PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA
sobre “Duarte Pacheco Pereira na Índia: 1500-05”
CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes e encomendada por Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF - pp. 112
– 150.
A
primeira vez que Duarte Pacheco Pereira
foi à Índia foi na nau de Pero de Ataíde
da capitania de Pedro Álvares Cabral
e esta frota partiu do porto de Belém, dia 09
de Março de 1500, com bom vento da foz a fora.
Já
na Índia, o rei de Calecut mandou pedir a Pedro Álvares Cabral que mandasse
tomar aquela nau que vinha de Ceilão porque era de seus inimigos. Logo Pedro
Álvares mandou Pero de Ataíde,
capitão de uma nau e com ele DuartePacheco Pereira, Vasco da Silveira
e João de Sá e com estes o rei de
Calecut mandou alguns mouros para verem o que os nossos faziam.
No
dia seguinte, informado o rei de Calecut pelos mouros que foram com Pero de Ataíde de quão animosamente os
nossos o fizeram, mandou pedir a Pedro
Álvares Cabral que lhe mandasse os que foram naquele ataque para se poder
gabar que vira homens dignos de serem vistos por todos os reis e senhores do
mundo. Fez a todos mercês e em especial a Duarte Pacheco Pereira por os mouros lhe dizerem que nunca viram homem
tão animoso nem tão esforçado e que ele fora a causa única de aquela
nau ser tomada.= p.
90
Na
segunda ida de Duarte Pacheco Pereira
à Índia, este foi como capitão de uma nau. A seis de Abril deste ano de 1503, o rei Dom Manuel deu a capitania
de três naus a Afonso de Albuquerque que partiu do porto de Belém, Lisboa.
Os outros dois capitães que iam debaixo da sua bandeira eram Duarte Pacheco Pereira e Fernão Martins de Almada que morreu
nesta viagem. (p. 112)
Logo
no dia seguinte ao dia em que Francisco
de Albuquerque chegou a Cochim e DuartePacheco Pereira com ele, libertaram outra ilha do rei de Cochim de nome Chirivaipim, de que o caimal também lhe
fora traidor, passando-se para o rei de Calecut. Lá matou o caimal e muitos dos
seus naires, apesar de ter consigo três mil e muitos paraus com gente do rei de
Calecut e também lhe queimou as casas onde morava. Nesta actividade, Duarte
Pacheco Pereira, Nicolau Coelho, António do Campo e Pero de Ataíde fizeram o
que a bons e esforçados guerreiros convinha porque Duarte Pacheco Pereira desbaratou a gente e os paraus do rei de
Calecut e Nicolau Coelho, António do
Campo e Pero de Ataíde ganharam as tranqueiras (=
paliçada) dos paços do caimal e
mataram-no e mandaram pôr fogo às casas.
Afonso
de Albuquerque
e Francisco de Albuquerque, continuando na libertação dos lugares ocupados pelo
rei de Calecut, recolheram-se às naus com muito esforço por virem sobre eles
seis mil naires entre eles alguns espingardeiros. Neste ataque, Duarte Pacheco Pereira com os da sua
capitania (da nau)
desbaratou trinta e quatro paraus do rei de Calecut bem armados que defendiam
os passos (lugares onde se podia passar com a água pelo joelho) aos mercadores que traziam pimenta a Cochim
para carga das naus.= p. 115
Por fim, o rei de Calecut, derrotado e arrependido da guerra que tinha com o rei de Cochim e desejoso de paz com os nossos por saber que com a paz havia de ter mais proveito, deu disso conhecimento ao seu sobrinho o príncipe Naubeadarim que sempre se tinha oposto a esta guerra. Este desejo do rei foi tratado por seu conselho e parecer pelo príncipe com Francisco de Albuquerque e foi feito em tanto segredo que os mouros da terra só o vieram a saber, após ter sido estabelecida a paz e os contratos assinados. O principal destes contratos era que:
Por fim, o rei de Calecut, derrotado e arrependido da guerra que tinha com o rei de Cochim e desejoso de paz com os nossos por saber que com a paz havia de ter mais proveito, deu disso conhecimento ao seu sobrinho o príncipe Naubeadarim que sempre se tinha oposto a esta guerra. Este desejo do rei foi tratado por seu conselho e parecer pelo príncipe com Francisco de Albuquerque e foi feito em tanto segredo que os mouros da terra só o vieram a saber, após ter sido estabelecida a paz e os contratos assinados. O principal destes contratos era que:
1) o rei de Calecut fosse amigo do rei de Cochim;
2) ele mandasse logo recolher as armadas
que trazia pelos rios;
3) pela mercadoria que tinha sido tomada
a Pedro Álvares Cabral quando mataram Aires Correia daria logo mil e quinhentos
bahares de pimenta para carga da armada (cada bahar representa três quintais, três arrobas e dezoito arráteis nas
nossas medidas de peso) e de qualquer outra mercadoria quatro quintais;
4) nenhum mouro dos de Calecut podia
navegar para o mar da Arábia.
Francisco de Albuquerque insistiu
muito nestas capitulações por haver os dois milaneses que se estabeleceram em
Calecut, mas o rei não lhos quis entregar, dando para isso razões suficientes.
Isto
assim concluído e estabelecido, Naubeadarim
se foi para Cranganor por ordem do seu tio, onde começou a fazer a entrega da
pimenta e, tendo já entregue oitocentos bahares a Duarte Pacheco Pereira que Francisco de Albuquerque lá a isso
mandara, trabalhando para juntar toda a soma estabelecida, aconteceu que Diogo Fernandes Correia, feitor de
Cochim, sabendo que ia um tone carregado de pimenta para Cranganor que era do
rei de Calecut, sem disso dar conta a Francisco de Albuquerque, mandou-o tomar
pela força e trazê-lo para Cochim e porque os do tone se defendiam, dizendo que
eram amigos do rei de Calecut com quem já tínhamos paz e que aquela pimenta era
para os portugueses e nada disto ser de proveito para os nossos, vieram às mãos
dos portugueses e neste debate os nossos mataram seis dos malabares que iam no
tone e feriram outros e os malabares feriram também muitos dos nossos.
Logo
Naubeadarim se queixou a Francisco
de Albuquerque, pedindo que deste caso se fizesse emenda para satisfação do rei
de Calecut e que não o fazendo, soubesse de certeza que, segundo o rei, era de
sua condição que havia de quebrar as pazes e vingar-se da afronta que lhe tinha
sido feita.
Francisco de Albuquerque não satisfez nem com
obras nem com palavras o pedido de desculpas, pelo que logo o rei de Calecut
mandou soltar os paraus da armada pelos rios e a guerra recomeçou por culpa dos
nossos.
Depois
de a guerra recomeçada, o rei de Cochim
disse a Francisco de Albuquerque que
a determinação do rei de Calecut era que, quando ele partisse da Índia,
procurar todos os meios para o destruir (ao rei de Cochim) pelo que lhe pedia
que deixasse companhia de portugueses para sua guarda e defesa do seu reino.
Francisco
de Albuquerque assim lho prometeu, mas a companhia não foi tão grande quanto
convinha a um tal empreendimento, pois o que ele deixou quando partiu foram uma
nau, duas caravelas e um batel
grande de uma nau e cerca de cem homens portugueses, além dos cinquenta
que ficavam na fortaleza. A capitania destas velas deu a Duarte Pacheco Pereira que, por serviço de Deus e do rei Dom
Manuel, aceitou sem recear o grande perigo em que ficava; os capitães das
caravelas eram Pero Rafael e Diogo Pires.
Isto
feito e chegado Afonso de Albuquerque
de Coulão com as três naus que lá fora carregar, se partiram de Cochim para Cananor, onde recebeu cartas de Rodrigo Reinel que ficara como refém de
Naubeadarim em Cranganor, onde estava recebendo a pimenta quando a guerra
recomeçou que o avisava do grande poder militar que o rei de Calecut juntava
contra o rei de Cochim e teve o mesmo aviso por cartas de Cojebequii, o mouro nosso amigo que morava em Calecut, mas nem isto
serviu para deixarem mais gente a Duarte Pacheco Pereira.
Dali
se foram a Calecut, onde depois de
ancorados, mandaram pedir ao rei Rodrigo Reinel e outros portugueses que
estavam em seu poder. O rei escusou-se a fazê-lo e, por se passar o tempo da
navegação, Afonso de Albuquerque não quis esperar mais.
Tomada
dali a sua rota para o reino de Portugal, partiu primeiro Afonso de Albuquerque
e depois Francisco de Albuquerque no derradeiro
dia de Janeiro de 1504. Nesta viagem perderam-se Francisco de Albuquerque e Nicolau
Coelho sem se saber onde nem como. Pero
de Ataíde perdeu-se nos baixos de São
Lázaro, mas a gente salvou-se e com parte dela se foi a Moçambique
num zambuco, onde morreu e a outra
gente se foi a Melinde.
António do Campo que Afonso de Albuquerque e
Francisco de Albuquerque despacharam da Índia alguns dias antes que partissem
com as novas da perdição dos Sodrés e a guerra do rei de Calecut com o rei de
Cochim chegou a Lisboa a 16 de Julho de
1504 e Afonso de Albuquerque chegou a Lisboa a 24 de Agosto do mesmo ano.
Afonso
de Albuquerque apresentou ao rei Dom Manuel, entre outras coisas dois cavalos persas grandes, muito
formosos e ligeiros que o rei estimou muito por serem os primeiros que vieram a
este reino daquelas partes.= p. 117
Capítulo
LXXXV
De como depois da partida
de Afonso de Albuquerque e Francisco de Albuquerque se renovou a guerra entre o
rei de Calecut e o rei de Cochim e do que Duarte Pacheco Pereira nisso
fez. p.121
Duarte Pacheco Pereira com a sua nau e a caravela de Pero Rafael porque a outra caravela, a
de Diogo Pires ficou em Cochim para
ser consertada, acompanhou Afonso
de Albuquerque e Francisco de
Albuquerque enquanto estiveram em Cananor e no porto de Calecut.
