segunda-feira, 6 de março de 2017

Pedro Álvares Cabral e a Segunda Viagem à Índia

PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA

sobre “Pedro Álvares Cabral e a segunda viagem até à Índia: 1500-01”

CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes e encomendada por Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF - pp. 79 – 94  


Capítulo LIV
            Da segunda armada que o rei Dom Manuel mandou à Índia de que foi por capitão Pedro Álvares Cabral.

Chegado Nicolau Coelho da Índia, pela informação que deu ao rei Dom Manuel da terra e qualidade da gente, este determinou mandar lá uma armada de treze velas e deu a sua capitania a Pedro Álvares Cabral e por capitão da nau de retaguarda Sancho de Thoar. Os outros capitães eram Simão de Miranda, Aires Gomes da Silva, o mesmo Nicolau Coelho, Nuno Leitão, Vasco de Ataíde, Bartolomeu Dias que descobriu o cabo da Boa Esperança, Pero Dias, seu irmão, Gaspar de Lemos, Luís Pires, Simão de Pina, Pero de Ataíde, de alcunha “Inferno” e por feitor da armada Aires Correia que havia de ficar em Calecut por feitor e escrivães a seu cargo Gonçalo Gil Barbosa e Pero Vaz Caminha.
O rei Dom Manuel mandou apetrechar estas naus de todas as coisas necessárias a feito de guerra porque já sabiam que haviam de ter disso necessidade pelas questões que aconteceram a Dom Vasco da Gama tanto na Índia como na costa da Etiópia, para a qual iam mil e quinhentos soldados.
No memorandum que o rei Dom Manuel entregou a Pedro Álvares Cabral um dos pontos mais importantes era:
- trabalhar muito pela amizade do rei de Calecut;
porque a vontade do rei Dom Manuel era fazer uma fortaleza naquela cidade onde os nossos e oficiais estivessem protegidos dos da terra e mouros e pudessem fazer as coisas que cumprissem ao seu serviço (do rei de Portugal) e que, quando não achassem no rei de Calecut vontade de o querer por amigo, em tal caso, da sua parte, lhe declarasse guerra e a fizesse. Também lhe mandou:
- trabalhar muito para tomar Melinde, dar ao rei o presente que lhe mandava, entregar o seu embaixador e oferecer-lhe a sua amizade para o que de si se cumprir;
E porque o rei Dom Manuel foi sempre muito inclinado às coisas que tocavam a nossa santa fé católica mandou, nesta armada, oito frades da Ordem de São Francisco, homens letrados, de que era vigário frei Henrique que depois foi confessor do rei e bispo de Septa.  A eles, com oito capelães e um vigário, ordenou que ficassem em Calecut para administrarem os sacramentos aos portugueses e aos da terra que se quisessem converter à fé.
Pronta esta armada e estando já no Restelo, o rei foi ao mosteiro de Belém, onde mandou dizer missa pontifical, tendo consigo, dentro do cortinado, Pedro Álvares Cabral. Houve pregação que fez o bispo de Septa, Dom Diogo Ortiz que depois foi bispo de Viseu, castelhano de naturalidade, animava todos aos trabalhos que iam tomar ao serviço de Deus e do seu rei, apontando aos capitães e aos outros fidalgos que iam na armada muitos louvores dos seus antepassados com que não tão somente fez inveja aos que ficavam no reino, mas antes os incitou a quererem muitos deles fazer esta viagem se o tempo lhes desse para isso lugar.
Acabada a missa, o bispo benzeu uma bandeira em que estavam pintadas as armas reais do reino que, depois de benzida, o rei entregou por sua própria mão a Pedro Álvares Cabral. Entregue a bandeira, o rei acompanhou Pedro Álvares até aos batéis das naus que os estavam esperando na praia, onde com os outros capitães e gente nobre lhe beijaram a mão e se despediram do rei Dom Manuel.

Capítulo LV
  De como a frota partiu do porto de Belém e do descobrimento da terra de Santa Cruz, a que chamam Brasil.

