quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O rei Dom Afonso V e África, após o falecimento do Infante Dom Henrique

CRÓNICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO I (2)

sobre “O rei Dom Afonso V e África, após o falecimento do Infante Dom Henrique”

rei Dom Afonso V

CHRONICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO I escrita por Damião de Goes e dirigida ao rei Dom João III; 1724; PDF - pp. 93 – 125.


Capítulo XVIII     
De como o rei Dom Afonso V determinou passar a África para tomar a cidade de Tânger e como, por conselho e parecer dos seus, ordenou atacar a vila de Arzila.

O rei Dom Afonso V determinou pôr em prática um pensamento que, sobre todos os outros, trazia decidido no seu coração e que era passar a África e ir cercar Tânger (talvez por tudo o que lá passou o seu tio Dom Fernando, irmão do rei Dom Duarte). Sobre isto, no ano anterior, tivera muitos conselhos, mas o parecer dos demais foi “que por enquanto se devia deixar a ida a Tânger por ser cidade grande e forte e assim por no reino (por causa das guerras passadas em África) não haver dinheiro para se poder pagar as despesas que tão grande empreendimento requeria, mas já que o grande desejo do rei era passar a África, os Conselhos do rei pediram-lhe que já que assim era que fosse cercar Arzila e por enquanto desistisse de querer tomar Tânger tanto pelos motivos já afirmados como por aquela cidade estar em posse de haver vitória dos nossos, pelo que parecia bem deixá-la em paz até que o tempo por si desse ocasião para se realizar tal empreendimento de tanto peso e perigo.
O rei concordou de boa vontade porque, de qualquer modo, a sua intenção era passar a África. Assim com muita diligência mandou preparar por todo o reino e fora dele todas as coisas necessárias para a sua passagem, mandando logo Pero de Alcáçova, seu escrivão dos seus bens, pessoa em quem muito confiava e Vicente Simões, homem muito experiente nas coisas do mar e nas daquela costa de África que fossem, pelo modo mais dissimulado que pudessem, a Arzila, fingindo serem mercadores e lhe espiassem as forças dela e lugares onde seria mais prudente desembarcar e eles tudo isto fizeram conforme o estabelecido e, após regressaram ao reino a relatar tudo ao rei.=      p.95

Capítulo XIX     
De como o príncipe Dom João alcançou do rei, seu pai, que o quisesse levar consigo e do modo que nisto teve.

A intenção do rei Dom Afonso V, quando determinou passar a África, foi deixar o príncipe por governador do reino e com ele Dom Fernando, primeiro duque de Bragança, mas como os pensamentos do príncipe em tudo passassem os limites da sua idade propôs logo ter permissão do rei para o acompanhar num tão grande empreendimento e nisto andou alguns dias cuidadoso por não se saber determinar se ele em pessoa descobrisse a sua vontade ao rei ou lha mandasse dizer por outrem e considerando que, por ser tão moço como era, poderia haver nele menos autoridade do que a que convinha para si mesmo poder fazer o seu pedido, determinou descobrir a sua intenção a Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, por ser pessoa em quem ele confiava muito e saber que era muito bem aceite pelo rei. Assim que, confirmado neste seu parecer, mandou dizer ao conde que o mais dissimuladamente que pudesse, se encontrasse com ele, o príncipe, para lhe dar conta de algumas coisas que muito lhe importavam. O conde assim fez e encontrou-se com o príncipe. Este disse-lhe:
- Conde, a muita confiança que o rei, meu senhor, tem em vós dá-me a ousadia para fazer o mesmo e vos dar de mim e das minhas coisas parte; à uma, para delas me aconselhardes e à outra, para, se vos bem parecerem, me ajudardes no efeito delas e por esta ser de tanto peso como logo ouvireis eu não a quis, por mim nem por outrem pôr em prática, esperando que vós fosseis o orientador do meu pedido. Se este vos parecer inadequado, sem nenhuma dificuldade mo tireis do pensamento em que ando. Nem de noite nem de dia deixo de ser atormentado e para que não estejais mais em suspenso no para que vos mandei chamar, sabei que eu me acho ofendido pelo rei, meu senhor, não me querer honrar com a minha presença nesta viagem que faz contra os infiéis porque a coisa que mais desejo é ganhar honra por minha própria mão e porque vejo o tempo disposto e o empreendimento tão santo e tão honroso vos digo que de todo estou determinado, por qualquer modo que seja, seguir o rei, meu senhor e acompanhá-lo do que ele não deve ter desprazer e porque eu receio por algumas dúvidas que terá por justas que me negue isto e com razões mo queira estorvar, entre elas a minha pouca idade misturada com a muita obediência que lhe tenho, não ousaria nem saberia replicar. Peço-vos e rogo, Conde, que deis disto conta a Sua Alteza e façais tanto que dele me tragais o consentimento porque se ele mo nega, sabede certo que, de duas coisas se há-de seguir uma: ou de desprazer hei-de cair em alguma grave doença ou depois de Sua Alteza ter partido o hei-de seguir e se não for como príncipe será como um aventureiro soldado.
O conde não menos aturdido das vivas razões do príncipe que alegre de ver nele tão generoso ânimo disse-lhe:
- Senhor, como a vontade do que me tendes dito não depende da minha, senão da do rei, vosso pai, não tenho de vos responder nem razão que possa dar acerca do que tendes determinado; mas isto vos peço que aquilo que por ventura o rei poderia altercar comigo, contrariando o que pedis, vos praza que ambos o pratiquemos porque ao longo das réplicas que tivermos me resolverei nas razões que lhe hei-de dar, caso não se incline a aceitar o vosso requerimento. Vós, Senhor, sois moço, único herdeiro deste reino de Portugal, casado há pouco que são três pontos porque as leis divinas e humanas vos escusam de sairdes fora da vossa casa a fazer guerra em terras estranhas. A estas três razões se junta a quarta, que sobre todas se deve receber: com a ida do rei e a vossa fica o reino de Portugal órfão de legítimo herdeiro. Se a sorte nesta viagem vos respondesse ao contrário do que cuidais, ora seja assim: que a vossa ida possa, por qualquer modo, vos parecer lícita e necessária e que dela se deva seguir grande bem a este reino e a todos os que convosco forem. Quando isto fosse, não poderia, por boa razão ser, senão ficando vosso pai no reino.  O vosso pai, quando Deus ordenasse outra coisa de vós, tem idade para se casar e haver fruto de bênção para o bem e amparo para todos nós e desta vossa terra. Ele vai em pessoa e na sua ida não pode haver estorvo. Eu teria por bom conselho que vós, Senhor, ficásseis em companhia da princesa, vossa esposa, cuja nova idade e matrimónio e não terdes ainda filho nem filha dela serão causa dela tomar desta vossa ida tanto desprazer que facilmente de todo podereis ser causa e azo principal da sua morte.
Ouvindo o príncipe o discreto modo que o conde teve em replicar o seu propósito, continuando no desejo que tinha, disse-lhe:
- No que respeita aos desgostos da princesa, os homens nas coisas que muito lhe cumprem se, de facto, são homens, não devem ter em nenhuma conta as intenções nem desejos das esposas. Estas são sempre mais inclinadas a seus particulares apetites e vontades do que a toda a boa razão e honra de seus maridos. Quanto a eu ser jovem, nessa parte me parece que tenho melhor causa porque a arte da guerra, na qual a experiência é a que mais se requer, não se pode aprender senão na mocidade. No que toca à sucessão do reino, apesar de não ter filho, saiba ao certo, que assim o podia dizer ao rei, seu senhor, que a tão honradas heranças nunca faltaram tais herdeiros que a elas lhes convém porque em tamanhos casos Deus, a cuja providência tudo é presente, sempre ordena o que é mais seu serviço tanto para o bem do reino como dos reis dele por cuja infinita bondade terá a cargo como até agora sempre o fez.
O conde mais admirado do replicar do príncipe do que com o que antes propusera, disse-lhe:
- A primeira coisa que vou fazer é dar conta ao rei do que Vossa Alteza me disse e farei tudo o que me for possível para lhe trazer uma boa resposta ao seu requerimento.
Assim fez porque do recado que o conde deu ao rei e prática que com ele teve, resultou o príncipe obter a permissão que tanto desejava.=    p. 100

Capítulo XXI     
De como o rei Dom Afonso V partiu de Lisboa e do que se passou até ancorar diante da vila de Arzila.

A decisão que o rei tomou de levar o príncipe herdeiro consigo não foi tão fácil que depois de lhe ter dado o consentimento ainda houve diferentes pareceres. Contudo o príncipe teve tais modos e meios que a sua ida não pôde ser impedida. Assim decidido, ficou a princesa Dona Leonor por regente e o primeiro duque de Bragança por primeiro-ministro. O rei mandou com muita brevidade preparar a sua armada e, porque sabia que entre alguns senhores e outras pessoas qualificadas que com ele iam, havia ódios e mal-entendidos, pelos quais andavam alguns deles excomungados e lhes estavam por isso interditos os sacramentos da Igreja, mandou que nenhum dos tais o acompanhasse sem primeiro se reconciliar com os que tinha ódio ou desavenças. Todos assim o fizeram.
Nesta viagem, o rei ordenou que só os condes levassem cavalos por não haver, naquela altura, necessidade disso e por ter por escusada a despesa que com eles se poderia fazer.
Da armada que se fez na cidade do Porto, o rei deu cargo de capitão da capitania a Dom Fernando duque de Guimarães, filho do duque de Bragança, Dom Fernando. Chegado com esta frota a Lisboa, partiu logo toda a armada do Restelo no dia 15 de Agosto de 1471 e, dois dias depois, chegou com bom tempo à vila de Lagos, onde encontrou preparada a armada do Algarve com Dom Duarte, conde de Viana que veio de Alcácer Ceguer a mando do rei e que os estava esperando.
Nesta armada havia entre naus grandes, galeões, galés, fustas e outros navios de carga trezentas e trinta e oito e gente de guerra nobre e soldados, não contando com a marinhagem e outra gente de serviço, vinte e quatro mil homens. O que toda esta armada de Lisboa fez de despesa foi cento e trinta e cinco mil dobras de ouro, valor que encontrei nos memoriais feitos por Dom Vasco de Ataíde, prior do Crato, que fez a armada que se ordenou em Lisboa e tomou as contas de toda, tanto a ida como a vinda e a despesa que se fez com a tomada de Alcácer, de que ele também tomou as contas, se despenderam cento e quinze mil dobras, gasto tão moderado para o que não sei se bastaria agora um conto de réis de ouro para cada uma destas armadas, segundo a desordem que cresceu em todas as coisas e a cobiça nos oficiais dos reis.
Voltando à viagem, assim que o rei chegou a Lagos, sem mais esperar, partiu no dia seguinte depois de ouvir missa e pregação no fim da qual disse publicamente que o lugar que ia pôr cerco era Arzila, onde chegou com toda a armada no dia 20 de Agosto, já de noite.=          p. 106

Capítulo XXII     
Do sítio e antigüidade da vila de Arzila.