Depois
da partida de Afonso de Albuquerque e de Francisco de Albuquerque, Duarte Pacheco Pereira regressou a
Cochim por causa da guerra que o samorii rei de Calecut queria outra vez
começar. Quando chegou, o rei de Cochim veio visitá-lo e disse-lhe a certeza
que tinha da guerra e como estava desesperado por se poder defender, pediu-lhe
afincadamente que o desenganasse se era verdade que o havia de ajudar nestes
trabalhos ou se eram somente mostras o que andava fazendo para o
entreter com palavras até se ir para Cananor ou Coulão porque com tão pouca
gente e navios como os que lhe deixaram Afonso de Albuquerque e Francisco
de Albuquerque duvidava que ousasse pelejar com o poder do rei de Calecut.
DuartePacheco Pereira que, apesar de ser muito cavalheiro era também demasiadamente
colérico, agastado e movido com estas palavras esteve quase para agredir o rei.
Contudo cheio de cólera disse-lhe:
- Confio tanto em Deus
que hei-de prender o rei de Calecut e preso, mandá-lo a Portugal. Descanse e
prepare a sua gente que, quanto aos portugueses, não tem de que duvidar.
Acabada
esta conversa, o rei recolheu-se aos seus paços e Duarte Pacheco Pereira
recolheu-se à fortaleza e porque lhe disseram que os mouros de Cochim, com medo
do rei de Calecut se queriam ir todos da cidade, mandou chamar alguns deles a
casa de um dos principais de nome Clinamacar,
onde os exortou a não saírem de Cochim, dando-lhes motivos por que não o deviam
fazer e, por fim, afirmou-lhe que jurava pela sua Lei que os que se
fossem e depois os encontrasse que os havia de enforcar e o mesmo faria
logo aos que soubesse de certo que queriam deixar a cidade.
Com
esta exortação, uns por medo e outros por vontade, prometeram-lhe que não iriam
para nenhuma outra parte e que por serviço do rei de Portugal e do rei de
Cochim poriam as suas vidas e bens em perigo.
Isto
acabado, Duarte Pacheco Pereira que
em nenhuma outra coisa tinha o sentido senão em como havia de provocar o rei de
Calecut, entrou algumas vezes pelas terras de Repelim e outras vezes pelas terras de seus aliados e vassalos e
nestes ataques fez muito dano, regressando sempre vitorioso a Cochim, embora
num destes ataques que fez em Repelim lhe ferissem oito dos seus. Com estas
vitórias alegrava toda a gente e principalmente ao rei que já começava a ter
nele mais confiança do que pouco antes lhe dera a entender.
O
samorim rei de Calecut, sabendo do
estrago que Duarte Pacheco Pereira fazia nas suas terras, apressou-se o mais
depressa que pôde com uma grande armada por mar e por terra até chegar a
Repelim com intenção de entrar na ilha de Cochim pelo passo de Cambalão.
Certificado
Duarte Pacheco Pereira por cartas de
Rodrigo Reinel que depois morreu (=
foi morto) em Calecut e de Cojebequii, ordenou o seguinte à gente
que havia de ir com ele defender aquele passo e deixar na sua nau e na
fortaleza:
1.
Na
nau, deixou vinte e cinco homens com o mestre Diogo Pereira que ficou por capitão com muita artilharia e munições
de guerra em defesa da cidade;
2.
Na
fortaleza, deixou por capitão Diogo
Fernandes Correia, feitor com trinta e nove homens entre os quais Lourenço Moreno e Álvaro Vaz escrivães da feitoria;
3.
Consigo
levou a caravela de que era capitão Pero
Rafael com vinte e seis homens e dois batéis, por capitão de um Diogo Pires com vinte e três homens, a
quem mandou que andasse nele até ter consertada a sua caravela e no outro batel
iam vinte e dois homens entre os quais o próprio Duarte Pacheco Pereira e um outro Simão de Andrade que embora ainda fosse um rapaz já, naquela altura,
dava mostras de ser o bom guerreiro que depois veio a ser. Iam nesta pequena
armada setenta e três homens, incluindo os capitães, todos confessados, comungados
e juramentados de morrerem uns pelos outros antes de se deixarem
aprisionar nem cometerem coisa que prejudicasse a sua honra.
O
rei de Cochim estava na cidade quando DuartePacheco Pereira desancorou de diante da fortaleza Emanuel e, chegando onde ele estava, o rei veio recebê-lo
à praia com muita alegria, mas quando viu que estava posta a esperança de se
perder ou ficar no seu reino com uma tão pequena companhia em comparação com o
exército do rei de Calecut que com a sua gente cobria a terra e com os paraus
entupia os rios do Malabar, com as lágrimas nos olhos pediu-lhe que já
que nem dele nem do seu reino se podia fazer conta nem em todos eles havia
poder nem resistência contra o seu inimigo lhe rogava que, com os seus
buscasse maneira de se salvar, pois já estava certa a sua perdição e de
todo o seu Estado. Que proveito se podia seguir ao de perecerem todos em suas
terras (de Cochim) sem
poder valer a homens a quem tanto bem queria, vendo-os tão animados a
morrerem para o livrarem dos trabalhos e perigos que a sua triste ventura o
tinha posto.
Duarte Pacheco Pereira, apesar de ser muito esforçado, não
ficou sem fazer mudança, não pelo receio dos perigos de que estava ameaçado,
mas sim pela compaixão que teve do rei e dos que junto dele estavam, a
que todos via com muito menos esforço do que davam a entender as palavras do
rei. Contudo ainda lhe disse:
- Não desconfie porque a
força desta armada está no poder do Deus Verdadeiro em quem os
portugueses crêem e adoram e que há-de confundir o rei de Calecut e fará falsas
todas as esperanças que os seus feiticeiros lhe dão do sucesso desta guerra que
ele começou. Isto é quanto a Deus que tudo pode! Quanto aos homens,
estes meus são tão esforçados e o passo onde vamos esperar o rei de Calecut é
tão estreito que nele espero desbaratá-lo sem nenhuma outra ajuda.
Com
estas e outras palavras, Duarte PachecoPereira consolou o rei o melhor que pôde, falando sobre o modo que cada um
deles devia ter nesta guerra. O rei de Cochim não tinha mais do que cinco mil
naires porque muitos dos seus se juntaram ao samorii. Destes deu quinhentos
a Duarte Pacheco Pereira que levou consigo na caravela, batéis e navios da
terra de que eram capitães Candagora
e Frangora seus administradores das
finanças e o caimal de Palurt e o
panical de Arraúl, a quem mandou que
obedecessem em tudo a Duarte Pacheco Pereira. Com esta companhia partiu
Duarte Pacheco Pereira de Cochim de noite, uma sexta-feira antes do Domingo de
Ramos, dia 16 de Março de 1504 e
duas horas antes do dia nascer chegava ao passo
de Cambalão.= p. 123
Capítulo
LXXXVI
Do que Duarte Pacheco
Pereira fez depois de chegar ao passo de Cambalão e de como o samorii (=
imperador) rei de Calecut o acometeu a primeira vez e foi desbaratado.
Quando
Duarte Pacheco Pereira chegou ao
passo de Cambalão esteve até ao romper do dia no meio do rio e ao amanhecer
chegou-se a terra, onde encontrou no porto bem oitocentos naires dos do
rei de Calecut e as suas flechas e tiros de espingarda os quiseram atingir para
que não desembarcassem, mas os nossos, quando chegaram ao porto, dispararam a
artilharia com que os inimigos recuaram, dando-lhes a possibilidade de
desembarcarem. Depois que os viram em terra, voltaram a atacar-nos e a peleja
durou cerca de meia hora até que se puseram em fuga, deixando alguns mortos no
campo.
Isto
feito, os nossos puseram fogo a uma povoação que ficava ali perto e depois
recolheram-se para o passo, levando consigo algumas vacas para alimento,
o que os naires de Cochim estranharam muito por os malabares terem por religião
não matarem a vaca nem lhe comerem a carne.
Recolhido
Duarte Pacheco Pereira ao passo, no mesmo dia lhe chegaram quinhentos naires
do rei de Cochim, em companhia dos quais vinha Lourenço Moreno com quatro espingardeiros portugueses. Quando Duarte Pacheco Pereira chegou a este
passo de Cambalão o rei de Calecut ainda lá não estava e no dia seguinte, este
apareceu defronte do lugar onde os nossos estavam com a seguinte companhia: Bertacorol, rei de Tanor com quatro mil
naires, Catanambarii, rei de Bipur e
de Cucurão, junto da serra de Narsinga com doze mil naires, Cocagatacol, rei de Cotagom entre
Cananor e Calecut, junto da serra com dezoito mil naires, Currivacuil, rei de Curiga entre Panane e Cranganor com três mil
naires. Estes traziam a sua gente e bandeiras separadas cada um por si e sob a
bandeira do rei de Calecut vinha Nambeja
seu sobrinho, Paramhira, senhor de
Cranganor que agora é reino, Papucol,
senhor de Cahliam entre Calecut e Tanor,
Parinhara Mutacoil, senhor da terra que está entre Cranganor e Repelim, Benara, senhor de Nambeadarim acima de
Panane por terra, Nambir, senhor de
Benalacheri, Papapucol, senhor de
Bipur, entre Cani e Calecut, Papucol,
senhor de Papurangari, o catual de Maugatenara e muitos outros caimães. Esta
companhia que vinha por terra, sob a bandeira do rei de Calecut passava de vinte mil homens entre naires e mouros de
que no exército havia bastantes.
A
companhia do mar era de cento e sessenta navios de remo em que entravam
setenta e seis paraus com arrombadas de artilharia poderosa. Este ardil
deram-lhe os dois lombardos milaneses que andavam ao serviço do rei de Calecut.
Cada parau destes levava duas bombardas, vinte e cinco flecheiros e cinco
espingardeiros. Vinte destes paraus vinham ordenados em fila para atacarem a
caravela. Além destes setenta e seis, iam cinquenta e quatro catures e trinta
tones de coxia larga com cada um sua bombarda e dezasseis homens de peleja.
Nesta armada do mar havia mais de doze mil homens de guerra de quem era capitão
o príncipe Naubeadarim, sobrinho e
herdeiro do rei de Calecut e por sota (= nau de retaguarda) capitão Elancol Nambeadarim, senhor de Repelim de tal modo que a gente que
entrou nestes dois exércitos do mar e da terra em serviço do rei de Calecut
passaria de setenta mil homens de peleja.