No dia seguinte, dia 09 de Março de 1500, partiu a frota do porto de Belém, com bom vento da foz a fora e no dia 14, avistaram as ilhas Canárias e no dia 22, com vento favorável, passaram pela ilha de Santiago adiante, onde se apartou da frota, devido a tormenta, a nau de que era capitão Luís Pires que chegou a Lisboa desorientada. Por causa desta nau, andou Pedro Álvares Cabral dois dias, buscando-a com toda a armada, mas vendo que não aparecia, seguiu a sua viagem e navegando a leste, no dia 24 do mês de Abril, viram terra e ficaram muito alegres porque, pelo modo como estava situada, viram que não era nenhuma das que eram descobertas. Pedro Álvares Cabral mandou fazer rumo na sua direcção e como foram bem à vista, mandou ao seu mestre que fosse a terra no esquife. Este regressou logo com notícias de ser muito fresca e viçosa. Vira andar gente baça, de cabelo comprido e liso, nua pela praia com arcos e flechas nas mãos. Pedro Álvares Cabral mandou alguns capitães armados irem nos batéis ver se era mesmo assim. Estes, sem saírem a terra, voltaram à nau-capitã e afirmaram ser verdade o que o mestre dissera.
Quando já estavam ancorados, durante a noite, levantou-se um temporal e assim navegaram ao longo da costa até encontrarem um porto muito bom, onde Pedro Álvares Cabral surgiu com as outras naus e por isso lhe chamou Porto Seguro. Ancorada a frota, Pedro Álvares Cabral mandou alguns dos capitães nos esquifes ver a terra. Estes logo voltaram com dois homens que estavam pescando numa almádia. Por eles, quis informar-se da qualidade da terra, mas achou-os tão bárbaros que, além de não haver intérprete que os entendesse nem por acenos sabiam dar sinal do que se lhes perguntava. Apesar disso, Pedro Álvares Cabral mandou dar-lhes de vestir, também dar-lhes cascáveis, manilhas de latão, espelhos, brincos e deslumbrados, fê-los pôr em terra. Estes, contentes do bom acolhimento que tiveram, voltaram logo à frota com outros, carregados de milho, farinha, favas e outros legumes e frutas da terra que davam a troco de papel, pano de linho, cascáveis, espelhos e outras coisas deste género.
Achando Pedro Álvares Cabral tanta familiaridade e simplicidade nesta gente, ordenou que, no dia seguinte, frei Henrique fizesse missa em terra, onde, em amanhecendo, mandou armar um altar debaixo de uma árvore muito frondosa. A missa foi de diácono e subdiácono, oficializada com todos os frades, capelães das naus e sacerdotes que iam na armada e outras pessoas que entendiam de canto. Houve pregação, estando presentes muitos dos da terra a todo o ofício divino com grande espanto e encantamento.
Acabada a missa, Pedro Álvares recolheu-se aos batéis com toda a gente, acompanhando-os os da terra com grandes festas, cantares, saltos e trejeitos que faziam em sinal da alegria, tangendo chifres e buzinas, lançando flechas para o ar com outras mostras de contentamento, levantando as mãos ao céu como que agradeciam a Deus pela mercê que lhes fizera em lhes deixar ver gente daquela qualidade, no que iam tão enlevados que muitos deles seguiram os batéis até a água lhes dar pelos peitos, outros nadando e alguns em almádias até chegarem às naus.
Neste Porto Seguro, fizeram as naus aguada, foram abastecidas de carne e tomaram outros mantimentos e refrescos que os da terra davam por coisas de pouca valia. Estando ali a armada, o mar lançou um peixe na praia mais grosso do que um tonel e tão comprido como dois tonéis, a cabeça e os olhos como os de um porco, sem dentes, as barbatanas parecidas às orelhas de um elefante e o rabo de um côvado de comprimento e outro de largura, a pele como a de porco da grossura de um dedo.
Antes que Pedro Álvares partisse deste lugar, mandou pôr em terra uma cruz de pedra como por padrão, a que chamou Santa Cruz, com que tomava posse de toda aquela província para a coroa dos reinos de Portugal, apesar de agora (erradamente) se chamar Brasil por causa do pau vermelho que dela vem. Pedro Álvares Cabral despachou para o reino Gaspar de Lemos com a sua nau com as novas deste descobrimento e um dos homens da terra ao rei Dom Manuel. Também deixou na terra dois degredados dos vinte que levava e partiu dali com a sua armada no dia dois do mês de Maio, tomando a sua rota para o cabo da Boa Esperança. =        p. 81     

Capítulo LVI
Algumas particularidades da terra de Santa Cruz e costumes da sua gente.