À vila de Arzila, os mouros chamam Asela e dizem (segundo o contam suas histórias) que foi fundada pelos romanos no mesmo lugar onde agora está que é na costa do mar Oceano 17 léguas do Estreito de Gibraltar.
Esta vila esteve, nos tempos dos romanos, sujeita ao senhor de Ceuta que era tributária aos mesmos romanos. Depois foi tomada pelos godos que nela tiveram sempre seus capitães a cuja obediência esteve até ao ano de Egezira e conta dos mouros e árabes de 94, que foi três anos depois da perda de Espanha e de Ceuta ser tomada pelos mouros. Por isto se vê quão forte e poderosa era esta vila que sendo Ceuta de mouros e Espanha tomada por eles, a tiveram cristãos contra o poder de tanta mourisma, tão cheia de vitórias do sangue cristão por tanto espaço de tempo.
Em poder dos mouros esteve próspera tanto de armas como de letras e mercadorias durante 220 anos até que por exortação dos reis de Espanha, descendentes da geração dos godos, foi cercada por uma grande armada de ingleses e tomada com grande dano e perda que de uma e de outra parte se fez e pela muita gente que no cerco os ingleses perderam como é gente áspera nas coisas da guerra e que sofre mal as perdas e afrontas que nela recebe a destruíram de todo e mataram a ferro e fogo toda a gente que nela havia sem deixarem vivos e assim esteve destruída e desabitada quase trinta anos.
Passado este tempo e reinando na Mauritânia os senhores e pontífices de Córdova foi, de novo, por ele edificada de melhores, mais fortes e magníficos edifícios do que antes tinha e cresceu em riqueza e grandeza havendo nela muitos homens muito letrados e muitos mais de guerra que continuamente faziam estragos por mar na Espanha que então era de cristãos vizinhos ao mar e de quem os fronteiros de Ceuta e de Alcácer Ceguer depois que foram ganhas pelos portugueses, recebiam muitos e contínuos danos.
Nesta prosperidade esteve até que o rei Dom Afonso V a ganhou. A comarca desta vila é muito fértil tanto que poucas daquela costa de África lhe têm vantagem tanto de frutas como de sementeiras que é tão abastada que é notório aos portugueses fronteiros que nela no nosso tempo estiveram e habitaram até ser ganha pelos mouros.
Na altura em que o rei Dom Afonso V a foi cercar, reinava anda em Fez Eslerif Moley Abdelac, contra o qual se levantou o senhor Saic Abra que o veio cercar a Fez, mas Eslerif derrotou-o por conselho de um seu capitão e conselheiro que era primo-irmão de Saic.
Depois desta guerra, o rei Eslerif mandou aquele seu capitão e conselheiro a Temezara a pacificar aquela comarca que se revoltara, Saic Abra voltou com oito mil árabes a cavalo e outra gente a pé e cercou Fez a nova e depois de a ter cercada durante um ano, os cidadãos de Fez, não podendo mais sofrer as conseqüências do cerco, secretamente aceitaram o ocupante e entregaram-lhe a cidade e Eslerif se foi com toda a sua família para Tunes.
Neste ano em que Saic tinha cercada Fez a nova, veio o rei Dom Afonso V sobre Arzila e tomou-a e aprisionou duas mulheres de Moley, xeque, grande senhor entre os mouros que, por causa de se revoltar a província de Habar que era sua, vivia então em Arzila, de que era senhor.
Depois que foi rei de Fez, Moley Maomé, onde, neste tempo, estava por causa da guerra que Saic fazia a esta cidade-nação e o rei Dom Afonso V aprisionou mais um seu filho, Maomé e uma filha, ambos de idade de sete anos e os trouxe prisioneiros para Portugal, onde Maomé esteve sete anos, a quem os mouros por ele saber muito bem a língua portuguesa lhe chamavam Moley Maomé o Português. Este, sendo já rei, veio cercar duas ou três vezes Arzila com grande poder e desejo de a tomar como lugar do seu nascimento e numa destas vezes, reinando em Portugal Dom Manuel, ganhou a vila e os nossos recolheram-se ao castelo e, segundo contam os historiadores árabes, fizeram acordo com o rei Maomé que, se dentro de dois dias não lhes viesse socorro, lhe entregariam o castelo, salvas as vidas e os bens. Deus, por sua misericórdia, não quis que coisa tão importante à cristandade voltasse para a posse dos infiéis porque foi socorrida dentro destes dois dias pelos nossos e também por castelhanos, cujo capitão era Pedro Navarro, homem muito esforçado e experiente nas coisas da guerra.=     p. 111

Capítulo XXIII     
De como o rei Dom Afonso V desembarcou com a sua gente e mandou logo cercar a vila de Arzila.

Na mesma noite em que o rei Dom Afonso V chegou a Arzila com toda a sua armada, teve Conselho sobre o modo da desembarcação e cerco que lhe queria pôr. Depois de vários pareceres ficou concluído que, em amanhecendo, Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto e o conde de Marialva, Dom João Coutinho saíssem a terra com a gente que para isso lhes foi ordenada e que assim que chegassem à praia, abalasse o rei com toda a sua companhia e coisas necessárias para o cerco de maneira que, no mesmo dia, o cerco ficasse instalado de modo que a vila não pudesse ser socorrida nem dela pudesse sair pessoa alguma e como estes dois condes eram pessoas de grande competência e muito desejosos do serviço ao rei, ordenaram tudo tão bem que, ao romper da madrugada, com barcas, bergantins e outros navios de remo chegaram à praia.
 Como o desembarcadouro daquela vila era áspero e tinha más entradas e perigosas e, nesta altura, com tormenta, o mar andasse de levadio, os do remo não podiam tanto ajudar sem que as vagas não estorvassem. Assim, apesar de ser antes do tempo estabelecido, o rei embarcou logo com o príncipe nos navios que os estavam esperando, fazendo remar com tanta força que, em breve espaço de tempo, chegou ao perigo em que os condes andavam, no qual sem nenhum medo lhes quis ser igual companheiro. Visto pelos da armada, não ficou pessoa que ou nos navios que eram de qualidade para poderem chegar à praia ou em batéis não seguisse logo o rei Dom Afonso V e assim todos lutando contra a fúria do mar e força dos ventos trabalharam tanto até que chegaram a terra, mas isto não se fez sem grande perda porque se alagou uma galé e outros navios e batéis em que se afogaram mais de duzentos homens de que oito eram fidalgos, cujos nomes não achei escritos. Esta negligência é de repreender nos cronistas daquele tempo porque nomes de tais pessoas se há-de fazer menção por bem e honra das linhagens e famílias.
Voltando ao rei, assim que desembarcou, não esperou o palanque que vinha na armada que, por causa da tormenta não foi possível trazer logo e mandou instalar o seu arraial e assegurá-lo com cava, bastiões e outras coisas que, para o tempo e qualidade do lugar lhe pareceram necessárias. Tudo se fez sem os da vila oferecerem nenhuma resistência, já que dentro havia muita e boa gente de guerra com depois se viu.=     p. 113

Capítulo XXIV     
De como se começou o combate e a vila foi entrada sem o rei Dom Afonso V o saber.

A tormenta demorou tanto que não foi possível trazer o palanque a terra nem mais do que duas bombardas. Contudo o rei era apressado nos seus assuntos principalmente nos da guerra (na qual a diligência não só resiste à sorte, mas ainda a vence) mandou logo dar o combate e atirar à vila com duas bombardas com que derrubaram dois lanços do muro no espaço de três dias contínuos e, no dia seguinte, que era dia do apóstolo São Bartolomeu, dia 24 de Agosto, em amanhecendo, os da companhia de Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, que era a guarda da estância do lado do castelo, viram sobre as ameias de uma das torres posta uma bandeira que parecia de paz, pelo que o conde mandou fazer sinal aos de dentro para com segurança poderem sair e dizerem o que queriam. Assim se fez, dando-lhe da parte do alcaide recado para com segurança virem falar sobre o acordo de paz. Logo o conde mandou dizer ao rei que respondeu que desse ao alcaide todas as seguranças que lhe pedisse para se encontrar com ele. Andando eles nestes recados de uma e outra parte se teve por suspeita que alguns dos capitães e gente mais inclinada à vitória misturada com sangue do que à paz e concórdia, tendo-se por afrontados por o rei exigir a vila para o acordo, acometeram com tanta fúria pelas partes, por onde o muro estava derrubado que subitamente entraram pelo alto do muro. Os mouros que estavam descuidados por causa do acordo que de ambas as partes se fazia, acudiram com muita pressa, defendendo tanto o muro quanta a sorte em caso tão súbito quis conceder. Os nossos como já tivessem pressuposto de antes morrer que regressar ao rei sem vitória que, sem seu mandado, determinaram naquele dia alcançar, fizeram recolher os mouros para dentro de maneira que, embora a entrada custasse a vida a muitos deles e a muitos mais o sangue, eles a fizeram segura aos que os seguiam de modo que a vila foi entrada antes de o rei saber. Depois de o saber, o rei pediu com grande pressa o capacete porque das outras peças necessárias andava sempre armado e fazendo o príncipe o mesmo se foram ao lugar por onde a vila fora acometida e porque as entradas que se fizeram no muro não eram tão grandes para que pudesse passar bem tanta gente quanta se requeria e a gritaria e brados eram tão grandes dentro da vila que o rei Dom Afonso V bem podia pensar ser muito necessário acudir aos seus. Então mandou pôr aos muros algumas escadas que já eram tiradas por terra porque subiu muita gente. Alguns acudiram às portas da vila e as abriram por onde o rei e o príncipe logo entraram. Com este socorro, não podendo os mouros resistir ao ímpeto dos nossos, uns recolheram-se à mesquita e outros ao castelo, lugar muito forte, onde depois, posta boa guarda, o rei com os seus agradeceram muito a Deus por tão bom princípio de vitória, apesar de ser com perda e dano dos seus.=           p. 116   

rei Dom Afonso V

Capítulo XXV     
De como a mesquita foi entrada e da brava peleja que sobre isso houve.

Depois que o rei Dom Afonso V ganhou a vila de Arzila, mandou ao conde de Monsanto, a quem estava destinada a guarda da estancia do castelo, que tivesse grande vigia à porta secreta, a que chamamos da traição, de maneira que por ela não pudessem sair os mouros e ele foi à mesquita que encontrou com as portas fechadas e tão bem trancadas que embora os nossos fizessem grande esforço para as quebrar com machados e outros apetrechos não o conseguiram. Vendo isto, o rei mandou aparelhar vaivéns de tanto peso e tamanho que com a força da gente que nisso trabalhava, foram logo rachadas em pedaços e derrubadas. Depois muitos dos nossos entraram, mas eles não acharam o passo tão fácil como julgavam porque os mouros como homens desesperados da vida, receberam-nos de modo que logo ali mataram alguns e feriram muitos. Contudo a peleja travou-se de maneira que eles foram de todo constrangidos a deixar a porta, retirando-se para o centro da mesquita, onde a peleja se renovou de modo que mal puderam os nossos crer que gente já vencida fizesse ainda tanto esforço.
Vencidos assim os mouros, os que deles ficaram vivos, que foram muito poucos, excepto mulheres e crianças que estavam escondidos pelos cantos da mesquita, o rei mandou que se pusessem com boa guarda e, para maior segurança, os levassem ao arraial. Entre os fidalgos que aqui morreram foram Dom João Coutinho, conde de Marialva, cuja morte o rei e o príncipe com todo o reino sentiram muito e com razão porque ele era um dos nobres, liberais e esforçados Cavaleiros que naqueles tempos havia em toda a Ibéria.=     p.117

Capítulo XXVI     
De como o rei tomou o castelo e do que no combate dele se passou.