Além
desta enorme multidão de gente e navios mandou o rei de Calecut, por conselho e
ordenança dos dois lombardos milaneses, fazer de noite um baluarte de terra e
madeira defronte do passo onde os nossos estavam de que, no tempo dos combates,
recebiam muito dano por haver de uns aos outros muito pouco espaço.
Duarte Pacheco Pereira quando soube da chegada do rei de
Calecut e da frota que vinha com ele, mandou dar cabos da caravela a um dos
batéis e daquele ao outro guarnecidos com cadeias de ferro grossas com que
ocupavam todo o passo. Nesta ordem e com muitas bombardadas receberam esta
armada do rei de Calecut de que
arrombaram alguns paraus e mataram muita gente sem nenhum dos nossos ficar
ferido ou ser morto. A multidão dos inimigos era tanta que se embaraçavam uns
nos outros. Contudo a jangada dos vinte paraus que vinham em fila adiantou-se a
toda a sua frota chegando-se à nossa caravela e batéis e atiravam muitas
bombardadas com que davam assaz trabalho aos nossos.
Havendo já um bom espaço de tempo que uma e a
outra parte se servia da artilharia de maneira que com o fumo e o fogo da
pólvora não se viam uns aos outros, Duarte
Pacheco Pereira mandou atirar com um camelo
que ainda não descarregara; o que se fez em tão boa hora que o segundo tiro
desmanchou toda a fila de paraus, arrombando quatro paraus que logo foram ao
fundo. Estes desbaratados logo se começou a chegar outra quadrilha de paraus,
dos quais os nossos arrombaram treze e meteram outros treze ao fundo. Nestes
dois ataques dos nossos mataram muitos do inimigo e fizeram-nos afastar.
O
senhor de Repelim vendo isto, ele
próprio acudiu com uma grande frota de paraus, catures e tones e o mesmo fez o rei de Calecut por terra. Este foi um
bravo e perigoso combate porque, de ambas as partes, eram os nossos acometidos
de modo que quase se tiveram por derrotados, mas assim como a pressa da vitória
do inimigo era grande também maior era o esforço de Deus.
Isto era já depois da hora de vésperas. Até
esta altura, os nossos tinham já morto trezentos e cinquenta homens honrados,
além de outros populares que passavam de mil. Dos nossos, por milagre de Deus,
não morreu nenhum e poucos ficaram feridos; um dos nossos batéis foi arrombado
pelos tiros de artilharia do inimigo, mas não tanto que não o conseguissem
consertar antes que anoitecesse. Candagora
e Frangora, capitães do rei de
Cochim que durante todos estes combates estiveram na caravela (porque os outros
naires que iam nos paraus e catures fugiram com medo no dia em que o rei de
Calecut chegou ao passo), vendo a vitória que Deus dera aos nossos e quão esforçadamente
o fizeram, ficaram espantados, pedindo perdão a Duarte Pacheco Pereira da desconfiança que tiveram de ele poder
desbaratar tão grande multidão de gente.
Com
a notícia de tão grande vitória, o rei de Cochim ficou muito contente e,
por isso, mandou logo o príncipe de Cochim visitar Duarte Pacheco Pereira, desculpando-se de não o fazer ele
pessoalmente pela necessidade de ficar em guarda da cidade.
Após
a vitória, os nossos, apesar de bastante esgotados pelo esforço, nem por isso
deixaram de cantar e se divertir toda aquela noite e tocar as trombetas e dar
com martelos na artilharia e fazer ruído com cadeias de ferro que havia nos
navios para assim espantarem os inimigos e para que pensassem que estavam
fazendo alguma máquina para os combater no dia seguinte.
Duarte Pacheco Pereira vendo que nem por mar nem por terra
o vinham acometer se foi, depois da hora de vésperas, num dos batéis atacar uma
povoação do caimal de Cambalão, onde, apesar da resistência, mandou pôr fogo.
No
dia seguinte, chegou a caravela que ficara em Cochim a consertar e de que
Duarte Pacheco Pereira, por terra, fora avisado da sua partida e foi ao seu
encontro. Nela estava o rei de Cochim
que o veio ver e depois de terem conversado sobre os seus assuntos, despediu-se
dele e trouxe a caravela para o passo de Cambalão. Entregou a capitania da
caravela a Diogo Pires e a do batel
a Cristóvão Jusarte e já que o rei
de Calecut, por conselho dos seus feiticeiros, durante toda esta semana não
acometeu o passo, Duarte Pacheco Pereira
não deixou de fazer o seu trabalho, entrando pelas terras de Cambalão e fazendo
muitos ataques inesperados em que queimou alguns lugares da ilha com bom
despojo e regressou sempre vitorioso.=
p. 125
Capítulo
LXXXVII
Do segundo e terceiro
combates que o samorim rei de Calecut deu aos nossos em que também foi
derrotado.
O
rei de Calecut injuriado de tamanha afronta como a que recebera dos
portugueses, pensou logo no dia seguinte voltar a atacar os portugueses, mas
por conselho dos seus feiticeiros não o fez, dando-lhe dia certo para a
vitória. Este dia era o Dia de Páscoa
tão solene à nossa religião que se podia esperar nele a vitória com maior
certeza do que em nenhum outro.
No
Dia de Páscoa, em amanhecendo,
apareceu uma armada muito maior do que a primeira. Esta era de cem paraus, cem
catures e oitenta tones, onde havia mais de quinze mil homens de peleja; destes
cinco mil eram flecheiros, duzentos espingardeiros e os outros de espada, rodela
e lança, além dos bombardeiros que serviam a trezentos e oitenta tiros de
artilharia falcões e berços e os outros de metal que fundiram os dois lombardos
milaneses e para que o rei pudesse mais facilmente desbaratar os nossos, criou
um ardil: mandou a um dos seus capitães que, com setenta paraus,
fosse atacar a nossa nau que ficara de guarda da cidade de Cochim para que Duarte
Pacheco Pereira deixasse o passo para a socorrer e ele (rei
de Calecut) deixou-se ficar com toda a
outra armada no rio de Repelim.
Estes
paraus foram ter a um estreito que entra no rio de Cochim por onde o rei de
Calecut também poderia passar com toda a sua armada e o fizera se não lhe
parecera fraqueza mudar o propósito que tinha de passar pelo passo de Cambalão.
Estes paraus passaram de noite sem serem pressentidos pelo que, quando chegou a
nau a acometeram muito bravamente.
Esta
notícia, por via do rei de Cochim com muita diligência, chegou a Duarte Pacheco Pereira às nove horas do
dia e ele ficou muito apreensivo com este recado por ver que era ardil de
guerra que o rei de Calecut pusera em prática para lhe enfraquecer o passo e o
entrar. Contudo por conselho e parecer de todos, foi socorrer a nau com
a caravela de Diogo Pires e o batel de Cristóvão Jusarte. Encontraram a nau em
tamanho aperto que se tivessem tardado um pouco mais dificilmente se pudera
defender, mas assim que os inimigos o viram largaram a nau, fugindo para
Repelim.
Duarte Pacheco Pereira não os quis seguir nem pelo menos
entrar na nau porque já ouvia o som de bombardas que parecia que vinha dos lados
de Cambalão, pelo que voltou logo e assim chegou ao passo de Cambalão numa altura em que era muito
necessário porque os inimigos tinham passado a caravela ao lume de água à força
de bombardadas e desfeitas as arrombadas e também as do batel, tanto por mar
como por terra, combatiam os nossos com tanto ímpeto, mas se ele não chegara a
tempo, que chegou, o passo teria sido entrado.
Ao
chegar deu nas costas do inimigo e nos que estavam no passo, à frente, de tal
maneira que os fizeram fugir a todos: uns pelo rio acima e outros em todas as
direcções em terra. Neste combate, os inimigos perderam dezanove paraus entre
queimados e alagados e morreram duzentos e noventa homens. Dos nossos, por
milagre de Deus, não morreu nenhum porque em muitos deram os piloros nas
cabeças, braços, peitos, pernas e por todo o corpo sem lhes fazer dano,
passando deles adiante.
Os
inimigos ficaram tão furiosos que desmanchavam e quebravam as apadesadas em
pedaços, no que claramente se viu que Deus
era o que pelejava por eles. O rei de Calecut, vendo quanto ao contrário do que
esperava lhe sucederam os dois combates, como de sua condição era instável,
quisera desistir desta guerra e a mesma vontade achou em muitos dos seus. Contudo,
aconselhado pelos mouros, determinou acometer uma terceira vez o passo trazendo
toda a sua frota alinhada em esquadrões.
Duarte Pacheco Pereira mandou aos das caravelas e batéis
que não atirassem nem se mostrassem, senão quando ele o dissesse. Os inimigos
que estavam em terra julgaram que não o faziam por medo e por isso deram uma
grande apupada e chegaram-se ao passo e o mesmo vinham fazendo os navios de
Calecut, todos tão confiados que, sem nenhuma ordem, chegaram aos nossos a tiro
de lança. Então Duarte Pacheco Pereira mandou dar um grande grito e disparar a
artilharia contra os da terra e os do mar e subitamente mataram tantos e
arrombaram tantos navios dos de Calecut que todos, tanto uns como os outros,
deixaram o combate a quem mais depressa fugiria. O caimal de Repelim que era
capitão destes navios que acometeram primeiro, vendo isto mandou pô-los
novamente em corpo, começando de novo a bombardear os nossos, mas o rei de
Calecut irritado por isto se fazer de longe e que não ousavam chegar-se ao
passo, mandou o príncipe Naubeadarim
que era capitão geral da armada do mar que fosse para aquele lado e que o
senhor de Repelim se retirasse dali, pois estava a fazer tão mal o ataque.
O
senhor de Repelim sentiu-se muito afrontado e ofendido, mas Naubeadarim fez tanto como ele porque
ainda que viesse com toda a flor da armada foi também recebido pelos nossos com
piloros de bombardas que nunca nenhum dos da sua companhia, por muito que ele
os animasse e ameaçasse, ousou chegar-se ao passo, mas antes vendo-se tão
maltratados, puseram-se em fuga. Foi tamanho o medo desta derrota que mesmo o
rei de Calecut, desesperado e com medo de lhe tomarem a artilharia que estava
no baluarte que mandara fazer defronte do passo, a mandou tirar dali e levou
consigo, retirando-se do campo como homem derrotado. Os inimigos perderam desta
vez vinte e dois paraus e outros navios e como se soube por certo, morreram
deles mais de seiscentos.