Esta terra de Santa Cruz que está situada na demarcação e conquista destes reinos de Portugal, com que a descobriram; os reis de Castela conquistam aquela a que chamam Antilhas e Perú. São tão grandes como tantas outras províncias juntas a elas. Correndo de norte a sul, que por sua grandeza lhe puseram os cosmógrafos deste tempo por nome, mundo novo, as descrições do sítio e clima, das quais deixarei aos mesmos cosmógrafos cujo ofício o é e eu, seguindo o que toca ao meu, direi algumas particularidades desta província de Santa Cruz e dos costumes da gente de que é habitada.
A terra é muito viçosa, muito temperada e de muito bons ares, muito sadia, tanto que a maior parte da gente que morre é de velhice mais do que de doenças. Tem muitas e grandes ribeiras e muitos bons portos e muitas fontes de muito boas águas. O restante da terra é de montes e vales, cheia de bosques em que há árvores incalculavelmente fortes, entre as quais é a árvore do bálsamo e o pau-brasil. Há muitas ervas odoríferas e medicinais, diferentes das nossas, entre as quais a que chamamos do fumo e eu chamaria erva santa, a que dizem que eles chamam de betum, de cuja virtude poderia pôr aqui coisas milagrosas, de que eu via a experiência, principalmente em casos desesperados de apostemas ulceradas, fístulas, cancro, pólipos, nervosismo e muitos outros casos. Esta erva trouxe primeiramente a Portugal Luís de Goes que depois de ficar viúvo foi para a Índia com a Companhia de Jesus.
A gente desta província é baça, de cabelo preto, liso e comprido, sem barba e de meia estatura. São bárbaros que não crêem em nada e não adoram. Não sabem ler nem escrever, não têm igrejas nem usam imagens de nenhum género frente às quais possam idolatrar. Não têm lei nem peso nem moeda nem rei nem senhor; obedecem somente àqueles que, nas guerras que têm uns com os outros, são mais valentes e escolhem-nos para chefes, enquanto não cometem cobardia. Andam nus e se alguns se cobrem são os nobres com vestidos que fazem de penas de papagaio e outras aves de diversas cores, tecidos com fios de algodão. Os vestidos são umas fraldas que lhes chegam da cintura aos joelhos e barretes e umas tiras ou capelas que põem ao redor dos braços como manilhas, tudo das mesmas penas. As mulheres deixam crescer os cabelos e os homens cortam-nos da sua fronte até ao meio da cabeça. Os que se presumem de galantes trazem nas orelhas, lábios, narizes e faces furados e nos buracos ossos de alimárias e pedras de diversas cores muito bem polidas por pendentes e outros que fazem de uma das árvores que fundem e ficam da dureza e cor do alambre muito fino. Tudo fazem para assim parecerem mais ferozes e para acrescentar esta ferocidade pintam os corpos de muitas cores, tanto os homens como as mulheres que não trazem pendentes de pedra nos lábios e faces, mas sim contas muito finas que fazem de uns búzios grandes que há no mar que elas estimam muito e deles fazem também pendentes e luas que trazem nas orelhas e ao pescoço por adorno.
São grandes flecheiros, tanto que em qualquer parte do corpo de um homem ou animal, por pequeno que seja, a que apontam, ferram sem quase nunca errarem.
No ano de 1513, estando o rei Dom Manuel, em Santos o Velho, tendo despacho numa casa de madeira que lá havia, na ponta do cais, posta sobre a água, Jorge Lopes, bixorda, que naquele altura tinha o negócio do pau-brasil que trazem desta terra de Santa Cruz, veio falar ao rei e com ele três homens desta província, assaz bem dispostos que então vieram numa nau que de lá chegara e que vinham vestidos de penas com as faces, lábios, narizes e orelhas cheios de grossos pendentes, tudo como acima está escrito. Cada um deles trazia seu arco e flechas; vinha com eles um homem português que sabia a língua deles e por quem o rei lhes fez perguntar algumas coisas e quando falaram na destreza que têm no atirar, disseram que se Sua Alteza o queria ver que imediatamente lho mostrariam.