Ganha a mesquita, ficava o castelo, lugar muito forte e bem provido de munições de guerra, onde estava recolhida muita gente nobre. O rei, certificado pelos prisioneiros disto, receando que lhes viesse socorro, mandou-o logo combater e pôr as escadas ao muro, pelas quais começaram a subir tão corajosamente que os mouros desconfiados das suas forças, esforçavam-se por se recolher às torres, julgando estar nelas mais seguros, mas os que entraram levavam-nos tão sem medo diante de si que poucos deles, pela estreiteza das portas, se puderam acolher a elas. Isto também causou fecharem-nas os que estavam dentro de modo que pelejando se travaram de maneira que aferrados uns com os outros caíram a maior parte deles em tropel pelas escadas do muro até virem dar ao pátio do castelo, onde estava a maior força de gente que da vila dentro nele se recolhera e ali foram tantos os mortos e feridos de uma parte e da outra que por nenhum lugar do pátio se podia dar passo que não fosse sobre sangue ou corpos derrubados vivos ou mortos. Os nossos como estavam no pátio, alguns deles acudiram às portas do castelo e as abriram, por onde logo o rei e o príncipe entraram e não foi tão tarde que ainda não achassem bem em que pelejar porque a peleja era tão brava que diante do rei e do príncipe alguns dos nossos, perdendo as suas vidas, receberam o extremo galardão de suas honras.
Entre os que aqui morreram foi Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, o qual acudindo ao chamado de um mouro que estava num cubelo, dizendo que se o salvasse lhe daria grande resgate. Sem pensar e sem segurança, subiu por uma escada e, chegando ao cubelo o mouro cortou-lhe a cabeça no primeiro golpe. Esta morte foi sentida pelos nossos tanto que a nenhum dos mouros que ali se encontrava deixaram com vida. Alguns dizem que estando ele numa torre do castelo com o capacete fora da cabeça veio uma seta perdida e lhe deu na cabeça que morreu logo. Seja como for, ele fez o fim dos seus dias ao serviço de Deus e do seu rei.
Acabada assim esta cruel peleja em que o príncipe esteve muito valorosamente mais como soldado do que como príncipe único herdeiro, os mouros que estavam na torre de menagem e nas outras desesperados por socorro e confiados na clemência do rei para salvarem as suas vidas entregaram-se à sua mercê.
 O número dos prisioneiros passou de cinco mil, entre os quais duas mulheres de xeque Moley e um filho e uma filha, ambos de sete anos de idade. As mulheres e a filha foram dadas por permuta dos ossos do Infante Dom Fernando e pelo resgate do filho, escrevem os escritores árabes, que o xeque Moley deu ao rei Dom Afonso V grande soma de dinheiro. Contudo os nossos dizem que o rei lhe mandou o filho livremente e esta atitude foi a causa de o xeque Moley deixar tão facilmente o cerco à ilha Graciosa que o fez já no reinado de Dom João.
Dos mouros que se acharam tanto na vila como na mesquita e castelo morreram mais de dois mil. Os que ficaram vivos defenderam bem as suas vidas e moradas, pelo que é de crer que dos nossos morreram bastantes neste combate. Os cronistas, julgando nisso acrescentarem louvor aos portugueses, por ventura não quiseram declarar, mas tão grande vitória alcançada sem perda do vitorioso seria abatimento e se poderia dizer com razão ser de mulheres armadas ou de homens fracos e desarmados, o que eles não eram; mas sim muito bem armados e muito animosos do que se seguiu como é verdade que além dos condes de Marialva e de Monsanto que os nossos escritores nomeiam morreram muitos outros na tomada desta vila, dos quais se nomearam os que por nobreza e valentia mereciam com louvor declarados, deram nisso melhor cor à história que escreveram e grande louvor às famílias dos que em tão notável e glorioso feito acabaram as suas vidas.
Encontraram-se na vila cinquenta cristãos prisioneiros a quem esta memorável vitória restituiu à liberdade que a maior parte deles havia muito tempo que a tinha perdido. O outro despojo foi estimado em mais de oitocentos mil dobras de ouro, do qual o rei fez escala franca aos do exército sem disso querer para si coisa alguma, no que bem mostrou a sua liberalidade como sempre o fez antes e depois em muitas partes.=       p. 121

Capítulo XXVII     
De como, depois de acabado o combate no castelo o rei foi à mesquita e armou o príncipe Cavaleiro.

Tomado o castelo, o rei Dom Afonso V foi logo à mesquita, à porta da qual o estava esperando o seu capelão mor e outros da sua capela em procissão cantando hinos e salmos com os quais foram para dentro onde se encontrava o corpo de Dom João Coutinho, conde de Marialva e sobre ele uma cruz, a que fizeram oração em memória do triunfo com que Jesus Cristo nosso Salvador na cruz venceu o demónio, capital inimigo da espécie humana. Feita a oração, parecia ao rei que nenhum lugar nem razão poderia achar mais conveniente para armar o príncipe Cavaleiro do que aquele. Precedendo a algumas cerimónias para o acto necessárias, pondo o príncipe os joelhos no chão, o rei lhe tirou a espada da bainha, dizendo-lhe em alta voz:
- Filho, grande dom recebemos hoje de Deus, nosso Senhor, pois além de dar em nossas mãos uma tão nobre e forte vila, deu sobre isso azo para poderdes devidamente entrar para a Ordem da Cavalaria e serdes armado Cavaleiro por minha mão, vosso rei e vosso pai. Porém antes que isto aconteça, é bem que saibais que Cavalaria é virtude misturada com poder, segundo a natureza muito necessário para com ele estabelecer a paz na Terra quando a cobiça ou a tirania com desejo de reinar inquietam os reinos, repúblicas ou pessoas particulares. O instituto e regra da Ordem de Cavalaria obriga os Cavaleiros a deporem de seus Estados os reis e príncipes que não guardam justiça e pôr em seus lugares outros da mesma ordem que o façam bem e verdadeiramente. Também são obrigados a guardarem lealdade a seus reis, senhores e capitães e a aconselharem-nos bem porque o Cavaleiro que tem a obrigada e não cumpre com ela é como homem a quem Deus deu raciocínio e não quer usar dele. Os Cavaleiros devem ser liberais e no tempo da guerra dar seus bens aos outros, excepto armas e cavalos de suas pessoas que estes se lhes reservarão para com eles ganharem honra. Além disto os Cavaleiros são obrigados a morrer pela sua religião e pela sua terra e amparo dos desamparados porque assim como a Ordem Sacerdotal foi por Deus ordenada para seu culto divino assim a Ordem da Cavalaria foi por Deus instituída para se fazer justiça, defender a Lei Divina e socorrer as viúvas, órfãos, pobres e desamparados e os que isto não fizerem não se podem chamar de Cavaleiros. Já vos declarei os grandes encargos e obrigações da Ordem da Cavalaria; agora pergunto-vos se com tais condições quereis entrar nela?
Ao que o príncipe respondeu que sim.
O rei Dom Afonso V perguntou:
- Ora visto que vossa vontade é tal, prometeis guardar-vos, cumprir e fazer guardar o que vos disse com todos os outos bons costumes, foros, leis e direitos que pertencerem à Ordem da Cavalaria?
- Sim. – disse o príncipe.
O rei respondeu:
- Pois assim eu vos armo e faço Cavaleiro em nome de Deus Pai, Filho e Espírito Santo; três Pessoas e um só Deus.
Tocando cada um destes Santos nomes com a espada o capacete que o príncipe tinha na cabeça disse-lhe:
- Filho, praza a Deus que haja por seu serviço serdes vós tão bom Cavaleiro como o foi Dom João Coutinho, conde de Marialva, cujo corpo aí vedes jazer morto com muitas feridas que, por serviço de Deus e nosso, hoje recebeu.
O rei beijou o príncipe na face, levantou-o pela mão e o príncipe pondo outra vez os joelhos em terra beijou a mão do rei e pai com muita reverência e logo no mesmo instante o rei e o príncipe armaram ali muitos Cavaleiros que naquele dia o tinham bem merecido.
Acabada a cerimónia, recolheram-se aos aposentos que no castelo lhes tinham já reservado, onde passaram toda a noite com grande guarda e vigia tanto na vila de Arzila como no arraial.=       p.125

rei Dom Afonso V

Capítulo XXVIII     
De algumas coisas que o rei Dom Afonso V fez e ordenou nos dias que esteve em Arzila.

Passada aquela noite, em amanhecendo, o rei Dom Afonso V mandou que os corpos dos mouros mortos se enterrassem fora dos muros e os dos cristãos se enterrassem na mesquita e com isto mandou que a primeira coisa que o clero fizesse fosse ordenar as coisas necessárias para a consagração desta mesquita a igreja. Nesta cerimónia estiveram presentes o rei e o príncipe mudando o nome daquela igreja para igreja da Assunção de Nossa Senhora para memória do dia em que o rei partira de Lisboa.
Como a mesquita foi sagrada por um dos bispos que estavam presentes; este mesmo bispo disse a missa de Nossa Senhora em pontifical. Esta missa terminou sem haver pregação e seguiu-se uma missa de requiem pelas almas dos defuntos com seu responso e antes dos corpos do conde de Marialva e de Monsanto se lançarem à terra, o rei Dom Afonso V, sem tomar largos conselhos, deu a Dom João de Castro que ali estava presente o título de conde de Monsanto como seu pai Dom Álvaro o tivera e deu-lhe todas as terras, vilas e lugares do modo e maneira que foram do seu pai e porque Dom João Coutinho, conde de Marialva não tivera filhos, para esta nobre Casa não ficar sem herdeiros deu também o título de conde de Marialva a Dom Francisco Coutinho, seu irmão e outorgou-lhe todas as terras, vilas e lugares do mesmo modo que o conde seu irmão as possuía.
No resto do tempo em que o rei esteve em Arzila fez muitas mercês, entre as quais dar a capitania daquela vila a Dom Henrique de Menezes, conde de Valença, filho de Dom Duarte de Menezes, conde de Viana, capitão e Governador que fora de Alcácer Ceguer.=        p. 127

Capítulo XXIX     
De como o xeque Moley veio socorrer Arzila e dos acordos que entre o rei Dom Afonso V e ele se fizeram.

