem-dispostos
e de bons corpos e parece terem por honra serem barrigudos.
No
meio desta ilha há uma serra, da qual sai um pico muito alto e no mais alto
dele está uma lagoa pequena, de água nadível e junto dela uma laje e nela uma
pegada de homem que os da terra dizem que é do nosso pai Adão, que eles chamam Adambaba e que dali subiu ao céu e
junto desta lagoa está uma ermida com duas sepulturas, onde eles crêem que
foram sepultados os corpos de Adão e
Eva. Este pico e ermida são de
grande devoção entre os mouros e vêm ali muitos em romaria e de muito longe.
Sobem ao alto deste pico por escadas de cadeias de ferro muito grossas. A terra
ao redor desta serra em que está o pico é toda alagadiça e estes romeiros
passam pela água que lhes dá muitas vezes pela cintura até chegarem à serra e
daí sobem ao pico, no qual se lavam na água da lagoa e fazem o sala que depois de feito, consideram
que todos os seus pecados, que até então cometeram, estão absolvidos. = p.185
Capítulo
XII
De como Dom Lourenço foi
mandado por seu pai percorrer a costa do Malabar, onde desbaratou uma armada do
rei de Calecut e de como se desfez a fortaleza de Anchediva.
O
vice-rei, assim que Dom Lourenço
voltou da ilha de Zeiland, mandou-o, com as mesmas naus e outras mais,
percorrer a costa do Malabar até à fortaleza de Anchediva, na qual se abasteceu
de algumas coisas de que tinha necessidade. Despedindo-se do capitão da
fortaleza, Manuel Pessanha, voltou a
Cananor, onde esteve alguns dias com
a sua gente ajudando o capitão desta fortaleza, de Cananor, Lourenço de Brito, na construção da
fortaleza.
Nesta
altura, veio ter com ele um homem chamado Luís
Vuartman, natural de Bolonha, na Lombardia, que andara por muitas partes do
mundo, sobre o que escreveu um tratado. Este homem disse quem era a Dom Lourenço e que vinha de Calecut para avisar o vice-rei de que o
rei de Calecut fazia uma grande armada para guarda das naus que iam e vinham a
seus portos. Esta armada não tardaria muito a sair para acompanhar muitas naus
de mercadores de Meca que estavam de saída até as pôr a salvo das nossas
armadas. Além disto, trazia recado dos milaneses
que andavam com o rei de Calecut, que arrependidos do que tinham feito, como
cristãos que eram, queriam reconciliar-se com Deus e vir para o serviço do rei
de Portugal.
Enquanto estivessem em Calecut não podiam deixar de fazer artilharia e tinham
já fundidas mais de quatrocentas peças grossas e pequenas e cada dia que lá
permanecessem os fariam fundir mais e o pior ainda era que os faziam à força
ensinar o modo da fundição aos mouros e malabares.
Ao
comunicar isto a Dom Lourenço, considerava escusado ir mais adiante buscar o
vice-rei, seu pai. Pedia-lhe que prouvesse com diligência no que lhe dissera
porque assim cumpria a serviço de Deus e do rei de Portugal.
Dom Lourenço agradeceu-lhe muito o trabalho que tomara e o perigo a que se
expusera para dar um tão bom aviso e por isso lhe fez mercê. Luís Vuartman esteve
ali com Dom Lourenço três dias e depois mandou-o a Cochim na galé de João Serrão para Dom
Francisco de Almeida,
seu pai, dele saber o que se passava. Dom Francisco tornou a mandá-lo para
Cananor na mesma galé e escreveu a Dom Lourenço para estar atento para pelejar
com a armada de Calecut e que desse todo o dinheiro que houvesse mister a Luís
Vuartman para ele tornar a Calecut a ver se podia trazer os dois milaneses. Ele
assim negociou de maneira que os milaneses decidiram vir para os nossos.
Contudo este acordo foi descoberto, os dois milaneses foram mortos pelos mouros
e Luís Vuartman salvou-se e acolheu-se na fortaleza de Cananor.