A maré vazava, nesta altura, e vinham pelo rio abaixo alguns pedaços de cortiça do tamanho da palma de uma mão ou pouco mais. Contra estes pedaços logo armaram os arcos e a quantos pedaços atiraram, indo pela água abaixo, espetaram em cada um a sua flecha sem errarem nenhum tiro, o que eu vi porque estava na mesma casa quando isto se passou. Os arcos são de pau-brasil e as flechas de canas empenadas com penas de papagaio, as pontas são de pau e osso de peixe tão fortes que passam com elas uma tábua.
Alimentam-se principalmente de papagaios e caracóis que há muitos na terra e muitas outras aves e alimárias. Comem também lagartos, cobras, ratos e outros animais venenosos.
Pescam em almádias feitas de casca de árvores, em que navegam e algumas delas são tão grandes que cabem nelas trinta a quarenta homens. A sua maneira de pescar não é com redes, mas sim com cabaços que metem dentro da água; uns vão remando as almádias e os outros batem na água com paus. O peixe amedrontado busca a superfície da água e os que têm os cabaços metidos na água tentam apanhar os peixes e assim apanham quantos peixes querem. Comem pão feito de umas raízes brancas semelhantes às cenouras a que chamam mandioca. Estas são tão venenosas que se alguém as come cruas morre subitamente. Eles pisam estas raízes nuns almofarizes grandes de pedra e depois de bem pisadas, espremem-lhe o sumo que é por si muito mais venenoso do que a raiz e depois de o terem bem espremido põem a massa a secar em cestos que para isso têm e depois de seca, moem-na para obter a farinha a que chamam caistus de que fazem um pão tão saboroso que os nossos portugueses o comem com mais gosto do que pão de muito bom trigo; usam também pão de milho.
Há na terra muitas favas, feijões e outros legumes de muitas cores que comem. Não têm vinhas, mas fazem vinho de milho e da mesma farinha caistus que é como cerveja ou cidra e bebem e embebedam-se amiúde e depois de bêbados são muito traidores e maliciosos.
Há também na terra muito algodão que as mulheres fiam e de que fazem cordas e redes que usam para dormir no ar penduradas em paus ou árvores. Do algodão não fazem panos porque não sabem tecer.
São muito dados a agouros, feitiços e deste ofício há entre eles homens e mulheres a quem chamam pagés e crêem em tudo o que eles lhes dizem e têm-nos em muita estima e consideração. Os pagés trazem uma cabacinha feita como cabeça de homem com boca, nariz, olhos e cabelos posta sobre uma flecha e dentro da cabacinha fazem fumo com folhas secas da erva betum e do fumo que sai da cabeça, tomam eles pelo nariz tanto que com ele se embebedam e depois de bem torvados fazem jeitos e cerimónias como se estivessem endemoniados, dizendo o que lhes dá vontade ou o que o diabo lhes ensina; tudo o que então dizem, os presentes crêem e têm por coisa certa.
Estando assim neste desatino, ameaçam muitos de morte e em qualquer tempo depois, estes morrem. Os outros dizem que viveria muito mais se o pagés não o tivesse ameaçado. A qualquer lugar onde o pagés vá, fazem-lhe uma grande festa e recebem-no com danças e cantares e dão-lhe tudo o que acham adequado. Além disto, abrem-lhe caminhos ou consertam os que já existem por onde ele passa e por festa cedem-lhe as mais formosas mulheres da terra, casadas e solteiras.
No casamento, não têm mãe, grau de parentesco só do pai e filhas, irmão e irmã. Daqui para baixo, casam todos sem diferença; os casados, sempre que querem, deixam as esposas e tomam outras e se enquanto as têm em casa, estas cometem adultério, matam-nas ou vendem-nas. Quando as mulheres dão à luz bebé, no mesmo dia se vão lavar ao rio ou fontes e fazem logo todos os serviços ordinários de casa e os maridos lançam-se nas redes que são as suas camas, onde estão certos dias e os parentes e amigos vão dar-lhe o profaça do filho ou filha que lhes nasceu. O pai não tem poder sobre as filhas, mas sim os irmãos que as casam com quem querem e vendem quando têm necessidade. O que vendem não é por dinheiro, pois não têm moeda nem fazem dela conta, mas sim a troco de outras coisas que acham adequadas. Estimam muito pouco as mulheres e têm-nas como escravas para delas se servirem e são comuns a todos, excepto as casadas enquanto o são.