O xeque Moley andava ocupado nas guerras de Fez na altura em que Dom Afonso V veio cercar Arzila. Tendo a certeza deste facto, partiu com a maior pressa que pôde para socorrer os que estavam dentro da vila de Alcácer Ceguer.
Quando ele chegou a Alcácer Quibir deram-lhe recado certo de que a vila de Arzila já tinha sido tomada e suas mulheres e filhos (de Moley) feitos prisioneiros e disto ficou muito irritado e triste. Contudo como homem prudente que era, compreendendo que o rei Dom Afonso V estava poderoso e que lhe poderia fazer mais dano do que já lhe tinha feito o que seria de grande estorvo para todos os seus empreendimentos, decidiu mandar recado ao rei Dom Afonso V, fazendo-lhe saber que era seu desejo encontrar-se com ele e ser seu amigo. Dom Afonso V ficou muito contente e deu-lhe salvo-conduto e segurança para se encontrarem. Porém, o xeque Moley, depois de estar junto da vila de Arzila com trezentos homens a cavalo que consigo trouxe, desconfiado da segurança que o rei lhe dera, receou encontrar-se com ele. Contudo, por meio de algumas pessoas que para este assunto de ambas as partes se incumbiram, vieram a este acordo e ficou estabelecido que o rei Dom Afonso V ficasse senhor pacífico de Ceuta, Alcácer Ceguer e de Arzila com todos os seus limites, lugares e aldeias e que delas, como senhor, recebesse tributos, limitando logo os termos que a cada um deles pertencia e que isto fosse por um período de vinte anos. Entre eles haveria tréguas e logo ali juraram e confirmaram com declaração que estas tréguas se entenderiam para os lugares chãos e descercados somente. Quanto às vilas com cercas, cada um ficava livre de lhes poder fazer guerra e de as tomar para si sem as tais tréguas se quebrarem. Estas clausulas e condições escritas, assinadas e seladas pelo rei e pelo príncipe Dom João e pelo xeque Moley este regressou imediatamente à guerra de Fez em que andava ocupado, onde por prémio dos seus trabalhos esperava ser rei como depois pacificamente foi de todo o reino.=      p. 128

Capítulo XXX     
Em que se trata como os mouros que viviam em Tânger deixaram a cidade e das causas disso; também antigüidade e sítio de Tânger. 

Tendo os de Tânger a certeza deste acordo e de como o xeque Moley tinha regressado à guerra e assuntos da cidade de Fez, em cuja ajuda e poder tinham posto a sua esperança para recuperar Arzila e a segurança das suas pessoas, bens e cidade, desesperados de todo o socorro por causa das discórdias que havia em todo o reino e tendo receio de que o rei Dom Afonso V os fosse cercar e executasse neles a sua vingança de tantos danos, estragos, cativeiros e mortes quantas naquele lugar recebera a nação portuguesa, eles de sua vontade, o mais secretamente que lhes foi possível, despejaram a cidade de Tânger, levando os seus bens para onde lhes pareceu mais seguro e a sorte os guiou. As coisas que não puderam levar deixaram danificadas de maneira que para nada serviram depois, guardando-se de pôr fogo a nenhuma delas por não fazer sentido. Porque esta cidade de Tânger é uma das que entre os mouros se tem por mais antiga da Mauritânia não seria certo passar adiante sem ela e da sua beleza e antigüidade fazer algum texto, pois por sua cavalaria e fortaleza foi antes de a havermos com muito dano nosso não menos conhecida, temida e estimada.
Esta ínclita cidade de Tânger a que os mouros chamam Tangia, segundo escrevem os escritores árabes, foi no princípio da sua fundação edificada no mesmo lugar onde agora está que é na costa do Oceano Atlântico, junto da entrada do Estreito de Gibraltar ou Hercúleo e, segundo opinião de alguns destes escritores árabes, foi edificada por um grande senhor chamado Sedded, filho de Had; este Sedded foi senhor de todas as províncias de África, Europa e de algumas da Ásia e fez edificar uma cidade, cujas paredes e muros eram de metal fino e os telhados cobertos de ouro e prata sem outra mistura. A causa de ter tantos tesouros era, segundo eles escrevem, porque de todas as cidades que lhe eram sujeitas recolhia todos os anos grandes rendas, direitos e tributos. Destas cidades era Tânger uma das principais. Contudo outros escritores de entre os árabes e mouros tidos por mais verdadeiros e dignos de confiança, reprovam esta opinião e afirmam que foi de novo edificada pelos romanos no tempo em que estes eram senhores de Granada e Andaluzia e que depois que os godos subjugaram Espanha e parte da Mauritânia foi esta cidade posta sob o senhorio de Ceuta até que ela e Arzila foram ganhas pelos mouros e em todos estes tempos foi sempre muito próspera e abundante e houve nela muitos colégios e exercícios de letras e muitos cavaleiros muito destros na guerra e casas magníficas e paços de grandes senhores da Mauritânia.
A sua comarca não é muito fértil nem responde bem às sementeiras. Contudo tem vales vizinhos à cidade que, por causa das águas que por eles correm são muito férteis e abundantes de pasto, onde nos tempos passados havia muitos jardins, pomares e vinhas. Esta cidade quando com grande poder de gente e muitos trabalhos, perdas e despesas dos reis de Portugal não a puderam alcançar, a providência divina agora concedeu num só momento sem ferro nem sangue o que aconteceu no mesmo ano de Egezira e conta dos mouros e árabes de 882, em que Arzila foi tomada.
Quando a cidade de Tânger foi despejada, o rei Dom Afonso V foi logo avisado por dois mouros que, para ganharem a recompensa, lhe vieram logo trazer a notícia. Dom Afonso V, não confiado por saber a fortaleza e forças da cidade, não acreditou muito e fê-los pôr sob vigilância até que por outros mouros que vieram após estes soube ser verdade o que os primeiros disseram, pelo que fez a todos mercê.
No mesmo dia em que o rei Dom Afonso V soube disto, mandou Dom João, filho do duque de Bragança que depois foi marquês de Montemor que se fosse meter na cidade com alguma gente a pé e a cavalo e que ele o seguiria logo e em Tânger entrou sem estorvo nenhum no dia 28 de Agosto, quatro dias depois da tomada de Arzila, dia em que a Igreja Romana celebra a memória do bem-aventurado Santo Aurélio Agostinho, bispo de Hippo Regio.
Quando Dom João entrou em Tânger avisou logo o rei e fez buscar por todas as partes o despojo que ficara que foi de pouco valor, salvo alguns barris de pólvora e grandes bombardas e mais pequenas encravadas e a maioria foram aproveitadas por nós. O rei Dom Afonso V assim que recebeu o recado de Dom João, sem mais demora, partiu para Tânger sem o príncipe, onde foi, pelos que já lá estavam, recebido com muita alegria, mas o rei não dava grandes mostras disso porque como era de invencível ânimo e de altos pensamentos, lembrando-se da prisão de Dom Fernando, seu tio e dos danos e perdas que daquele tempo e do seu a nação portuguesa ali recebera, parece que tomava por abatimento de sua real pessoa ganhar uma tal cidade sem dela lhe ficar nome de vencedor.=     p. 133

Capítulo XXXI     
Do que o rei fez nos dias que esteve em Tânger até que se fez à vela para o reino de Portugal.

A primeira coisa que o rei e o príncipe fizeram ao entrarem na cidade de Tânger foi irem fazer oração ante uma cruz que na igreja que já fora mesquita estava posta sobre um altar e porque o prior de São Vicente de fora da cidade de Lisboa, cónego regrante da Ordem de Santo Agostinho, era bispo na mesma cidade de Tânger, o rei mandou logo dar-lhe a posse do seu bispado e ordenou-lhe renda para manter honestamente o seu hábito e ofício pastoral e assim que acabou de prover a este assunto e outras coisas eclesiásticas a que ele era muito inclinado, atendeu nas seculares necessárias à governança e defesa da cidade e propostos os requerimentos de muitas pessoas de grandes serviços e valia que lhe pediam a capitania da cidade, o rei Dom Afonso V deu-a com governança a Rui de Melo, seu guarda mor que depois por seus merecimentos foi conde de Olivença e ali o rei renovou o título que tinha e ordenou que em suas cartas se pusesse Dom Afonso por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África e do mesmo lugar notificou ao Papa, reis cristãos e às cidades e vilas do seu reino o bom sucesso que Deus lhe dera nesta sua viagem.
Depois do rei ter provido todas as coisas necessárias sem regressar a Arzila nem disso ter necessidade porque de tudo a deixou provida antes de vir a Tânger, embarcou no dia 17 de Setembro com o príncipe e veio para o reino de Portugal com tão bom tempo que, no dia seguinte chegaram com toda a sua companhia ao porto de Silves, após trinta e cinco dias passados desde que partiram de Lisboa, nos quais Deus lhe concedeu em tudo prósperos e afortunados com muita glória e louvor seu e bem da cristandade de que a maior parte coube aos povos, vilas e cidades da Andaluzia que pela muita vizinhança que com todos estes lugares de África tem, antes recebiam todos os dias muitas perdas e danos que agora estavam seguros de não voltar a acontecer. Assim estes fizeram grandes alegrias e bom acolhimento a alguns portugueses da armada que por terra vieram para Portugal. O rei Dom Afonso V e o príncipe assim que chegaram a Silves partiram logo por mar e com sua frota próspera e salva entraram no porto de Lisboa, onde foram recebidos com procissões e grandes festas que em louvor a Deus e lembrança de tão assinalada vitória por muitos dias se celebraram por todo o reino.=     p. 135

Capítulo XXXII     
Em que brevemente se tratam algumas coisas que neste ano de 1471 se passaram no reino de Portugal.