Dom Lourenço, como tinha recado de seu pai para
ir pelejar a armada do rei de Calecut, assim se preparou com a sua frota de que
eram capitães Rodrigo Rebelo, em
cuja nau, que era de quatrocentos tonéis, ia Dom Lourenço, Filipe Rodrigues, Fernão
Bermudas, Nuno Vaz Pereira, Lopo Chanoca, Gonçalo de Paiva, Antão Vaz,
João Serrão, Diogo Pires, Francisco
Pereira Coutinho e Simão Martins.
Nestas onze velas iriam oitocentos soldados portugueses além de outros da terra
e com esta frota foi Dom Lourenço acometer a de Calecut que entre naus de
guerra e de mercadores em cuja guarda saíra, havia oitenta e quatro naus e
cento e vinte e quatro paraus. Ao ver esta armada do rei de Calecut, Dom
Lourenço ficou apreensivo, não por lhe faltar ânimo, mas sim por recear que
fizesse espanto a alguns dos nossos ver tanta multidão de naus e fustalha.
Porém
como tinha assentado de pelejar e assim fora o parecer dos capitães e fidalgos
da frota abalou contra a armada dos inimigos, posto que lhe mandassem dizer que
os deixasse ir em paz guiar algumas naus de mercadores aos portos para onde
iam, não os achou descuidados nem desprovidos porque, se a nossa frota lhe fez
rosto, o mesmo fez a outra até chegarem a tiro de bombarda de que de uma e da
outra parte se fez uma temerosa salva com som de trombetas, atabales e outros
instrumentos que tocavam de ambas as frotas; tudo isto à vista de Cananor e do
rei de Calecut que tudo via muito bem do lugar onde estava.
Dom
Lourenço encaminhou a nau para a nau-capitã dos mouros na qual lançou o arpão
quatro vezes antes que aferrasse, entrando nela logo. Os primeiros foram Dom
Lourenço, Filipe Rodrigues, João Homem, Fernão Peres de Andrade, Vicente
Pereira e Rui Pereira, seguidos por muitos outros, mas isto não aconteceu sem
grande resistência dos inimigos porque na nau inimiga havia seiscentos homens
dos mais lúcidos de toda a frota que assim no entrar dela como depois lutaram
ao modo de bons cavaleiros. Contudo os nossos trataram-nos de maneira que ou
mortos ou cativos ou que se lançaram ao mar, a nau foi de todos despejada.
Acabado
este assunto, Dom Lourenço acudiu a Nuno Vaz Pereira que, com a sua caravela
fora aferrar a sota-nau (a que fecha a armada; a que vai em
último lugar) dos inimigos, ficando-lhe atravessada debaixo da proa e com o arfar
que fazia a caravela, cuidaram de ir ao fundo e com as setas e lanças de
arremesso que lançavam dos castelos de avante se tinham todos por mortos. Deste
perigo tirou-os Dom Lourenço ao chegar porque logo abalroou a nau e entrou nela
e não sem menos trabalho do que se levou no entrar da nau-capitã porque nela
havia quinhentos homens lúcidos e acostumados à guerra, dos quais mataram e
capturaram a maior parte; outros salvaram-se a nado.
As
naus dos mercadores, como viram estas duas desbaratadas, umas acolheram-se aos
portos de Calecut e outras se fizeram ao mar para seguirem viagem para as partes
onde tinham tomado carga. Contudo as outras naus e paraus de guerra, posto que
vissem tão mau princípio nem por isso deixaram de acometer com muito ânimo a
nossa armada e com tanto ímpeto que não havia navio dos nossos que não fosse
cercado de dez e quinze dos inimigos, de quem se defendiam com muito trabalho
porque eles vinham muito bem armados e traziam muita artilharia de bronze e de
ferro com que tratavam muito mal os nossos.