O casamento deles não é mais do que estarem homem e mulher numa só casa. Não usam a boda nem cerimónias matrimoniais quando assim se juntam em casal. São comummente folgazões e muito alegres porque, como não têm guerra, ocupam o seu tempo a bailar, comer e beber.
Têm um certo género de dança em que andam todos ao redor quase como as rodas da Flandres sem saírem do lugar e começam cantando todos por um tom, cantigas em que contam as suas valentias e feitos de guerra, dando muitos assobios e fazendo um grande estrondo com os pés. Ao redor desta ronda andam outros que dão de beber aos dançantes sem cessarem de noite e de dia, embebedando-se todos ou a maior parte.
As casas onde vivem são muito compridas, feitas de madeira, cobertas de colmo, muradas ao redor duas e três vezes com paus e estacas muito fortes por causa de terem sempre guerra, uns vizinhos com os outros e nestas casas vivem muitos juntos; os casados têm seus compartimentos e os outros vivem em comum. Todos os que vivem dentro de uma casa destas se têm por irmãos e assim se chamam e morrem uns pelos outros como se fossem verdadeiros irmãos do mesmo pai e mãe.
Estes homens não fazem guerra por cobiça de riquezas nem menos para conquistarem territórios porque tudo isto estimam muito pouco. Fazem-na por serem desacatados pelos seus vizinhos. Quando vão começar alguma guerra, juntam-se numa casa quatro ou cinco dos mais velhos, daqueles que, sendo mancebos, deram mostras de valentes e foram bons capitães. Depois de sentados em coroa, pondo seu vinho ou beberagem no meio, cada um bebe o que quer. Enquanto assim estão, ninguém ousa falar-lhes ou aproximar-se deles e o que ali concluem é o que os outros hão-de fazer sem lho poderem contrariar. São tão obedientes ao que estes mais velhos decidem e ordenam no Conselho que ainda que saibam que a executam e isso lhes há-de custar a vida, não deixarão de pôr em marcha o que estes lhes ordenaram.
Começa entre eles a guerra, na maior parte das vezes, nos meses de Fevereiro e Março e porque a terra é de muitas ribeiras, a guerra ocorre em almádias a que eles chamam canoas. Levam consigo mulheres para lhes guisarem o comer e farinha somente porque todos os dias saem em terra a caçar e dormir e da caça que matam e peixe que apanham se mantêm e, sem outra provisão, correm ao longo da costa quarenta e cinquenta léguas, fazendo suas entradas e assaltos nas povoações dos inimigos. Elegem por capitão o mais valente e esforçado de entre eles. Este governa-os enquanto não comete cobardia porque se o faz, fica desacreditado entre eles para sempre. Este capitão, antes que partam para a guerra anda, todos os serões e manhãs, pregando e bradando ao redor das casas, animando-os para a guerra e ensinando-os como se hão-de aperceber do inimigo e o que hão-de fazer e levar consigo, declarando-lhes que homens são aqueles com quem hão-de ir pelejar e que manhas têm e modo de fazer guerra, contando-lhes também as suas próprias façanhas e valentias e quantos homens matou na guerra e como fez isso.
A maneira mais frequente de guerrear desta gente é de assalto e ciladas para atacarem os outros quando estão desprevenidos. São tão destros no atirar que, nas guerras que têm com os portugueses, metem-lhes as flechas pelas junturas das armas, pelo que os portugueses se acostumaram a uns laudéis (vestimenta antiga) de pano de linho que os cobre da cabeça aos pés, embutidos de algodão tão grossos que as flechas embaçam (ficam presas) neles, mas os flecheiros agora, por causa disto, já não lhes atiram, senão aos olhos e são nisso tão certeiros que matam muitos.
Além dos arcos e flechas, usam umas espadas de pau muito duro e pesadas, com as quais, onde acertam do primeiro golpe, partem qualquer membro em que tocam. Os que matam na guerra e alguns dos que aprisionam, principalmente os velhos, comem logo e os outros vendem ou levam presos em cordas com que todos entram triunfantes pelos lugares onde moram, mas a carne humana que comem não é entre eles coisa igual porque não comem senão a dos que aprisionam e têm por inimigos. Os que lhes morrem na guerra, enterram-nos no mesmo lugar e se é perto de suas povoações, levam-nos consigo para lá os enterrarem, no que há grandes choros, lamentações e por dó tanto os homens como as mulheres rapam a cabeça sobre as sepulturas e fazem fogueiras, comem e bebem em certos dias em que aos convidados contam as façanhas e proezas do defunto.