Duarte Pacheco Pereira não contente com esta vitória foi
ainda seguindo os inimigos um bom pedaço de tempo às bombardadas e ainda saltou
em terra e queimou dois lugares sem encontrar nenhuma resistência. Depois
regressou ao passo já eram quatro horas da tarde, pois tanto duraram estes
ataques, começando pela manhã e logo aquela noite, no quarto da hora primeira,
por aviso dos espias que trazia, foi dar a um lugar muito grande dos inimigos
que queimou e matou muitos dos que nele moravam. Contudo ao recolher, que já
era ao romper do dia, encontrou resistência de naires e matando e ferindo
alguns deles fez fugir os outros.
Dali
partiu para o passo, onde encontrou muito refresco que lhe mandara o rei de Cochim. O refresco veio bem a
propósito a todos e pelos que trouxeram o refresco, Duarte Pacheco Pereira mandou dizer ao rei de Cochim que
perseverasse porque ele esperava em Deus de não somente vencer o rei de
Calecut, mas ainda o capturar e lho entregar prisioneiro.= p. 127
Capítulo
LXXXVIII
De como o rei de Calecut
passou o rio de Repelim e instalou o seu arraial nas terras de Porcâ, onde
acometendo os passos de Palurt e o do vau foi outra vez derrotado.
Com
estas derrotas dos da companhia do rei de Calecut, tendo aquela guerra por
infortunada, muitos desertaram, entre os quais um foi o caimal Mangate Muta, um seu irmão e um seu primo que, no dia
seguinte, depois do terceiro combate, abandonaram secretamente o arraial para a
ilha de Vaipim com intenção de
fazerem dali os seus acordos com o rei de Cochim, cujos vassalos eram. O rei de Calecut sentiu muito, por todos
os três serem guerreiros muito esforçados, pelo que logo começou outra vez a
insinuar prosseguir esta guerra, mas aconselhado pelos dois lombardos milaneses
e por alguns dos reis e senhores que andavam com ele, determinou continuar o
que tinha começado. Nisto foi contrariado pelo príncipe Naubeadarim como já outras vezes o fizera, fazendo-lhe sobre isto
uma exortação pública, chamando-o à razão e com argumentos, os quais o rei ia
aceitando de boa vontade, se não fora o senhor de Repelim o contradizer, pois
ele era muito submisso ao rei.
Finalmente
ficou estabelecido que se continuasse a guerra e visto que, pelo passo de
Cambalão não se podia fazer a entrada; ainda que fosse com afronta do rei, esta
se fizesse por outro passo chamado Palinhar
que estava um bom pedaço distante daquele. Palinhar era um lugar muito cheio de
lamas e matos de espinheiros, de tão ruim fundo que os nossos não poderiam lá
chegar com as caravelas. Dali o rei de Calecut passaria a Cochim pelo passo do vau, como fizera da outra vez, quando
derrotara o rei de Cochim. Que Duarte Pacheco Pereira não fosse avisado desta
decisão.
Logo
no dia seguinte ao terceiro combate, passaram do outro lado do passo à terra de
Porcâ. Os espias dos nossos, quando
viram o inimigo levantar o arraial, imaginaram que o rei de Calecut regressava
a Calecut, mas quando o viram deslocar-se para o passo de Palinhar, avisaram logo Duarte Pacheco Pereira e, após este
espia vieram outros que lhe disseram que cerca de quinhentos naires do rei
de Calecut andavam na ilha de Arrabil,
cortando e queimando muitas árvores que entre eles é sinal de vitória. Duarte
Pacheco Pereira logo avançou com alguns portugueses e duzentos naires do rei de
Cochim que levava consigo misturados. Ele e Pero Rafael, em esquadrão, no outro passo os atacou e desbaratou,
matando a maior parte deles e trazendo cinquenta prisioneiros que, quando
regressava encontrou embrenhados num bosque da ilha. Quis enforcá-los a todos,
mas a rogo dos naires do rei de Cochim, apesar de inimigos não o fez e mandou
presos ao rei de Cochim que também pela vida deles lhe mandara rogar.
Isto
feito e Duarte Pacheco Pereira,
verificando que já não valia a pena continuarem no passo de Cambalão, levou as
caravelas ao passo de Palurt que
fica a uma boa légua do vau, onde não podiam chegar por ter pouco fundo e ele
com os seus batéis se foi dali ao passo do vau donde podia facilmente socorrer
as caravelas.
Quando
chegou ao passo de Palurt, encontrou alguns naires na ponta da ilha de Arraúl que, de um lado e do outro, está
situada entre as terras de Repelim e de Porcâ. O rei de Calecut instalava o
arraial a uma légua de Palurt. Os naires, vendo os nossos, acudiram à praia
donde os nossos os fizeram recuar para dentro às bombardas. Estando ali
ancorado, Duarte Pacheco Pereira foi
avisado de que, no dia seguinte, que era o primeiro
dia do mês de Maio, havia o rei de Calecut de mandar atacar o vau.
Ao
amanhecer, Duarte Pacheco Pereira
foi lá com os batéis, dando o sinal que havia de fazer aos capitães das caravelas
quando tivesse necessidade de socorro. Ao chegar ao passo do vau, mandou dar
grandes gritos para que os inimigos soubessem que tinha chegado. Lá encontrou o
príncipe de Cochim com seiscentos naires.
O
rei de Calecut, depois de ter ido
para o outro lado, nas terras de Porcâ,
por conselho dos seus, no dia seguinte ao que os seus feiticeiros disseram que
haveria vitória, mandou combater de ambos os passos de Palurt: o do vau
e o de Palurt. Onde estavam as caravelas, mandou o senhor de Repelim com toda a frota e ao do vau mandou o príncipe Naubeadarim com quinze mil homens. Duarte Pacheco Pereira, que esperava o mesmo, mandou logo arrasar a
ponta da ilha de Arraúl e cortar
todo o arvoredo que nela havia para os inimigos não porem ali secretamente
algumas bombardas e mandou dar cabos de uma caravela à outra, fazendo toda a
noite uma grande festa para darem a entender ao inimigo que não tinham medo.
De
madrugada, chegaram Simão de Andrade
e Cristóvão Jusarte nos batéis
porque o vau ficava seguro quando a maré enchia. Duarte Pacheco Pereira mandou aos seus que comessem porque aquele
dia sobre todos, era aquele em que haviam de mostrar o esforço com que sempre
venceram o inimigo e com estas palavras e outras os animava ao bravo e perigoso
combate em que logo se haviam de encontrar.
Isto
era ao romper do dia, a hora em que
os inimigos com algumas bombardas que tinham em terra na ponta da ilha,
começaram a atirar contra os nossos e logo dali a pouco apareceu a frota que
era composta por duzentas e cinquenta velas e, por vir ainda longe, Duarte Pacheco Pereira fez dar aos
remos nos batéis e, chegando a terra, foi atacar a estância donde os inimigos
atiravam e fê-los fugir e porque não pôde trazer as bombardas, mandou-as
encravar. Desbaratada esta companhia recolheu-se às caravelas, estando
já a armada dos inimigos bem perto da nossa e por os seus tiros varejarem
amiúde, mandou que estivessem todos baixos sem se mexer até ele o mandar. Isto
aos inimigos pareceu que os nossos estavam com medo; então começaram a se
aproximar das caravelas quarenta paraus enfileirados.
Logo
Duarte Pacheco Pereira mandou dar uma grande
gritada, tocar as trombetas e disparar a artilharia com que os paraus
se desorganizaram logo. O senhor de
Repelim mandou imediatamente outros paraus em ajuda, onde foram tantas as
bombardadas de uma parte e da outra que nem o céu nem a terra nem a água se
viam com o fumo e chamas de fogo. Contudo os inimigos aproximavam-se cada vez
mais dos nossos navios e tão perto deles que se serviam das flechas e lanças de
arremesso. Nisto esteve a peleja um bom pedaço de tempo sem a vitória se
inclinar a nenhuma das partes até que Deus,
por Sua misericórdia, a declarou a favor dos nossos, começando-se os
paraus a alagar pela muita gente que lá já tinham morta. O senhor de Repelim,
vendo que o rei de Calecut via de terra a peleja e querendo-o contentar,
tentara passar o vau, mas os nossos, por duas vezes, o defenderam, matando
muitos dos que com o senhor de Repelim estavam.
Estando
Duarte Pacheco Pereira neste
trabalho, aproximou-se dele Candagora
a dizer-lhe que Naubeadarim,
príncipe de Calecut, vinha para passar o vau com uma grande companhia de gente
e que o rei de Calecut vinha atrás dele. Depois de saber isto, Duarte Pacheco
Pereira deixou-se estar atirando as bombardadas aos inimigos até à hora em que
a maré, vazando, podia dar lugar a Naubeadarim para passar o vau. Para lá se
foi logo e lho defendeu de maneira que, apesar de Naubeadarim insistir muito em
passar o vau e também a muita gente que levava consigo com berços encarretados
que para isso fez trazer a colos de homens, ele não pôde passar e tomou a
decisão de recuar. Nesse
instante, chegou recado do rei de
Calecut para Naubeadarim que não
sabia qual o fizera pior se o senhor de Repelim em não afundar os nossos
navios ou ele em não passar o vau como lho prometeram. Naubeadarim ficou tão
envergonhado que, de novo, com doze mil homens voltou a atacar o passo.
Houve uma brava peleja e Naubeadarim viu-se constrangido a fugir.
Nestes
combates e no de Palurt, o rei de Calecut perdeu muita gente e
muitos navios e ficou tão irritado que, se estivesse na sua mão, mandaria
cortar a cabeça a alguns dos seus capitães. Contudo não os deixou de repreender
e chamar-lhes cobardes e principalmente ao senhor de Repelim e a Naubeadarim,
príncipe de Calecut.= p. 129
Capítulo
LXXXIX
De como o rei de Calecut
em pessoa combateu o passo do vau, onde foi derrotado e de algumas coisas que
antes e depois disso aconteceram.
Dois
ou três dias depois de Deus dar esta
vitória aos nossos, começou uma tão grande enfermidade no arraial do rei de
Calecut que a guerra teve as suas tréguas por lhe morrer muita gente sem se
conhecer de que doença nem medicamento para a sua cura. Constrangido, o rei se
foi do acampamento militar até que aquela doença cessou.