Depois do rei Dom Afonso V regressar ao reino, tendo já dado a governança das coisas de África ao príncipe que com o seu Conselho governava com muita atenção e prudência, fez-lhe doação das rendas da Alfândega de Lisboa e dos negócios e rendas da Guiné com a governança de tudo o que era até aquele tempo descoberto, pois o príncipe já tinha a idade de 17 anos e estavam arrendados a Fernão Gomes da Mina pela quantia de duzentos mil reais e deu a Dom João, duque de Viseu, seu sobrinho, filho do Infante Dom Fernando, o ofício de Fronteiro mor de entre Tejo e Odiana e a Dom Fernando, duque de Guimarães, filho do duque de Bragança deu poder para, nas suas terras, mandar por seus oficiais guardar os portos para que não saísse para Castela nem ouro nem prata nem outras coisas da defesa.
Neste 1471, o rei Dom Afonso fez uma lei porque defendeu que sem sua permissão nenhuma pessoa de qualquer qualidade que fosse tratasse do negócio da malagueta ou gatos de algalia ou unicórnios, segundo diz a carta que está registada nos livros da Torre do Tombo.
Neste ano, o rei fez mercê a Dom João, filho de Dom Fernando, duque de Bragança da vila de Montemor o Novo com toda a sua jurisdição e que se chamasse senhor dela.
No mesmo ano, fez conde de Penela, Dom Afonso de Vasconcelos com todas as liberdades que pertenciam ao conde descendente de sangue real e a todos os seus descendentes.
Neste ano, mandou Dom Lopo de Almeida com sua obediência ao Papa Sixto Quarto que sucedeu na Sé Apostólica a Paulo Segundo.
No mesmo ano, a 10 de Dezembro, concedeu a seus vassalos que pudessem livremente pelas causas atrás mencionadas represar sobre os ingleses, de que depois se seguiu boa paz e concórdia entre estes reinos e os de Inglaterra e porque o rei Dom Afonso V não era menos justiçoso do que cavaleiro, neste ano, por erros que Dom Álvaro Fernandes de Ilhó cometeu no ofício que servia de juiz da Casa Cível, tirou-lhe o ofício e mandou confiscar-lhe todos os seus bens e da sua metade fez mercê a Dom Jorge da Costa, arcebispo de Lisboa que depois foi cardeal de Portugal e da outra metade a Pero Feio, fidalgo da sua Casa; castigo que se muitas vezes os rei dessem seriam os oficiais da justiça e de quaisquer outros ofícios mais tentadores mais fiéis em seus cargos do que por ventura o são.=    p. 138 


Capítulo XXXIV     
De como os ossos do Infante Dom Fernando foram trazidos de Fez e de outras coisas que neste reino se passaram no ano de 1472.          p. 140                                                               
O rei Dom Afonso V desejava muito ter consigo os ossos do Infante Dom Fernando, seu tio e sobre isto mandou a Fez Diogo de Bairros, adail mor tantas vezes até que se chegou a acordo de se darem por troca as duas mulheres e filha do xeque Moley. Isto ficou decidido com Diogo de Bairros para fazer todas as diligências necessárias para, sem engano, lhe serem os ditos ossos entregues. Ele recebeu-os de Moley Belfakek, fechados numa arca com dois fechos. Esta arca foi trazida com guarda que o rei de Fez mandou até Arzila e porque o rei Dom Afonso V era tal príncipe que toda a pessoa lhe desejava fazer serviço, esperando dele as suas acostumadas mercês, Moley Belfakek mandou em companhia de Diogo de Bairros para maior segurança Moley Belfaka, seu filho, a quem entregou a chave de um dos fechos da arca, onde vinham os ossos do Infante Dom Fernando porque a outra deu-a a Diogo de Bairros.
Quando os ossos chegaram a Arzila já lá estavam as duas mulheres e a filha do xeque Moley e com segurança de uma e da outra parte se fez logo a entrega. Depois com Diogo de Bairros e Moley Belfaka foram os ossos do Infante recolhidos na vila de Arzila, os quais ambos trouxeram a Portugal, à cidade de Lisboa no ano de 1472 e foram recebidos com procissão solene e pregação muito devota que sobre o cativeiro e vida virtuosa do Infante Dom Fernando fez o mestre Afonso, prior do Mosteiro de São Domingos, no Mosteiro do Salvador, onde os ossos estiveram até que o rei os mandou levar ao Mosteiro da Batalha pelos merecimentos do Infante Dom Fernando, segundo se acha por verdade, Deus, depois do seu falecimento, assim entre os mouros como depois dos seus ossos virem para o reino de Portugal, fez muitos e muito evidentes milagres.
Alguns anos antes de estes ossos serem trazidos para Portugal, o conde Dom Duarte, capitão de Alcácer Ceguer, pôde adquiri-los por dezasseis mil dobras que o rei de Fez, estando em Tânger lhe mandou pedir por Antão Vaz Alfakek que andou neste assunto alguns dias e se baixassem o preço este assunto ter-se-ia realizado.=         p.141

Capítulo XLIII     
De algumas coisas que neste tempo aconteceram neste reino de Portugal.

Neste ano de 1472, depois do falecimento do Infante Dom Fernando, filho do rei Dom Afonso V, este deu limitação aos moradores da ilha de São Miguel dos privilégios que o Infante Dom Henrique lhes concedera, limitando-lhes também até onde podiam resgatar por carta dada a 08 de Fevereiro deste ano.
No ano seguinte, 1473, o rei Dom Afonso V fez doação ao duque Dom Diogo, seu sobrinho, filho do Infante Dom Fernando, da ilha de Porto Santo com toda a sua jurisdição assim com a tivera o duque Dom João, seu irmão.
Neste mesmo ano, 1473, se concluíram os contratos de casamento do príncipe Dom João (futuro rei Dom João II) com a princesa Dona Leonor, filha do Infante Dom Fernando e da Infanta Dona Beatriz e o duque Dom Diogo deu à princesa Dona Leonor, sua irmã, em dote de casamento a vila de Lagos com sua fortaleza do modo que ele a tinha e seu pai ao Infante Dom Fernando lha prometera enquanto vivia quando deste casamento se começou a falar o contrato que se fez no dia 16 de Setembro.=        p. 189

Capítulo XLVIII     
De como o rei Dom Afonso V fez publicamente ler a patente pela qual dava e concedia a governança do reino de Portugal ao príncipe Dom João e das palavras que lhe disse e homenagem que lhe tomou.

De Portalegre veio o rei Dom Afonso V a Arronches no início do mês de Maio, onde esteve alguns dias despachando coisas que cumpriam ao memorandum da governança do reino de Portugal, esperando alguma gente que ainda lhe faltava, fez um dia chamar todos os prelados, pessoas principais e cavalheiros e com eles os deputados das cidades e vilas do reino que se juntaram em Arronches a seu mandado e perante todos mandou ler em alta voz a patente, onde declarava deixar a governança do reino ao príncipe Dom João, seu filho e depois o rei olhou para ele e disse-lhe em voz clara e que todos podiam ouvir bem e entender:
- Filho, vontade e razão em altos pensamentos se podem ter, mas quando se concordam, principalmente em feitos notáveis e coisas de grande valor, sinal é que passa a confiança com segurança por todo o género de má suspeita e porque eu se fosse senhor do mundo o confiaria a vós sem receio, vem a ser esta vontade e razão tão conforme em meu pensamento que ambas juntamente consentem que ponha em vossa fé e confie de vossa verdade e conceda à vossa prudência e trespasse em vossa pessoa a defesa, governo e memorandum deste reino enquanto eu estiver ausente. Contudo porque as leis cuja alma nós somos, mandam que em semelhantes casos solenes intervenham actos solenes e juramentos, vós me prometereis pela fé que deveis a Deus e a mim como vosso pai e rei que sou, de os defender e guardar contra toda a pessoa que lhes quiser fazer dano e de manter em justiça, razão e verdade os Estados Eclesiástico e Secular e assim de me dardes conta e razão em todo o tempo de como vos estivestes em vosso cargo sem a isso pordes pejo e sobretudo me dareis de vossa fé e menagem de em todo o tempo que eu regressar a este reino me reconhecerdes como vosso rei e senhor natural para mos entregardes pacificamente como ele me pertence sem por vós nem por outrem por via certa nem incerta, coberta ou descoberta mo quererdes estorvar.
Depois destas palavras ditas, o príncipe pôs os joelhos no chão e ambas as mãos juntas entre as palmas das mãos do rei disse com rosto alegre e sereno:
- Senhor, eu como vosso filho único herdeiro e vassalo que sou, prometo e dou minha fé e menagem em vossas mãos de vos ser leal por mar e por terra e de em vosso nome guardar e defender, governar e reger este vosso reino com toda a vigilância, verdade e lealdade que obrigado sou a vos manter e de vo-los entregar pacificamente de cada vez que a ele regressardes e se eu o contrário fizer peço e rogo a todos os Estados deste reino que me desobedeçam e procurem todos e cada um por si de me fazerem por vosso serviço todo o mal e dano que puderem porque fazendo-o cumprirão com a verdadeira fé e lealdade que são obrigados guardar e manter a vossa real pessoa como a seu rei e senhor que sois.
Assim dito o príncipe beijou a mão ao rei e o mesmo fizeram todos os que estavam presentes por ordem, cada qual em seu grau.=        p. 207

Capítulo LXV    
De como o príncipe Dom João tomou a vila de Ouguela e da morte de João da Silva, seu camareiro mor.

O príncipe Dom João, depois da partida do rei, seu pai, para Castela, tratou de todas as coisas que tocavam ao governo e memorandum do reino de Portugal com tanta prudência que a todos fazia admiração verem em idade tão juvenil tanta temperança no administrar da justiça, recato na administração dos bens do Estado, vigilância e astúcia nas coisas da guerra. Andando assim ocupado em suster as partes do reino por onde os inimigos muitas vezes entravam e as outras que lhe pareciam terem disso necessidade, deram-lhe recado em Estremoz como a vila de Ouguela que os castelhanos tomaram estava com pouca gente e que facilmente poderia quebrar naquela noite porque o capitão dela, que era um bom e esforçado cavaleiro castelhano que a ganhara, por nome Dom Martim Galindo, eleito mestre da cavalaria de Alcântara, saíra naquele dia a correr a terra com boa parte da gente que na vila tinha e pelo menos andaria lá dois a três dias.
O príncipe, quando soube isto, com a gente que com ele estava e outra que dos lugares vizinhos pôde no mesmo dia juntar foi naquela noite sobre a vila e querendo combater os que nela Dom Martim Galindo deixara, vendo que não lhe poderia resistir, entregaram-na pacificamente na condição de que os deixasse sair dela e ir livremente para onde lhes conviesse.
Devido a que o príncipe não pôde fazer caminho de Estremoz para Ouguela com tanto segredo que o capitão Dom Martim Galindo que andava pela comarca perto destas duas vilas, o não soubesse nessa mesma noite. Assim que soube, regressou logo e sendo o príncipe disto avisado, mandou João da Silva, seu camareiro mor que, com alguma gente, lhe saísse ao caminho e ficou muito contente porque o seu desejo era provar forças, lança por lança, com o capitão Dom Martim Galindo.
O triste efeito deste desejo parece que naquela hora estava bem certo a ambos para com os seus corpos partirem a contenda que a todos se ordenava e que foi do seguinte modo:
João da Silva, como o príncipe Dom João lhe mandou que fosse em busca do capitão Galindo, embora fosse já noite, não receou pôr em prática o que lhe era mandado pelo partiu logo da vila e caminhando um pouco separado da gente ia falando com o mesmo espia que dera o aviso, descuidado de que o capitão Dom Martim Galindo pudesse estar já tão perto da vila como estava e entrando por um caminho estreito, o mesmo capitão Galindo entrava pelo outro lado do caminho um pouco adiantado da sua gente com intenção de assim que saísse daquele passo estreito pôr a sua gente em ordenança para socorrer os que deixara na vila, pensando que estavam ainda dentro.
Adiantados assim estes dois capitães da sua gente, embora fosse de noite, chegando um ao outro, com a claridade do amanhecer se vieram a conhecer e pela vontade que ambos tinham de provar as suas forças os encontros foram de tal ordem que sem regressarem aos seus caíram ambos mortos dos cavalos.
A gente que com eles ia chegou ao ponto de tão grandes desastres e assim uns como os outros vendo admirados de os acharem mortos se recolheram cada um deles para sua parte sem quererem travar mais briga que aquela que os seus capitães tiveram e levando cada um o corpo do seu para lhe dar sepultura.
O príncipe ficou extremamente irritado com a morte de João da Silva porque além de ser seu camareiro mor, ofício só para pessoas muito aceites aos príncipes, lhe tinha, por ele ser muito prudente e bom cavaleiro, grande amizade e afeição. Havendo o respectivo respeito, proveu logo do mesmo ofício a Aires da Silva, seu filho, que depois foi regedor da Casa da Suplicação.=       p.260

Capítulo LXVI     
De como o rei Dom Afonso V escreveu ao príncipe Dom João que viesse encontrar-se com ele e como sobresteve por causa de uma traição que lhe tinham preparada na ponte de Samora.