Um
dos capitães que nesta peleja se achou em maior perigo foi João Serrão porque
tiveram cercada a sua galé, por bom espaço de tempo, mais de cinquenta paraus, dos
quais se desfez com assaz trabalho e com muitos dos seus feridos. Nesta revolta
e ruído de bombardas e outros tiros de arremesso, aferraram quatro paraus
grandes, o bergantim de Simão Martins e assim aferrados todos ficaram
um pouco afastados da nossa frota e como os paraus eram altos e o bergantim muito
raso os nossos se recolheram da coxia para baixo da tolda do bergantim, a maior
parte deles feridos. Despejada a coxia, os inimigos entraram no bergantim;
Simão Martins vendo isto, cansado com estava, arremeteu da tolda a eles e os
enxotou a todos eles do bergantim, lançando-se uns ao mar e outros aos paraus (acontece
que eram portugueses de muita fé e quando não podiam mais, invocavam a força
divina que os impelia e assustava os nativos). Estes quatro paraus foram logo socorridos por outros quatro e Simão
Martins, vendo o perigo em que estava, tomou um barril desfundado e na boca
dele atou uma pele com a qual parecia ser uma bombarda grossa; o barril assim
enfeitado assentou para a banda donde estavam mais paraus, dando a entender que
lhe queria pôr fogo. Os inimigos, vendo isto, com medo da bombarda contrafeita,
se alargaram todos e assim livre de perigo se foi para Dom Lourenço a quem
ajudou a desbaratar sete paraus com que estava aos botes. Os outros capitães também
o fizeram todos tão bem que a frota de Calecut foi desbaratada. Esta peleja
durou todo aquele dia e parte da noite por fazer luar muito claro em que
morreram mais de três mil dos inimigos; dos portugueses morreram seis e alguns
malabares de Cochim e foram muitos os feridos de uma e da outra parte. Os
nossos meteram no fundo muitos paraus e dez naus, das quais uma ia carregada de
elefantes para Cambaia, tomaram duas bandeiras do rei de Calecut e nove naus em
que algumas delas, que eram de mercadores que não puderam escapar, se achou
especiaria e outras mercadorias de muito valor.
Com
esta vitória e despojo, Dom Lourenço tornou a Cananor, onde foi recebido por Lourenço de Brito, por portugueses e
pelo rei de Cochim com muita alegria do povo da cidade, excepto dos mouros que
ficaram muito atemorizados com este desbarato da sua frota.
Lembrando
que o vice-rei
mandou o seu filho, Dom Lourenço, à ilha de Anchediva a prover das coisas que
eram necessárias à fortaleza e à gente que nela estava, Dom Lourenço esteve
alguns dias nesta ilha e isso foi do conhecimento do Sabaio, senhor de Goa, e também a armada que o Samori (rei
de Calecut) fizera contra os nossos e de
como Dom Lourenço tinha partido de Anchediva, onde não podia regressar tão
facilmente por causa da armada do Samori. O Sabaio não quis perder a ocasião da
ausência de Dom Lourenço e da sua armada (que estavam em Cananor) e no mesmo instante mandou sobre a
fortaleza de Anchediva uma armada de cerca de sessenta navios de remo, da qual
era capitão um português renegado, chamado António
Fernandes, carpinteiro de naus, que
então se chamava Abedela e foi um
dos degradados que Pedro Álvares Cabral levara e deixara em Quíloa. De lá viera
ter a estas partes e por seu conselho o Sabaio fez esta armada, prometendo-lhe
que se tomasse a fortaleza de Anchediva lhe daria a Cintacorá. Nesta armada
havia muita e boa gente de guerra, a qual, durante quatro dias, acometeu muito
esforçadamente a fortaleza, mas Manuel
Pessanha defendeu-se de maneira que
os inimigos, vendo quão mal os tratavam, tomaram a decisão de levantar o cerco
e voltarem para Goa.
O
vice-rei vendo quão trabalhosa era a fortaleza
de sustentar por estar longe de Cochim e por conselho de todos os capitães e
pessoas de qualidade, mandou, daí a poucos dias, derrubá-la e ordenou que fosse
Dom Lourenço com a armada que trazia para que nela recolhesse a gente e a
trouxesse a Cochim e assim ficou a ilha de Anchediva na mesma liberdade que
dantes tinha de ser comum a cristãos, mouros e gentios. = p.188
Transcrita
para o português actual por Maria Carmelita de Portugal
Lagos,
15 de Junho de 2017
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