Contudo
Duarte Pacheco Pereira, em todo este
tempo, não esteve ocioso, mas antes se apercebeu de tudo o que lhe era
necessário e porque dantes lançara abrolhos (= espinhos) de ferro no vau e estes, por serem curtos,
se sumiram tanto na lama do vau que não afectaram o inimigo; então mandou, no
baixa mar, fincar no vau estacas de areca (palmeiras indianas) tostadas com pontas muito agudas.
O
rei de Calecut, nesta altura, soube pelos seus feiticeiros que os seus deuses
estavam muito irados contra ele e que se aplacariam se logo mandasse fazer um
turcol (casa de oração tipo mosteiro) no lugar que eles lhe dissessem que são casas de oração onde vivem
homens religiosos como entre nós frades. Ele prometeu fazê-lo e eles
indicaram-lhe o dia certo em que nele teria vitória, para o que se começou a
preparar para o combate.
Deste
assunto, Duarte Pacheco Pereira teve aviso pelos seus espias com quem, nesta
altura, estavam trezentos naires do rei
de Cochim e duzentos naires do Mangate.
Estes fugiram um dia antes da peleja e Duarte
Pacheco Pereira, ao regressar das caravelas que fora visitar, soube por
dois naires de Cochim que o fizeram a mando do mesmo Mangate. Duarte Pacheco Pereira, por lhe parecer traição,
avisou o príncipe de Cochim,
mandando-lhe dizer por um brâmane
que viesse logo para o ajudar, por quanto, no dia seguinte, esperava ataque
do rei de Calecut. O brâmane deu o recado ao príncipe já tarde demais para ter
qualquer benefício. O rei de Calecut, no dia em que os seus feiticeiros lhe
disseram que pelejasse, partiu com todo o seu exército, repartido da maneira
seguinte:
ü À frente, precediam dois mil
naires para guarda de trinta bombardas que o rei mandaria atirar para onde
os nossos estavam;
ü Atrás deles, seguia a vanguarda do
exército de que era capitão Naubeadarim
com doze mil homens em que entravam dois mil flecheiros e trinta
espingardeiros;
ü Após ele, o senhor de Repelim com outra tanta gente;
ü Na retaguarda, vinha o samorim rei de Calecut com quinze
mil homens entre flecheiros, espingardeiros, lanceiros e de espada e rodela
e quatrocentos homens que traziam machados para cortarem a paliçada.
Contra
todo este poder, Duarte Pacheco Pereira
tinha dois batéis, quarenta homens portugueses e em cada um seis
berços, dois falcões e um tiro grosso por proa.
Os
que vinham com a artilharia do rei de Calecut, ao chegarem, começaram logo a
descarregá-la contra os nossos, mas Duarte
Pacheco Pereira, depois de os segurar um pouco, aproximou-se deles com os
batéis e às bombardadas fê-los recuar para dentro de um palmeiral. Estando
assim a pelejar, chegou Naubeadarim
com a vanguarda do exército que, com grande ímpeto, acometeu o vau, mas
os nossos defenderam-no às bombardadas e com rocas de fogo que lhe lançavam
amiúde, matando muitos deles e, porque a maré vazava, Duarte Pacheco Pereira, para não ficar atolado na lama do passo,
retirou-se um pouco para trás e mandou Cristóvão
Lusarte, porque o seu batel era mais pequeno, que esperasse no passo o mais
que pudesse porque, com o retorno da maré, que não devia tardar, se juntaria a
ele. Assim ambos, cada qual no lugar em que a água deixava flutuar os batéis,
defendiam o passo de tal maneira que os inimigos não ousavam atacá-lo.
Era
tão grande o ruído e o atirar das bombardas, espingardas e flechas que, por
muito alto que do batel de Cristóvão Lusarte
dissessem a Duarte Pacheco Pereira
que os naires de Cochim que guardavam a estacada a abandonaram, este não
o pôde ouvir. Já nesta altura, o senhor
de Repelim estava no passo, ajudando a gente de Naubeadarim, quando chegou
o rei de Calecut com toda a força do
seu exército e, por o conhecerem pela bandeira e sombreiro que trazia à frente,
Duarte Pacheco Pereira mandou atirar com um falcão de que o piloro deu tão
perto dele que o fez balançar no andor em que vinha e o piloro matou dois
naires que estavam junto dele, pelo que se retirou um bom pedaço para trás,
mandando dizer a Naubeadarim e ao senhor de Repelim que apertassem com a sua
gente para passarem o vau antes que a maré subisse mais.
Com
este recado e à força de pancada e cutiladas que davam nos seus, faziam-nos
entrar no vau e, empurrando-se uns aos outros, começaram a sentir as pontas das
estacas de areca com tanta dor que os primeiros, bradando e lamentando-se aos
que seguiam atrás, começaram a embaraçar-se uns nos outros de maneira que,
caindo uns sobre os outros, esforçavam-se por conseguir voltar para trás e os
nossos nos batéis usavam a artilharia sobre eles.
Durante
isto, os dos machados, pela água de todo ser baixa, chegaram à estacada,
começando a cortá-la sem acharem resistência por os naires de Cochim, que a
guardavam, terem fugido. Duarte Pacheco
Pereira, vendo isto, ficou muito triste e apreensivo porque, acudindo
àquela parte, os inimigos entrariam pelo passo por aquela área onde ele
estava e não acudindo, passariam pela outra. Se o fizessem, no mesmo
dia, chegariam a Cochim e ficariam senhores de toda a terra. Contudo determinou
acudir ao mais necessário que era a estacada.
Duarte Pacheco Pereira aproximou-se o mais que pôde do
batel de Cristóvão Lusarte e saltou para dentro e disse a Cristóvão Lusarte para saltar para o seu e, por este batel ser mais
pequeno, aproximou-se da estacada o mais que pôde, donde começou a atirar com a
artilharia de maneira que os inimigos começaram a retirar-se da estacada. Logo
acudiu Naubeadarim com a maior parte
da sua gente e alguns tiros de artilharia pelo que renovou a peleja tão
bravamente que os inimigos chegaram até a porem as mãos nos remos do batel em
que estava Duarte Pacheco Pereira.
Este, vendo -se cercado por todos os lados, chamou com muita devoção em alta voz Deus em socorro e ajuda
porque em todas as outras pelejas nunca sentiu que poderia ser vencido, senão
nesta. Logo o Senhor lhe acudiu com o seu grande poder porque a maré começava
já a subir. Os do batel, apercebendo-se disso, deram um grande grito e
começaram a balancear o batel para o voltarem, mas era tanta a quantidade dos
inimigos que os tinham cercado ao redor que não o puderam fazer.
À
medida que a maré ia subindo, ia crescendo o ânimo aos nossos como a homens a quem tinha chegado o verdadeiro socorro que lhes
era necessário pelo que, muito mais amiúde do que dantes, começaram a
descarregar a artilharia, espingardas, lanças, paus tostados e outros tiros de
arremesso contra os inimigos, fazendo eles o mesmo até que a maré subiu tanto
que a força da água fê-los deixar o passo.
Depois
disto, Duarte Pacheco Pereira
regressou ao lugar onde deixara Cristóvão
Lusarte que, da sua parte, fez também muito naquele dia como esforçado guerreiro e nem creio que tal nome
se possa negar a nenhum dos que ali se encontravam. Chegando Duarte Pacheco
Pereira onde estava Cristóvão Lusarte cada um saltou para o seu batel e, sem
quererem perder tempo, servindo-se da maré percorreram o vau, atirando muitas
bombardadas contra a ilha de Porcâ,
onde o rei de Calecut estava alojado e mataram alguns que andavam à borda de
água, fazendo-os recuar para dentro dos palmares.
O
rei de Calecut ficou muito triste e envergonhado com esta derrota por, diante e
na sua presença, um enorme exército não derrotar e tomar às mãos dois batéis
com tão pouca gente. Repreendendo muito os seus, partiu em desespero ao longo
da ilha para a parte onde estava Pero
Rafael com as caravelas. Este, vendo passar o rei de Calecut ao longo da
praia, mandou disparar um tiro grosso que, junto do rei, matou três naires,
dos quais um era o que lhe dava o betelhe. O tiro foi tão perto do rei que o
sangue dos naires lhe saltou para o rosto.
O
rei desceu do andor e caminhando a pé afastou-se da caravela. Nesta peleja, o
rei perdeu muito mais gente do que em todas as outras sem dos nossos morrer nenhum, factos que certamente se pode crer
como milagrosos. Esta peleja durou
desde o amanhecer até às horas de vésperas, quando o príncipe de Cochim chegou ao passo, após receber o recado do
brâmane e, sem saber nada do combate porque o recado que Duarte Pacheco Pereira mandara pelo brâmane de que haveria naquele
dia o rei de Calecut os atacar, não lhe foi transmitido.
Duarte
Pacheco Pereira, irritado pela demora do príncipe de Cochim e seus naires e
pela fuga dos seus naires da estacada, não queria falar com o príncipe; mas
este apertou tanto Duarte Pacheco
Pereira que este ouviu as desculpas do príncipe e as recebeu. Duarte
Pacheco Pereira contou-lhe a fuga dos seus naires e o facto de não lhe ter sido
dado o recado que lhe mandara. Tudo foram artes e traição do Mangate e Duarte Pacheco Pereira
avisou-o de que visse o que fazia dali por diante e que não se fiasse mais no
Mangate.
Dali
Duarte Pacheco Pereira se foi para
as caravelas, onde o rei de Cochim o veio visitar com muita festa e alegria
como já o fizera outras vezes, lançando-lhe os braços ao seu pescoço e
dizendo-lhe que a ele, depois de Deus, devia o seu reino e Estado. Duarte Pacheco Pereira respondeu-lhe a
isso com discrição, queixando-se-lhe da traição que os seus naires fizeram ao
fugir da estacada, atribuindo esse facto a Mangate
e a seus parentes, dizendo-lhe:
- Mangate é seu inimigo
secreto. Será melhor que o lance fora das suas terras para que seja do
conhecimento de todos que é um traidor e vá servir o rei de Calecut como já o
fez antes.