Depois que veio a Samora, o rei Dom Afonso V trabalhou em adquirir a confiança e vontade dos cidadãos, capitães e soldados que na cidade, castelo e torres da ponte estavam. Para além de perdoar aos que achou culpados, tanto a eles como aos que lhe eram leais, fazia ordinariamente muitas mercês e nelas confiado, perdeu de todo a suspeita que antes tinha e tendo-se tão seguro dos castelhanos como o era dos portugueses deu permissão a muitos dos seus para virem a Portugal resolver os seus assuntos por lhe parecer que no inverno em que já estavam, não teria deles necessidade. Com esta confiança e muito desejo que tinha de ver o príncipe, seu filho, escreveu-lhe que disfarçado se viesse encontrar com ele a Samora.
O príncipe Dom João assim que recebeu a carta de seu pai deu logo ordem às coisas que lhe cumpriam para o caminho. Depois foi a Miranda do Douro porque àquele lugar o rei lhe escreveu que mandaria gente de armas que o acompanhasse até à cidade de Samora.
Estando ali esperando esta gente, o rei mandou-lhe dizer por Vasco Martins de Sousa Chichorro, seu capitão dos ginetes que não passasse adiante porque tinha aviso de que o capitão da ponte de Samora, induzido pelo rei Dom Fernando e pela rainha Dona Isabel tinha ordenado de o tomar entre ambas as torres da ponte.
Vasco Martins de Sousa Chichorro caminhou com a maior pressa que pôde até chegar ao rio Douro e com o desejo que tinha de levar este recado ao príncipe passou de noite a nado a cavalo e armado aventurando-se ao ímpeto e força das águas de um tão largo e profundo rio com é aquele. Assim que soube esta notícia, o príncipe, despedindo-se de Vasco Martins Chichorro, veio à cidade da Guarda. =        p.262

Capítulo LXXIV     
Dos apercebimentos que o príncipe Dom João fez em Portugal para ir socorrer o rei, seu pai e de como entrou em Castela e do que fez até chegar a Toro.

Quando o príncipe Dom João já estava na cidade da Guarda e porque ao amor que tinha ao rei, seu pai, se juntava o invencível e esforçado ânimo que a natureza lhe dera para não poder sofrer injúrias nem traições tomou tamanho desprazer desta que antes de para isso ter recado do rei, juntou logo os Estados do reino de Portugal e com conselho e parecer de todos se preparou para entrar em Castela com a mais e melhor gente que pôde e para os gastos deste empreendimento, além do dinheiro que podia ter das rendas do reino pediu emprestado particularmente a todos aqueles que o podiam fazer. Vendo que isto não bastava, por consentimento do Estado Eclesiástico tomou a prata das igrejas que não era consagrada que ele como bom católico cristão depois do falecimento do rei, seu pai, pagou.
Preparada a gente que havia de levar e ordenadas as coisas que cumpriam ao reino, cuja governança ficou à princesa Dona Leonor, sua esposa, partiu da cidade da Guarda em Janeiro de 1476, entrando em Castela com a sua hoste muito bem ordenada. Pelo caminho tomou a vila de São Felizes que estava pelo rei Dom Fernando e a mandou saquear, deixando nela gente que a guardasse e partiu a caminho de Ledesma. Os moradores deste lugar e gente de guerra que nela estavam, como já sabiam a notícia do saque de São Felizes mandaram-lhe recado pedindo-lhe “que não os quisesse combater que lhe fariam todo o partido que fosse honesto.” O príncipe que tinha desejo de chegar onde seu pai estava não quis deles, naquela altura, mais do que mantimentos para o exército por preço justo e razoado e deram-lhe tantos quantos os necessários.
Dali foi para Toro no mesmo mês de Janeiro onde foi recebido pelo rei Dom Afonso V e pela rainha Dona Joana, sua esposa e pelos senhores e cavaleiros que na vila estavam com tanto prazer e alegria como pessoa tão desejada e em cujo socorro tinham posta a sua esperança.
O rei Dom Afonso depois que o príncipe chegou a Toro, vendo que já tinha consigo gente para dar batalha ao rei Dom Fernando quis ter cumprimento com alguns dos grandes cavaleiros de Castela que por ele estiveram que, por medo ou dádivas tinham tomado a parte contrária, fazendo-lhes saber a sua determinação e pedindo-lhes “que nesta batalha quisessem estar com ele em pessoa, prometendo-lhes além do perdão dos erros em que caíram muitas mercês e não tão somente escreveu a estes que se tinham declarado contra o seu serviço, mas a todos os que pensava estarem ainda por ele, especialmente a Dom Álvaro de Zuninga, duque que fora de Arevalo e, naquela altura, era de Placência de quem fazia grande fundamento e segundo se presumia o rei não tinha sabido do acordo que seu filho Dom Pedro de Zuninga fizera em Tordesilhas com a rainha Dona Isabel. O duque, depois de lida a carta do rei Dom Afonso V, respondeu verbalmente ao mensageiro “que ele arrependido do erro que fizera em ser desleal ao rei Dom Fernando e rainha Dona Isabel, seus verdadeiros reis e senhores, se reconciliara com eles e estava ao seu serviço com bom e firme propósito de por nenhum outro rei nem senhor os deixar nem lhes fazer desserviço em coisa nenhuma que fosse, mas antes anojar e resistir a todos os que dano lhes quisessem fazer e que assim lhe faria a ele se a sua intenção fosse prosseguir naquela guerra.”
O rei Dom Afonso V ficou muito triste com este recado porque o duque de Arevalo fora uma das principais pessoas de Castela que o movera a casar com a rainha Dona Joana e fazer a guerra que fazia. Além disto causava-lhe outro maior desgosto andar o marquês de Vilhena zangado com ele por não ter tomado o conselho que lhe dera de ir a Madrid. Embora desejasse muito ver lançado o rei Dom Fernando do reino de Castela, respondeu friamente ao rei Dom Afonso V dizendo “que deixava de vir ter com ele por ele andar ocupado em suas terras que os seus inimigos já as tinham destruído e delas não ousaria partir por lhas não acabarem de tomar de todo.”
Contudo o rei Dom Afonso V ainda que estes senhores e outros lhe faltassem que pensava ter consigo nem por isso receou ir buscar o rei Dom Fernando a Samora como fez para lhe dar batalha com a gente que tinha e o príncipe Dom João trouxera e com a do arcebispo de Toledo que ali estava só sem outro senhor de Castela pronto para servir o rei Dom Afonso como o fez.=       p.291

Capítulo LXXXIII     
De como o príncipe João (II) regressou a Portugal para prover nas coisas do reino e com ele o bispo de Évora e o conde de Penela.          p.326 

Depois que o bispo de Évora, Dom Garcia de Menezes, voltou a acompanhar o arcebispo de Toledo, sabendo o rei Dom Afonso V como os castelhanos faziam muitas entradas em Portugal sem encontrarem resistência acordou com o seu Conselho que era necessário que o príncipe Dom João (futuro Dom João II) regressasse ao reino de Portugal. Isto determinado, o príncipe ficou logo pronto e com ele o rei enviou o mesmo bispo de Évora por Fronteiro mor de Riba de Guadiana e Dom Afonso de Vasconcelos, conde de Penela, por presidente do seu Conselho. O príncipe despediu-se do rei na Semana Santa com bastante pouca gente porque a restante e mais lúcida ficava com o rei.
O príncipe de Toro se foi a Castro Nunho onde Pero de Mendanha lhe fez um grande acolhimento e logo no dia seguinte passou toda a sua gente o rio onde chamam Rico Vau e foi ter a festa da Páscoa a Miranda do Douro, de onde se despediu do bispo de Évora que partia para as terras de sua fronteira e ele se foi à Guarda onde a princesa Dona Leonor, sua esposa, o estava esperando.
Depois de estar lá alguns dias foi percorrer todos os lugares fronteiros, provendo em tudo o que lhe parecia necessário, segundo o tempo o requeria. A gente de cavalo que no reino ficara e muita outra a pé cada dia vinha ter com ele, salvo os das vilas fronteiras porque estes não podiam sair dos lugares onde estavam. Esta gente que para o príncipe vinha, ele a distribuía pelas comarcas, aquela que lhe parecia necessária.
Nestas e em outras coisas que cumpriam ao reino o príncipe andou ocupado durante o tempo que o rei, seu pai esteve depois em Castela e tudo fazia com tanto bom senso e prudência que não tão somente se espantavam os seus naturais por haver nele tanto bom senso e saber nas coisas da guerra, mas mesmo os reis Dom Fernando e Dona Isabel afirmavam muitas vezes em conversa que faziam maior caso da astúcia e vigilância do príncipe Dom João do que do acelerado e denodado esforço do rei Dom Afonso V, seu pai.=         p. 327

Capítulo LXXXVIII     
De como o rei Dom Afonso V veio para Portugal com a rainha Dona Joana, sua esposa.      p. 338

Tendo Dom Álvaro de Ataíde terminado os assuntos pelos quais o rei Dom Afonso V o mandara a França, regressou ao reino de Portugal e daí veio ter a Toro, onde lhe deu o recado e cartas do rei Dom Luís cheias de muitos oferecimentos e grandes promessas de ajuda. Na verdade, estas eram mais para se valer dele e não para o ajudar porque o rei Dom Luís tinha guerra com o rei Dom João de Aragão, pai do rei Dom Fernando, sobre o condado de Roselhon e desejava acrescentar conflitos entre o rei Dom Afonso V e o rei Dom Fernando para que não pudesse dar ajuda nem socorro ao rei, seu pai.
Já que o rei Dom Luís partia do cerco de Fonte Rabia e fazia tréguas com o rei Dom Fernando nem por isso o rei Dom Afonso V deixou de dar credibilidade às suas cartas que lhe mandou por Dom Álvaro de Ataíde e às palavras que de sua parte lhe disse. Estas eram cheias de falsidade e engano porque este rei Dom Luís, por ser dissimulado e abastado em promessas e palavras sem efeito, chamavam-lhe “o raposo” de alcunha. Contudo pode tanto o voluntarioso apetite do rei Dom Afonso V que, depois da partida do príncipe Dom João para Portugal, determinou ir a França pedir socorro ao rei Dom Luís sem querer pesar tamanha mudança em que em parte também o moveu outra mais incerta esperança de lhe parecer que poderia tratar amizades e acordos entre ele e o Duque Charles de Borgonha, seu primo-irmão, filho de Madame Isabel, sua tia, irmã do rei Dom Duarte, seu pai com o qual o rei Dom Luís estava em secreta discórdia devido à guerra que fazia ao duque René de Lorraine, por quem este duque Charles foi desbaratado e morto em batalha campal com a ajuda dos suíços e alemães que estavam a soldo do duque de Lorraine e para ajuda deste soldo o rei Dom Luís mandara quarenta mil francos em dinheiro contado e embaixadores aos suíços para que o ajudassem. Tudo isto dissimuladamente por naquele tempo haver tréguas entre o rei Dom Luís e o duque Charles e além destas ajudas e outras muitas o rei Dom Luís mandou ao senhor de Crame, seu lugar tenente no condado de Champanhe que se fosse alojar com oitocentas lanças e outras e outra companhia de archeiros francos no ducado de Barroens, senhoria do mesmo duque de Lorraine para ali estarem mais perto dele e ajudarem se fosse necessário contra o duque Charles que jaz sepultado na vila de Nancy que ele tinha cercada e onde foi esta cruel batalha em que morreu.
A este lugar foi o rei Dom Afonso V encontrar-se com o rei Dom Luís de França confiando que pudesse fazer algumas boas avenças entre estes príncipes e impetrar de rei da França e do mesmo duque Charles ajuda contra o rei Dom Fernando. Ordenou logo a sua partida para França a que sobretudo o moveu um contrato de liga e amizades que Dom Álvaro de Ataíde fez com o rei Dom Luís, assinado pelo próprio Dom Luís e por Dom Álvaro de Ataíde como procurador creditado pelo rei Dom Afonso V. Deste contrato se fizeram duas escrituras de um teor de que uma foi lançada na Torre do Tombo de França que se chama a Torre de Chartres e sobre esta matéria e ida do rei Dom Afonso V a França falando Filipe de Commines, senhor de Argentom que com muita prudência escreveu a Crónica deste rei Luís de França, diz as seguintes palavras:
Os reis e príncipes devem muito bem olhar que homens mandam por embaixadores porque se estes que cá vieram fazer as alianças com o rei de Portugal (nas quais eu estive presente e um dos deputados pelo rei Dom Luís) fossem homens mais sabedores eles ter-se-iam informado melhor sobre as coisas de França e não aconselhariam o seu senhor a fazer uma tal viagem de que resultou tanto dano, perda e trabalhos que, regressando à nossa história, como depois se viu lhe acrescentaram em muito os desgostos que já tinha e anteciparam a sua morte. É certo que os reis têm muito de evitar vistas por muito vizinhos que sejam e, sobretudo de nenhum modo devem sair de seus reinos a ir pessoalmente pedir socorro e ajuda aos outros porque poucas vezes tiram disso fruto e na maior parte das vezes ficam em desprezo de seus súbditos e vizinhos e dos mesmos reis a que se vão socorrer. A estes avisos e pareceres não me alargarei mais e vou regressar ao rei Dom Afonso V que nestes dias esteve em Toro e depois que decidiu sair a França abasteceu todas as fortalezas que estavam por ele de gente, mantimentos e munições de guerra e em Cantalapedra deixou por capitão Afonso Peres de Viveiro casado com Dona Mícia de Menezes, dama portuguesa e o capitão Pero Bandarra levou consigo. Em Castro Nunho, ficou Pero de Mendanha, pessoa em quem o rei tinha extremada confiança e porque João de Ulhoa era já falecido e os filhos que deixara eram muito moços para poderem ter cargos de coisas de guerra por mostrar a vontade e desejos que tinha de satisfazer a seus serviços casou uma sua filha e de Dona Maria de Ulhoa com Dom Francisco Coutinho, conde de Marialva e deixou-o por capitão e governador da cidade de Toro.
Isto assim feito, o rei Dom Afonso V partiu, no começo do mês de Junho de 1476, com a rainha Dona Joana, sua esposa, de Toro para Castro Nunho, onde foram bem festejados por Pero de Mendanha. De Castro Nunho vieram festejar a festa de Corpo de Deus a Miranda do Douro. Neste lugar, o rei Dom Afonso V fez conde de Abrantes a Lopo de Almeida, seu Ministro das Finanças.
Depois de festejarem o dia, o rei ordenou à rainha, sua esposa, que fosse à cidade da Guarda e com ela Dom João de Abreu, bispo de Viseu e o conde de Vila Real, fronteiro mor daquela comarca. Depois ordenou que a rainha viesse a Coimbra e com ela o bispo de Viseu, onde a veio visitar o príncipe Dom João que, por ordem do rei foi com ela até Abrantes e se foi para o Porto para se encontrar com o rei que encontrou ordenando as coisas que cumpriam ao seu cargo e passagem a França. A esta cidade também a infanta Dona Beatriz o veio visitar e mais senhores e prelados do reino. Dali do Porto, o rei mandou Pero de Sousa a França com recado ao rei Dom Luís, fazendo-lhe saber a sua determinação que era ir encontrar-se com ele em pessoa para tratar dos assuntos e pedir-lhe sobre eles conselho, ajuda e favor. =          p.343

  Capítulo XCVII
De como o rei Dom Afonso V, desesperado por não ter socorro nem ajuda do rei Dom Luís de França, regressou ao reino e o príncipe lho entregou e deixou o título de rei que já tinha.=           p. 374       

O rei Dom Afonso V passou em França mais de um ano e mandou o príncipe Dom João muitas vezes ir visitá-lo e como bom e obediente filho também lhe mandava sempre relatório das coisas que se passavam no reino e para as que havia de fazer pedia o seu parecer e conselho e um dos últimos mensageiros que mandou com estes assuntos foi Antão de Faria, seu camareiro, pessoa em quem muito confiava e que achou o rei suspeitoso de o rei Dom Luís o querer prender e entregar preso ao rei Dom Fernando e à rainha Dona Isabel.
Com esta suspeita e temor, desesperado já dos assuntos com a França, decidiu ir a Jerusalém servir a Deus e de todo deixar os assuntos do mundo. Isto determinado, além das instruções que deu a Antão de Faria, escreveu por sua mão ao príncipe pedindo-lhe e mandando-lhe que logo se fizesse jurar rei. Além desta carta escreveu outra também por sua mão aos Estados do reino recomendando-lhes “que não pusessem dúvida a jurar o príncipe por seu rei e senhor. A sua intenção era trocar as coisas do mundo pelas de Deus e o ir servir na cidade de Jerusalém, coisa que tinha há já muitos dias decidido depois do falecimento da rainha, sua esposa, e que por a não ter cumprido como prometera e votara lhe saíram ao contrário todos os assuntos em que se tinha envolvido contra o seu voto, esquecendo-se do serviço a Deus e saúde da sua alma pelo vão e inútil desejo de reinar, pondo tanto fogo e tanta guerra entre cristãos. Destas culpas e pecados queria, antes que morresse, começar a dar conta a Deus e deles fazer emenda para, depois da sua morte vir ante o seu Divino Juízo com menos carga do que o faria morrendo nas vagas e ondas das vaidades do mundo em que até então andara envolvido.”
Isto que o rei Dom Afonso V escreveu ao príncipe e aos Estados não foi fingido porque após despedir-se dele Antão de Faria, o rei partiu escondido dos seus sem levar consigo mais do que Soeiro Vaz e Pero Pessoa, seus moços de câmara e Estevão Martins, seu capelão e um moço de esporas.
Assim que o rei Dom Luís soube da sua ida mandou muitos gentis homens da sua casa pela posta em busca dele por diversos caminhos. Num dos quais, encontrou-o um normando de nome Robiner Lebeuf numa aldeia já de noite repousando do cansaço do caminho. Deste lugar, o rei Dom Afonso V regressou à Normandia donde partira acompanhado de muitos gentis homens franceses e seus que foram logo ter com ele, onde esteve até que partiu para Portugal.
O príncipe depois que leu a carta do rei, seu pai, ficou fora de si e depois de com muita tristeza tratar deste assunto durante dois ou três dias sem disso querer dar conta a pessoa nenhuma mandou chamar alguns daqueles em quem muito confiava e como que em confissão lhes deu a cada um particularmente conta do que o seu pai escrevia, pedindo-lhe seus pareceres. Todos lhe disseram que assunto de tanto peso devia ser tratado em Conselho e ele assim o fez. Vistas por todos as cartas que o rei Dom Afonso V enviou, ficou decidido que, sem tardar, se fizesse jurar por rei e pelos desejos que seus privados tinham de o verem rei, houve nisto tanta pressa que mandaram logo fazer um palanque no alpendre de São Francisco de Santarém, onde o príncipe estava e as cartas se leram publicamente e foi jurado por rei sem nisso estarem presentes outros prelados nem senhores, senão os que então se encontravam na corte. Este acto fez-se no dia 10 de Novembro de 1477.
Dali a quatro dias, chegou recado a Lisboa de que o rei, seu pai, partira de França para o reino de Portugal, onde chegou daí a poucos dias ao porto de Cascais, acompanhado de uma boa frota de naus e navios que fretara e outras que o rei Dom Luís dera de que vinha por capitão Messire Jorge Legier que partira com esta companhia do porto Honfleur, no ducado da Normandia, no mês de Outubro.
Na mesma hora que o príncipe soube da vinda do rei, seu pai, foi ao seu encontro e encontrou-o já em Oeiras, onde com os joelhos em terra e devida obediência de filho a seu pai lhe beijou a mão e logo, perante todos os que ali estavam, renunciou ao nome de rei, pedindo muito por mercê ao rei que não cuidasse que era contra a sua vontade o que fazia, mas sim com bom, verdadeiro e leal coração o que foi tido em grande virtude. Por muito que o rei, seu pai, depois lhe rogasse que fizesse a governança do reino com nome de rei, ele não o quis nunca fazer. Vendo nele uma tão desacostumada e extremada virtude, o rei, seu pai, pediu-lhe muitas vezes que ficasse com a governança do reino de Portugal e lhe deixasse o reino do Algarve e conquista dos lugares de África para dali fazer guerra aos mouros por serviço de Deus, mas o príncipe nunca o quis aceitar.
De Oeiras, o rei veio para Lisboa, onde foi recebido com procissão solene que o levaram à sé e dali foi aos paços de Alcáçova. Sabendo disto a princesa Dona Leonor, sua nora, que na altura estava em Santarém e o veio logo visitar e o mesmo fizeram o duque e duquesa de Bragança com todos os outros senhores, prelados e cavalheiros do reino. De Lisboa o rei foi a Montemor e dali a Évora. Nesta altura, voltou a tratar avenças com alguns senhores de Castela, dando-lhes conta da dispensa que consigo trazia para poder casar com a rainha Dona Joana, sua esposa, com intenção de entrar novamente em Castela.
O príncipe, sabendo os enganos que nisto havia de haver, julgando-os pelos passados, estorvou esta entrada e liga e assim o casamento da rainha Dona Joana pelos muitos danos e males que de novo podiam recrescer nestes reinos.=     p. 379
        