Acabadas
todas estas conversas, o rei regressou a Cochim, mandando a todos os seus
caimães, panicães e naires que em tudo, como a sua própria pessoa, obedecessem
dali por diante a Duarte Pacheco Pereira.=
p. 131
Capítulo
XC
Das traições que, por
conselho do senhor de Repelim, o rei de Calecut ordenava para matar e destruir
os nossos e por não acontecer segundo a sua vontade, quis fazer a paz e outras
particularidades.
O
rei de Calecut, com a grande irritação e tristeza que tinha, não se conseguindo
controlar mais nem dos que com ele andavam, maldizia tantos os feiticeiros como
os reis e capitães, chamando a todos cobardes entre os quais o que acusava mais
era o senhor de Repelim porque
reconhecia já nele ser fanfarrão e cobarde. Este para voltar a cair na graça do
rei, aconselhou-o a que mandasse pôr veneno na água que os nossos bebiam
e tivesse maneira de fazer o mesmo aos mantimentos.
Este
ardil foi revelado a Duarte Pacheco
Pereira por Charcanda naire que
fora criado do príncipe de Cochim, Narmuhim.
Logo Duarte Pacheco Pereira mandou que nenhum dos que andavam com ele bebessem
nem de rio nem de fonte nem de poço, salvo de poços que cada dia ele
mandaria abrir. Isto fazia-se com pouca dificuldade por a terra ser baixa e
abaulada; relativamente aos mantimentos, mandou que tanto os que lhe mandassem
como os que comprassem, aqueles que os trouxessem tomassem prova primeiro.
O
senhor de Repelim, vendo que este ardil não surtia efeito, deu ao rei de
Calecut outro ardil: mandar secretamente pôr fogo à cidade de Cochim e
no próximo combate, atacar ao mesmo tempo, a nau, as caravelas e batéis
não só com gente e artilharia, mas também com elefantes, cobras de capelo e
pós de veneno. De tudo foi avisado o rei de Cochim e sobre isso veio
encontrar-se com Duarte Pacheco Pereira muito triste e medroso. Duarte Pacheco Pereira respondeu-lhe:
- Descanse! Eu mandei
fazer uma coisa com que hei-de prender o rei de Calecut e tomar-lhe os
elefantes, matar-lhe muito mais gente do que já aconteceu. Vá para Cochim e
mande-me quantas cadeias de ferro e amarras de naus lá haja. São necessárias
para o que preciso fazer.
Trazida
esta encomenda e entregue a Duarte
Pacheco Pereira, este começou a fingir que queria fazer um grande edifício
e por os da terra, que são naturalmente curiosos, não verem o que era, defendeu
que nenhum se aproximasse do passo do vau. Lá tinha mandado abrir grandes covas
e fazer fossados que, de baixa mar ficavam cheios de água em altura que só
se pode passar a nado. O rei de Calecut foi avisado do segredo desta obra e
começou a ficar receoso e também todos os seus porque por experiência, já
conheciam o ânimo, esforço e engenho
que havia em Duarte Pacheco Pereira
que, nesta altura, fez algumas entradas pelos rios e terra firme, em que
queimou muito lugares e tomou quatro paraus do rei de Calecut com treze
bombardas de que fez serviço ao rei de Cochim.
Andando
assim ocupado, disseram-lhe que os mouros tinham dito ao rei de Calecut que ele
não podia estar muito tempo no passo do vau. Para o rei saber quão ausente
estava, Duarte Pacheco Pereira mandou,
numa ponta junto ao rio, fazer umas casas e ao redor delas abrir uma grande
cova cheia de água como se fosse uma ilha. No cabo desta ponta mandou fazer um bastilhão, no qual pôs um pau alto, a
que os malabares chamam calvete onde
fazem justiça a gente de baixa condição e popular. Alguns naires de Cochim
perguntaram-lhe para que era e ele disse que era para nele mandar espetar o
rei de Calecut. Eles não só ficaram espantados com a resposta, mas ainda
tão assombrados que se foram sem lhe responder. O rei de Calecut, sabendo disto,
ficou com tanto medo que, por via de dois mouros de Cochim, um de nome Cherina e o outro Mamalemarear tratou secretamente de fazer a paz com Duarte Pacheco
Pereira, sem disso dar conta a pessoa nenhuma, além do príncipe Naubeadarim que sempre contrariou esta
guerra.
Estes
mouros deram a entender a Duarte Pacheco Pereira que este acordo que procuravam
fazer com ele era da sua autoria, pelo desejo que tinham de paz e Duarte Pacheco Pereira respondeu-lhes
que se fossem embora. Quando o rei de Calecut mandasse-lhe acordar a paz que
ele lhe responderia e com isto os mandou embora. O rei ficou ainda muito mais
atemorizado pelo, por conselho do mesmo príncipe Naubeadarim e do senhor de
Repelim determinou, com muito maior força e poder do que até ali fizera, atacar
o passo para o que se começou a preparar. Nesta altura, deu a mesma
enfermidade que já da outra vez aconteceu no seu arraial militar, ma não foi
tão perigosa como antes por os físicos (=alquimistas) terem descoberto o
medicamento. Contudo foi proveitosa aos nossos porque, pelos avisos que Duarte
Pacheco Pereira teve do modo em que o rei determinava de o vir atacar se
preparou de maneira que a tudo resistiu e obteve a vitória.
Capítulo
XCI
De como Duarte Pacheco
Pereira desbaratou outra vez o rei de Calecut.
O
rei de Calecut, depois de passada a
doença que, pela segunda vez, atacara o seu acampamento militar, determinou com
a gente que tinha e muita outra que juntou e munições de guerra que para isso
mandara fazer, vir atacar Duarte Pacheco Pereira ao passo do vau pela
seguinte ordem:
ü Por terra, acompanhado de trinta mil
homens com uma artilharia ordenada como sempre costumava fazer;
ü Diante dele, o senhor de Repelim com
uma grande quantidade de escavadores para fazerem valas e fossas na ponta de Arraúl, onde os seus se pudessem
abrigar dos tiros da nossa artilharia e utilizar a sua, protegida;
ü Por mar, vinham, à frente da frota
muitas balsas de lenha com alcatrão, estopa e outros materiais que
ardiam em chamas de fogo, a pô-las vinham cento e dez paraus em fila e
atrás cem catures e oitenta tones de coxia larga, todos em boa
ordem, com muita gente e artilharia;
ü Por último, seguiam oito castelos
de madeira que o rei de Calecut mandara fazer a conselho de um outro mouro de
Repelim chamado Cojeale, homem
sabedor da guerra. Cada castelo vinha colocado sobre dois paraus, lançadas duas
vigas que atravessavam de popa a popa e de proa a proa de cada um dos paraus
sobre o alicerce edificou os castelos e um sobrado em cada um deles em altura
de dezoito palmos, com traves e outra madeira e cravação de ferro tão forte que
parecia impossível poder-se derrubar com nenhum tiro por grosso que fosse.
Duarte
Pacheco Pereira que de tudo isto tinha aviso pelos seus espias muito antes
deste dia em que o rei de Calecut o veio atacar que era o Dia da Ascensão de Nosso Senhor, para que não lhe aferrassem as
caravelas com os castelos, mandou fazer uma bastida de matos, tipo
jangada de oito braças de comprimento e outras tantas de largura todos chapados
com barras de ferro. Esta bastida, mandou-a lançar a uma distância de um tiro
de pedra, diante das proas das caravelas, amarrada a seis grossas âncoras com
cadeias de ferro tão compridas que chegavam ao fundo da água, três a montante e
três a jusante. Como os castelos dos inimigos tinham bordos dos paraus e eram
de vinte e dois palmos de altura cada um (soube-se esta medida por engenho de
homens que tinha no campo do rei de Calecut) mandou fazer uns esteios de
meios mastros muito bem pregados nas amuradas das caravelas, nas cimalhas dos
quais se cerravam uns chapitéus, tipo sobrado que em cada um podiam estar seis
homens. Nesta ordem, os capitães das caravelas esperaram os inimigos e Duarte Pacheco Pereira nos batéis com
alguns paraus e gente que tinha do rei de Cochim.
A
gente que vinha por terra com o rei de Calecut, principalmente os da companhia
do senhor de Repelim, faziam tanto estrondo de gritos e instrumentos de guerra que
deram azo a que Duarte Pacheco Pereira
saísse em terra na ponta de Arraúl,
onde houve grande refrega de ambos os lados, mas aumentou tanto a gente dos
inimigos sobre os nossos que lhes foi necessário recolherem-se aos batéis.
O
rei de Calecut ficou tão indignado, sabendo que os nossos estavam na ponta,
pelejando com os seus que mandou aos principais capitães do exército que
passassem adiante e lhe trouxessem Duarte Pacheco Pereira vivo para ele (o
rei de Calecut) mandar fazer justiça
sobre o que morreram muitos dos inimigos sem poderem executar a ordem do rei de
Calecut.
Isto
tudo se fez ao romper do dia e logo daí a pouco, com a jusante da maré, a frota
de Calecut começou a descer pelo rio abaixo na ordem que acima se disse. Duarte
Pacheco Pereira que estava nas caravelas, vendo isto recolheu-se num catur aos
batéis, encaminhando-se para o passo do vau.
Chegada
a frota do inimigo que era coisa medonha de se ver, as balsas de fogo
guiadas pela corrente e barcos que as empurravam com varas foram cair sob os
mastros que estavam encadeados e ancorados diante das caravelas, às quais pela
distância o fogo não fez nenhum dano, mas antes enquanto arderam tiveram os
nossos algum repouso porque os inimigos, com medo do fogo, não ousavam aproximar-se.
Quando o fogo cessou todos os paraus e outros navios começaram a aproximar-se
da nossa jangada, atirando com a artilharia às caravelas. Os nossos respondiam-lhes, arrombando alguns dos
seus navios em que lhes mataram muita gente. Nesta altura, os castelos
chegaram à balsa, nos quais, no maior deles vinham quarenta homens e em dois
pelo menos trinta e cinco e nos cinco mais pequenos trinta homens em cada um, a
maior parte deles espingardeiros e em todos as bombardas que podiam levar.
Chegando
o maior destes castelos à balsa, começou a utilizar a artilharia e Duarte Pacheco Pereira (que no catur já
regressara às caravelas) mandou atirar com um camelo ao maior destes castelos,
mas o tiro, apesar de lhe acertar não fez entrada. Depois deste mandou atirar
outro que fez o mesmo e por isto ficou tão triste que levantou os olhos para o
céu, dizendo:
- Senhor, não tomes hoje
em conta os meus pecados. Deixa, por vossa misericórdia, o castigo dos meus
pecados para outro dia.
Isto
em voz tão alta que o ouviram muitos. Os outros castelos puseram-se a par deste
e deles lançavam tantas setas, tiros de espingardas e bombardas que tudo era uma
nuvem de fumo e fogo.
Nesta
maior pressa, estando as duas caravelas cercadas por todas as partes, tanto
pelos castelos como pelos paraus e outros navios, estando ao rubro a fúria da
peleja, Duarte Pacheco Pereira
mandou atirar outra vez com o camelo ao castelo principal. Deste tiro, como já
dos outros, ficaram-lhe abalados os fechos e agora acabaram de quebrar de todo,
levando o tiro um lanço do castelo ao mar com alguns homens, ao que os nossos, postos de joelhos, deram um grande
grito, louvando Deus pela mercê que
lhes fizera e carregando logo com mais artilharia, o castelo ficou desfeito de
todo. Contudo os outros castelos nem por isso deixavam de fazer o seu trabalho,
combatendo muito asperamente as caravelas, apesar de receberem muito dano, o que
durou até à hora de vésperas em que já começava o retorno da maré, com a qual
os castelos movidos pela força da água, começaram a afastar-se da jangada. Os
inimigos que tinham as duas caravelas cercadas com os paraus e outros navios,
vendo isto afastaram-se, tendo por escusado continuar a combater naquele dia.
Os
batéis que estavam no passo do vau, de um deles era capitão Cristóvão Lusarte e do outro batel era capitão Simão de Andrade com os paraus e catures de Cochim, em que andava Lourenço Moreno. O príncipe de Cochim
com mil naires guardava a estacada. Todos defenderam o passo dos ataques do rei
de Calecut com tanto esforço que nunca a sua gente, por muito que se
esforçasse, conseguiu passar. Estiveram nesta peleja até que a subida da maré
os fez terminar este combate que foi o mais bravo e cruel de todos os combates
que tiveram e o rei de Calecut perdeu muita gente. Dos nossos, pela graça de Deus, apesar de muitos
ficarem feridos, não morreu nenhum.=
p.134
Capítulo
XCII
De algumas coisas que
sucederam depois deste combate e de como o rei de Calecut, irritado e
envergonhado, se foi meter num turcol (casa tipo mosteiro) e se fez paz com
alguns reis e senhores do Malabar.
No
dia seguinte a este último combate, o rei
de Cochim veio visitar Duarte
Pacheco Pereira acompanhado de muitos caimães, panicães e naires e também
dos mais mouros honrados que moravam em Cochim, alegrando-se todos com ele pela
vitória que Deus lhe dera, dizendo-lhe o rei de Cochim que Duarte Pacheco
Pereira tinha feito tudo o que lhe prometera. Este respondeu-lhe que não tinha
feito tudo, pois não espetara o rei de Calecut no calvete, mas que a culpa fora
de o rei ficar sempre na retaguarda dos seus e nunca aparecer na frente, onde
ele sempre pelejara.
Feita
esta visita, o rei de Cochim regressou ao palácio e todos os dias mandava
visitar Duarte Pacheco Pereira com refrescos e coisas necessárias para a guerra
porque Duarte Pacheco Pereira nunca se quis partir daquele lugar, onde o rei de
Calecut ainda o veio atacar por duas vezes; na última vez, trazendo
novamente os castelos. Este fez isto mais para agradar aos reis e
senhores que com ele andavam do que por ter disso vontade. A sua gente andava
já tão desiludida e os nossos com todos os de Cochim tão destemidos que, com
menos trabalho do que das outras vezes, os derrotaram também nestas duas. O samorim rei de Calecut ficou tão
desanimado que, sem se preocupar mais com os outros nem confiar mais nos seus
feiticeiros e falsos profetas, no dia de
São João pela manhã, levantou o arraial e se foi meter num turcol para nele
servir os seus deuses e fazer vida de religioso, deixando o reino ao seu
sobrinho Naubeadarim.
Contudo,
antes de isto fazer, buscou modos e meios para mandar matar Duarte Pacheco
Pereira, o que foi descoberto e por isso Duarte Pacheco Pereira prendeu
alguns naires dos que estavam nesta conjuração; um deles que era espia, era de
Cochim da casa dos Leros que mandou
açoitar à sua frente para deles saber a verdade que logo confessaram e por isso
mandou-os enforcar, mas a rogo de alguns naires do rei de Cochim, que com ele
ali estavam, deixou de o fazer e mandou-os presos para deles se fazer justiça.
Depois
do samorii rei de Calecut estar no
turcol, sua mãe, induzida pelos mouros, mandou-lhe tantos recados e
admoestações, exortando-o outra vez à guerra que lhe foi forçado sair de lá
contra a sua vontade, mas isto foi de seu pouco proveito porque antes que
saísse do turcol, os outros reis e senhores que o ajudaram na guerra, entre os
quais o senhor de Repelim, mandaram pedir
paz a Duarte Pacheco Pereira que
lha concedeu por vontade e parecer do rei de Cochim, ficando o rei de Calecut
de fora.
Havendo
já quase cinco meses que durava a guerra com o samorim rei de Calecut, como se achou por contagem dos seus
escrivães, perdeu dezoito mil homens, treze mil por doença e cinco mil
nos combates e muitos tiros de artilharia e fustalha. Duarte Pacheco Pereira não quis deixar o passo do vau enquanto as
pazes não estivessem assinadas porque o pouco tempo em que se concluíram e
o pouco que confiava na verdade destes senhores do Malabar lhe fazia parecer
que era tudo enganos.
Estando
ainda ali, veio ter com Duarte Pacheco
Pereira, por via fluvial, Rui de
Araújo, escrivão da feitoria de Coulão
com cartas do feitor António de Sá
que o avisava de que os mouros da terra de Coulão, confiados na vitória que
esperavam que o rei de Calecut tivesse sobre ele, os cercaram e mataram um
homem e assim teriam feito a todos se não lhes acudissem os governadores da cidade que lhe pedia,
pois estava em paz, que chegasse a Coulão para castigar os mouros que foram
culpados porque se o não fizesse lhe seria forçado (visto as afrontas que todos
os dias recebiam deles) deixar a cidade e regressarem a Cochim.
Duarte
Pacheco Pereira, depois das pazes juradas, partiu do passo para Cochim
no dia 03 de Julho deste ano de 1504, onde deu conta ao rei de Cochim do
que se passava em Coulão. O rei de Cochim recebeu-o com grandes festas
acompanhando-o até à fortaleza Emanuel,
onde Duarte Pacheco Pereira esteve,
providenciando as coisas que diziam respeito ao seu cargo até ao dia 26 deste mês de Julho, em que partiu na sua nau para Coulão, deixando Pero Rafael em guarda da cidade de Cochim com a capitania das duas caravelas e dois batéis.
Chegando
a Coulão, Duarte Pacheco Pereira
informou-se de como tudo se passara e vendo que a execução seria muito difícil
por nisso estarem envolvidos os mouros principais da cidade, tratou do que
dizia mais respeito ao serviço do rei, pedindo aos governadores que lhe
cumprissem o contrato que fizeram com Afonso
de Albuquerque, pelo qual se obrigavam a não deixarem sair nenhuma
especiaria daquele porto até o feitor do rei Dom Manuel, seu senhor, ter feita
provisão de todas as especiarias que quisesse. Não o contrariando, Duarte
Pacheco Pereira tomou de cinco naus de mouros que estavam a carregar toda a
pimenta que já tinham posto nas naus e fez o mesmo a outras naus que carregavam
às escondidas junto daquele porto até que o feitor se abasteceu de toda a que
lhe era necessária.
Depois disto feito, fez-se à vela no início de Setembro, correndo a costa do
Malabar até à chegada de Lopo Soares de
Alvarenga à Índia. Nesta altura, tomou algumas naus que entregou com a
carga ao mesmo feitor António de Sá.
Duarte Pacheco Pereira era tão temido que nenhum rei nem
senhor de toda aquela região ousava fazer coisa que imaginasse que o iria
irritar.= p. 136
Capítulo
XCVII
Do que Lopo Soares fez
depois que chegou a Cochim e de como Duarte Pacheco Pereira veio ao seu
encontro e foram sobre Cranganor.
Poucos
dias depois de ter chegado a Cochim, Lopo Soares mandou Pero de Mendonça e Vasco de
Carvalho que saíssem com as suas naus a guardar a costa dali a
Calecut e Afonso Lopes da Costa, Pedro
Afonso de Aguiar, Leonel Coutinho e Rui de Abreu que fossem carregar as
naus a Coulão por saber que o feitor António
de Sá já tinha muita especiaria junta por engenho, trabalho e ardis de Duarte
Pacheco Pereira.
Depois
de estas naus chegarem ao porto de Coulão, Duarte
Pacheco Pereira partiu para Cochim, onde Lopo Soares o recebeu como a homem a que todo o cavalheiro tinha
obrigação de fazer muita cortesia, misturada com desejo de alcançar
alguma parte de tanta honra e glória, quanta ele tinha ganhado nas vitórias
que tivera contra o samorim rei de Calecut.
No
ataque a Cranganor, Duarte Pacheco
Pereira e Diogo Fernandes Correia,
que por ordem de Lopo Soares
desembarcaram com alguns capitães afastados dos outros, vendo os inimigos ir em
fuga sem os poderem alcançar, entraram também pela cidade e logo lhe puseram
fogo. Quando se começou a atear, saíram das casas alguns cristãos dos que ali
moravam, pedindo-lhes que o apagassem para não se queimarem as igrejas de Nossa Senhora e dos Apóstolos que na cidade havia e também
as suas próprias casas que tinham misturadas com as dos mouros, gentios e
judeus. Destes alguns correram à praia onde Lopo Soares estava com a gente que com ele ficou para guardar a
frota, a pedir-lhe o mesmo. Logo mandou acudir, mas não pôde ser com tanta
diligência que se não queimassem muitas casas por serem de madeira cobertas de
ola à maneira malabar.