Capítulo CII     
Das honras e mercês que o rei Dom Afonso V fez desde o ano de 1475 até ao de 1481, em que faleceu.=       p. 391

Em 1475, o rei fez mercê ao Doutor João Fernandes da Silveira, do seu Conselho, do título de Barão do Alvito, de juro com todas as suas honras, privilégios e liberdades com outorga e consentimento do príncipe Dom João por carta dada em Portalegre, no dia 27 de Abril.
Em 1476, o rei fez mercê a Gonçalo Vaz de Castelo-Branco em sua vida da Vila Nova de Portimão, no Algarve e isto pelos muitos serviços que dele tinha recebido e por ser o primeiro que avançou para a batalha que o rei desbaratou em Castro Queimado.
Ao duque de Bragança, Dom Fernando, marquês de Vila Viçosa, de Ourém, de Arraiolos e senhor de Monforte o rei concedeu que em todas as suas terras não houvesse outro Fronteiro mor senão ele.
Outro tanto ao conde de Faro, Dom Afonso, com doação da vaga e apresentação de todos os ofícios de suas terras e a mesma liberdade o rei Dom Afonso V deu à condessa, sua esposa.
Por Dom Pedro de Melo, filho do conde de Atalaia, senhor da Ceiceira ser inábil, o rei fez mercê a Dom Álvaro de Ataíde, casado com a filha mais velha do dito conde que, por falecimento do seu sogro, lhe ficassem todas as terras que tinha da coroa. Este conde de Atalaia era regedor da Casa do Cível.
O rei Dom Afonso V concedeu ao conde de Loulé, Dom Henrique de Menezes as vilas de Arzila e Alcácer Ceguer para qualquer dos seus filhos que ele quisesse depois da sua morte.
O rei Dom Afonso V fez doação a Dom Francisco Coutinho, conde de Marialva, de todas as vilas e terras que tinha da coroa e morgados e depois da sua morte para seus filhos e não os havendo para qualquer dos seus irmãos que nomeasse e não nomeando, para seu irmão Dom Gastão.
O rei também fez Leonel de Lima, visconde de Vila Nova de Cerveira com título de “Dom” para seu filho João de Lima que era Guarda mor do príncipe Dom João, declarando por extenso na carta a antiga linhagem dos Limas e os mutos serviços que tinham feito à coroa deste reino de Portugal.
Ao duque de Guimarães, Dom Fernando, deu quatrocentos mil réis de tença até lhe vir a herança do duque de Bragança, seu pai.
A Dom Pedro de Menezes, conde de Vila Real, fez doação e aforamento das suas casas em Lisboa, onde agora chamam o Bairro do Marquês com os privilégios que ainda usam e os seus descendentes.
A Dom Álvaro, filho de Dom Fernando, duque de Guimarães, deu Tentúgal e a Póvoa com sua jurisdição e rendas e Buarcos, Rabaçal, Vila Nova de Anços, a Norba e Pereira por troca de Torres Novas para ele e para um seu filho, ficando-lhe também Alvaiázere e Torres Novas o rei deu ao seu filho, príncipe Dom João.
A Dom Rodrigo de Melo, conde de Olivença, fez doação do castelo da dita vila para um dos seus genros.
Ao conde de Penamacor, Dom Lopo de Albuquerque, fez mercê das rendas da aldeia da Meimoa, termo da mesma vila e do seu castelo, com suas rendas e mercê dos bens de Álvaro de Castro que fora alcaide daquele castelo. 
No ano de 1477, fez doação a Dom Rodrigo de Melo, conde de Olivença, da jurisdição cível e crime da dita vila e padroados.
Ao duque de Guimarães fez doação da jurisdição dos lugares de Melgaço, Castro Laboreiro em sua vida e fez-lhe doação para o seu filho mais velho da vila de Monforte, castelo, lugar, rendas e jurisdição.
Ao príncipe fez mercê de todas as rendas da Alfândega de Lisboa e por ele lhe tirou quatro contos que tinha de seu assentamento.
No ano de 1478, fez mercê a Dom Afonso, conde de Faro, dos tabeliães da cidade de Silves.
No ano de 1479, fez doação a Dom Francisco Coutinho, conde de Marialva, da jurisdição do lugar de Moreira e seu termo.
Ao conde de Penela, o rei Dom Afonso V fez mercê do ofício de regedor da Casa do Cível.
A Dom Manuel, seu sobrinho, filho do Infante Dom Fernando que depois foi rei destes reinos, deu quinhentos mil réis cada ano para o seu sustento além do mais que ele tinha de seu; isto enquanto estivesse refém em Castela por causa dos terçarias até que atingisse a idade de catorze anos.
Ao conde de Faro, Dom Afonso V fez doação da dízima do pescado da vila de Aveiro e Faro.
A Dom Álvaro, irmão de Dom Fernando, duque de Bragança, confirmou a doação que o dito seu irmão lhe fizera da vila de Valverde, em termo de Santarém.            
A Dona Isabel, filha de Dom Fernando, duque de Bragança, confirmou a doação que lhe fez Dom Fernando, seu irmão, duque de Bragança, da quinta da Luz, no termo de Lisboa.
 No ano de 1481, a Dom João de Vasconcelos, conde de Penela, fez, por falecimento do conde Dom Afonso, seu pai, a confirmação da mercê da mesma vila.
A Dom Fernando, duque de Bragança e Guimarães, fez doação do padroado de Castro Laboreiro e das dízimas das sentenças condenatórias que se dessem em suas terras.
Ao conde de Marialva fez mercê das pensões dos tabeliães da cidade de Viseu.
No dia 10 de Agosto deste ano de 1481, fez doação a Dom Diogo, seu primo, duque de Beja e Viseu, da vila de Beja com seu castelo, fortaleza, termos, entradas e saídas, com toda a sua jurisdição, alta e baixa, Mero, Misto Império e da ilha da Madeira com todos os seus portos, rendas e direitos, jurisdição cível e crime, mero e misto Império do modo que a tinha o Infante Dom Henrique, seu tio, tudo de juro e herdade para ele e para todos os seus descendentes varões por linha directa.
Neste ano de 1481 e mês, faleceu o rei Dom Afonso V e porque pode parecer a alguma pessoa que em história grave não eram necessários estes detalhes saibam que duas razões me moveram a escrevê-lo: uma, para mostrar quanta obrigação todos estes senhores tinham de servir bem e lealmente o rei Dom Afonso V e o príncipe Dom João, seu filho;
A outra, para que se veja em quantos trabalhos as guerras põem os príncipes porque o rei Dom Afonso V não estaria constrangido a fazer tantas mercês do Tesouro da Coroa destes reinos como o fez e que o mesmo reino e os reis que depois dele reinaram sentem até ao dia presente.=     p.397 

Capítulo CIV     
Do falecimento do rei Dom Afonso V.

A muita tristeza que o rei Dom Afonso V vivia devido a tamanha mudança como a que fizeram à força à rainha Dona Joana, sua esposa, de título de rainha de Castela, Leão e Portugal a freira da Ordem de Santa Clara imprimiu tanto em sua alma com tamanha dor que logo em Coimbra adoeceu de pura melancolia de que esteve a ponto de morte nem dali por diante se sentiu mais nele gosto nem contentamento de coisa que fizesse nem visse fazer, andando sempre só, apartado, fugindo de todo o género de companhia com verdadeiro propósito de se recolher ao mosteiro de São Francisco em Varatojo que de novo fundara em termo de Torres Vedras para nele servir a Deus em hábito secular.
Contudo antes de tomar este virtuoso modo de vida, no verão de 1481, se foi a Beja com o príncipe, seu filho que ali estava com a princesa Dona Leonor, sua esposa, com intenção de ordenar Cortes Gerais para deixar ao príncipe o governo do reino. Ambos decidiram que estas fossem em Estremoz por Lisboa e Évora estarem com epídema de peste. De Beja o rei se foi a Sintra, no mês de Agosto, para ali estar até à altura das cortes.
Daí a poucos dias adoeceu de febres que juntas ao desgosto em que vivia deram nele sinais de morte. O príncipe foi logo avisado e veio imediatamente a Sintra, onde encontrou o rei ainda com todo o seu entendimento e juízo natural, apesar de desesperado dos médicos. O rei recebeu muita consolação com a vinda do príncipe e disse-lhe muitas palavras cheias de bons e paternais conselhos, encomendando-lhe a governança do reino e a orfandade da rainha Dona Joana, sua esposa. Com estas e outras palavras de católico cristão, tendo já feito e aprovado o seu testamento e recebido os sacramentos da Igreja, entregou a alma a Deus a 28 de Agosto de 1481, na mesma casa em que nasceu, com a idade de quarenta e nove anos, dos quais reinou quarenta e três.
De Sintra o seu corpo foi levado para o mosteiro da Batalha, acompanhado pelo conde de Monsanto, Dom João de Castro e por outras pessoas principais, onde foi sepultado na casa do Cabido do mesmo mosteiro.
Neste mês de Agosto, no dia de Santa Clara, nasceu em Abrantes, Dom Jorge, filho bastardo do príncipe Dom João e de uma dama da Casa da Rainha Dona Joana, esposa do rei Dom Afonso V, por nome Dona Ana de Mendonça, filha de Nuno Furtado de Mendonça que foi aposentador mor do rei Dom Afonso V e de Dona Leonor da Silva, filha de Fernão Martins de Berredo, alcaide mor de Tavira.
Dom Jorge foi nestes reinos Mestre da Ordem de Cavalaria de Santiago e de Avis, duque de Coimbra e senhor de muitas vilas e castelos e trouxe sempre grande Casa de fidalgos e outras pessoas a quem deu rendas, ordenados e moradias com que se mantinham muito ordenadamente.
Foi casado com Dona Beatriz de Vilhena, filha de Dom Álvaro, irmão de Dom Fernando, segundo duque de Bragança deste nome. Desta senhora houve os seguintes filhos: Dom João, duque de Aveiro, marquês de Torres Novas e Dom Afonso, Dom Luís e Dom Jaime, bispo de Ceuta e Dona Helena, comendadora de Santos e outras três filhas, freiras professas que todos ao presente vivem no ramo da nobre Casa de Lancaster, nestes reinos, precedente do real tronco dos reis de Inglaterra, mas por este ser de tão longe, apesar de reis, parece que lhes caberia com maior acção o apelido de Joanne por ser de mais perto e preceder por linha masculina de um tal rei como o foi o rei Dom João I, avô de todos estes senhores.=   p.405.=
                         

Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal

Lagos, 30 de Agosto de 2017