Nesta altura, durante a refrega em Pandarane,
Leonel Coutinho, Duarte Pacheco Pereira, Pedro Afonso de Aguiar, Vasco Carvalho, António de Saldanha, Rui Lourenço e os demais o fizeram como
guerreiros esforçados e também Pero
Rafael e Diogo Pires com as
caravelas porque Pero Rafael foi cair com a corrente da maré na gurita de uma
das naus, donde para entrar e para se defender saiu com três homens mortos e
todos feridos.
Diogo
Pires,
encaminhando-se para as naus com uma bombarda, mataram-lhe o mestre que ia
governando. Antes que se pudesse acudir ao leme, foi dar sobre uns penedos
donde a tiraram à toa.
A viagem de regresso aconteceu e a
frota de Lopo Soares chegou a Lisboa
no dia 22 de Julho de 1505. Este ano
foi aquele em que, até ao momento, mais especiarias e outras riquezas vieram da
Índia a estes reinos porque Lopo Soares partiu de Lisboa com treze naus
e entrou com catorze, pois Duarte
Pacheco Pereira veio com a sua nau de que era capitão sob a bandeira de
Afonso de Albuquerque, partindo de Lisboa no dia 06 de Abril de 1503 e com a nau
de Diogo Fernandes Pereira foram quinze. Duarte Pacheco Pereira veio muito contra a vontade do rei de Cochim
que pediu muitas vezes a Lopo Soares que lho deixasse lá para segurança da sua
pessoa e do reino.= p.148
Capítulo
C
Em que por um padrão de brasão de armas e insígnias que o rei de Cochim deu a Duarte Pacheco Pereira se aprovam e confirmam na verdade os
notáveis feitos que fez na Índia contra o samorim rei de Calecut e também pela
honra que o rei Dom Manuel fez quando Duarte Pacheco Pereira regressou ao reino
de Portugal.
As
vitórias que Deus deu a Duarte Pacheco
Pereira contra o samorim rei de Calecut são de qualidade que, pelo tempo
adiante, se poderiam julgar como extraordinárias e disso é testemunho as honras
que o rei de Cochim lhe fez antes
que partisse da Índia e, uma vez em Lisboa, as que ele recebeu do rei Dom Manuel.
Relativamente às honrarias que recebeu do rei
de Cochim antes de partir da Índia e após as grandes vitórias que conseguiu
contra o samorim rei de Calecut. O rei de Cochim, tentando gratificar este
valoroso guerreiro pelos serviços que lhe fizera com mercês tanto de dinheiro como de joias e terras que lhe
dava no seu reino, mas que Duarte
Pacheco Pereira não quis aceitar nada, dizendo que o serviço que fizera
fora ao rei Dom Manuel e que do rei Dom
Manuel esperava o galardão.
O
rei de Cochim, vendo isto e sabendo o modo que se tem entre os cristãos da
Europa acerca dos brasões de armas
que os imperadores e reis dão em testemunho dos seus serviços, mandou-lhe um padrão de armas de que o mais
substancial é o seguinte:
Itiràmà Marnetim,
Quiluniramà, Coul, Trimumpate,
rei de Cochim, senhor de Vaipil, de Arraúl, de Chirivaipil e Narungante, brâmane mor mediante os deuses Tilaram,
Pagode aos que esta minha carta lerem, faço saber que no ano de 1504 (conta dos cristãos), no mês de Março, o rei de Calecut veio sobre a
minha terra com toda a força e poder do Malabar para me destruir por eu acolher
e favorecer os portugueses que ao meu porto arribavam.
Por
isso, os mais dos reis, Nambeadaris, caimães e outros senhores do Malabar foram
contra mim e, nessa altura, não tive outro socorro do que uma armada de
portugueses de que era capitão Duarte
Pacheco Pereira, fidalgo da Casa do rei de Portugal, meu senhor e irmão,
que me assegurou as minhas terras com muitos trabalhos, fadigas e
pelejas, em que sempre desbaratou o rei de Calecut e os que com ele e
contra mim estavam.
Havendo
respeito aos muitos serviços que ele me fez sem por isso de mim nunca querer
aceitar nada, de meu próprio moto e de minha livre vontade e poder absoluto,
por memória e sinal dos seus feitos e dos trabalhos que por mim passou nesta
guerra e por honra da sua pessoa e
dos que dele descenderem lhe dou por
insígnias e sinais dos seus feitos e honra que nisso ganhou um escudo vermelho como sinal de
muito sangue que os de Calecut derramaram nesta guerra e dentro dele lhe dou cinco coroas de ouro em quina
por sinal dos cinco reis que nesta guerra desbaratou e deste escudo dou-lhe a bordadura branca com ondas azuis
e oito castelos de madeira verde
nela armados na água sobre dois navios rasos cada castelo. Por duas vezes que o
combateram com estes oito castelos e de ambas as vezes os desbaratou. Dou-lhe sete bandeiras de ponta ao redor
deste escudo: três vermelhas, duas brancas e duas azuis por sete combates que o
rei de Calecut lhe deu em pessoa e em todos os sete o desbaratou e por sete
bandeiras que lhe tomou das mesmas cores e desenho.
Dou-lhe
um elmo de prata aberto
guarnecido de ouro e o paquife de
ouro e vermelho e por timbre (carimbo,
selo) um castelo do mesmo teor e nele uma bandeira vermelha de ponta. Estas insígnias e armas ele poderá usar
com as da sua linhagem ou sem elas, como ele quiser, com a dita bordadura ou
sem ela como melhor lhe parecer porque eu de meu próprio moto e livre vontade e
poder absoluto lhas dou como está afirmado a
ele e aos seus descendentes pelos muito grandes e assinaláveis serviços que
me tem feito como acima declarei e por sua
guarda e minha lembrança, mandei
que esta carta fosse escrita e por mim assinada. Chiricandà, escrivão dos seus bens a escreveu em Cochim, no dia dois do mês de Agosto de 1504 (conta
dos cristãos). Foi este padrão de
armas traduzido da língua malabar para a língua portuguesa por Álvaro Vaz, escrivão da feitoria de
Cochim e em acordo com o mesmo Chiricandà.
No
que respeita à grande honra que o rei Dom Manuel fez a Duarte Pacheco Pereira
quando regressou ao reino de Portugal foi a seguinte:
Na
quinta-feira seguinte à chegada da armada de Lopo Soares ao porto de Lisboa,
mandou fazer uma procissão solene da
maneira que fazem as procissões do Corpo de Deus e o rei foi da sé até ao mosteiro de São Domingos, levando Duarte Pacheco Pereira à sua ilharga, junto
consigo, onde o bispo de Viseu, Dom
Diogo Ortiz fez uma pregação em que relatou tudo o que acontecera a
Duarte Pacheco Pereira na Índia e o mesmo mandou fazer por todo o reino e o
escreveu aos mais dos reis e príncipes cristãos. Isto quer dizer que o
rei Dom Manuel integrou Duarte Pacheco
Pereira na Casa da Coroa,
mostrando-o a toda a gente nesta procissão e missa solene e comunicou este
facto a todas as Casas Reais cristãs.
O
fim destas honras, em galardão de tantos serviços e de outros que Duarte
Pacheco Pereira depois fez ao rei Dom Manuel foi de qualidade que dele se pode
tomar exemplo para os homens se guardarem dos reveses dos reis e príncipes e da
pouca lembrança que muitas vezes têm a quem estão em obrigação.
Outra
mercê que Duarte Pacheco Pereira recebeu pelo prémio de tais serviços foi a capitania da feitoria de São Jorge da Mina
donde, por capítulos que dele deram (informações secretas de
gente maldosa, invejosa e mal-intencionada),
o rei Dom João III mandou-o trazer ao reino de Portugal em ferros e sem lhos tirarem dos
pés, esteve muito tempo preso na cadeia até que, por se saber serem parte das
culpas que lhe atribuíam falsas e as
outras tão leves que, num tão valoroso homem, não podiam ter o nome de culpas, o
soltaram.
A 4 de Julho de 1522 é enviada carta de nomeação de D. Afonso de Albuquerque para capitão
da cidade de São Jorge da Mina (ANTT, Chancelaria de D. João III. Doacões, L.°
51, fl. 184v). Publicada por BASTO in PACHECO PEREIRA ed. 1892, doc.to XVII, p.
XXII-XXIII, e por BLAKE 1942, I, 132-133 (tradução inglesa). Afonso de Albuquerque é nomeado pelo tempo do regimento régio e pela maneira por que o foi Duarte
Pacheco, que é notificado a fazer a entrega da fortaleza e de tudo o que nela
há quando lhe for presente esta carta.
Duarte Pacheco Pereira sai da cidade de São Jorge da Mina em Agosto de 1523, preso para Portugal. Teve esta capitania durante três anos de 1519 a 1522.
Tão
pobre como era quando foi para São Jorge
da Mina assim viveu todo o resto da sua vida em Lisboa com muito desgosto e
em tanta pobreza que o seu filho único legítimo, João Fernandes Pacheco e sua mãe que actualmente vivem, por ele não
lhes deixar bens para se poderem manter como devem, passam tantas dificuldades
que são constrangidos a viver, ele não vivendo como os seus próprios serviços
(além dos do seu pai) merecem e a mãe vivendo do pouco que o filho lhe pode dar
e esmolas que lhe fazem pessoas honradas,
certamente só o rei de Cochim e seus intermediários.
Duarte Pacheco Pereira foi tripulante da nau de Pero de Ataíde na armada de Pedro Álvares Cabral, foi capitão de uma nau na capitania de Afonso de Albuquerque, teve a capitania de uma pequena armada portuguesa em Cochim e a capitania da feitoria de Cochim e, por último, teve a capitania da feitoria de São Jorge da Mina.
Este foi o galardão que teve em satisfação de tão grandes e memoráveis serviços como foram os que fez à Coroa destes reinos de Portugal.= p.150.
Duarte Pacheco Pereira foi tripulante da nau de Pero de Ataíde na armada de Pedro Álvares Cabral, foi capitão de uma nau na capitania de Afonso de Albuquerque, teve a capitania de uma pequena armada portuguesa em Cochim e a capitania da feitoria de Cochim e, por último, teve a capitania da feitoria de São Jorge da Mina.
Este foi o galardão que teve em satisfação de tão grandes e memoráveis serviços como foram os que fez à Coroa destes reinos de Portugal.= p.150.
Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal
Lagos, 12 de Junho de 2017
ANEXOS
Sem comentários:
Enviar um comentário