Aos cristãos que capturam, se têm barba ou cabelos, rapam-lhe os da cabeça e arrancam-lhe a barba como todos os outros pêlos do corpo. Aos que capturam na guerra dão mulheres para os servirem e dormirem com elas e se delas tiverem filhos, os senhores os vendem ou comem. Tratam muito bem estes prisioneiros de comer e beber e as mulheres que os servem trabalham para lhes dar boa hospitalidade.
Quando querem fazer alguma festa, matam um destes prisioneiros e a mulher com que teve coabitação, ainda que dele tenha filhos, é a primeira que lhe lança uma corda ao pescoço. Depois os homens atam outras cordas pelo meio do corpo, braços e pernas e assim o amarram a um pilar no meio da casa e o pintam e empenam de penas de aves. Para estas festas fazem muita bebida alcoólica e juntam muita caça para se banquetearem todos os que a ela vêm e ao mesmo prisioneiro desatam-no do pilar algumas vezes e atado com a corda que tem pela cintura, fazem-no bailar e alegrar-se com a bebida alcoólica que lhe dão amiúde. Isto dura três dias, em que não fazem outra coisa que comer, beber e bailar. Depois disto, levam o prisioneiro a um curral, solto dos pés, braços e mãos e as mulheres e meninos têm-no seguro por cordas que lhe ficam atadas na cintura, atirando-o de uma parte para a outra, arremessando-lhe laranjas e outras frutas que ele apanha do chão e pode atirar-lhas de volta assim como pedras que possa apanhar se as houver no chão e por todo o caminho vão dando de beber ao prisioneiro que, por isso, vai muito alegre e também os que o levam vão bebendo, cantando e saltando e desde que saem de casa até chegarem ao lugar onde se fará a execução vão dizendo ao condenado muitas injúrias e que o hão-de comer por vingança dele e de todos os seus parentes e amigos. Ele responde muito alegre:
- Isso não me interessa mesmo nada e morro com muito esforço como o deve fazer um homem valente. Se me vão matar também eu já matei e comi muitos dos vossos. Também vou consolado porque tenho irmãos e parentes que hão-de vingar a minha morte.
Depois de chegados ao curral, vem o que o teve preso, bailando contra ele todo pintado com uma gorjeira de penas de cores que cobre todo o pescoço e parte dos ombros e com uma espada grande de pau na mão cheia também de penas, gritando e assobiando contra o preso para o ferir, mas ele faz o que pode para lhe tirar a espada das mãos, estorvado pelas mulheres e meninos que puxam por ele com as cordas de uma parte para a outra até que o da espada o fere à sua vontade e lhe faz saltar o cérebro fora da cabeça porque este é o derradeiro golpe que lhe dá nem lhe pode dar mais, segundo o seu costume.
Depois corta-lhe a cabeça, as mãos e todo o resto do corpo as mulheres lançam para uma fogueira que para isso fizeram, onde o chamuscam como a um porco e depois de bem chamuscado, abrem-no com uma cana muito aguda como faca e lhe tiram as vísceras que, chamuscadas no mesmo fogo, são comidas pelas mulheres e meninos. Os homens talham a carne do corpo em postas e mandam-nas de presente uns aos outros. Com esta carne, em sinal de vingança, fazem maiores festas e bebem muito mais daquele seu vinho ou bebida que antes tinham feito.
Há nesta província de Santa Cruz uma gente a que chamam papanazes que vivem nos desertos com mulheres e filhos. Não têm casas nem lugares nem camas nem redes para dormirem; vivem de roubos e rapina. A maior parte deles são homens de estatura mediana, andam nus; antigamente foram senhores de toda aquela terra e, por guerras, os que habitam ao longo de toda aquela costa de mar os lançaram dela, pelo que são seus inimigos principais. Fazem guerra contínua e dura a todos os que vivem em casas. Têm língua própria, mas entendem-se bem uns aos outros. Usam o mesmo modo de comer os prisioneiros. Os papanazes não fazem justiça por nenhum delito, excepto por homicídio que é deste modo. Os parentes do homicida vão entregá-lo aos parentes do morto que o afogam e enterram, presentes uns e outros (os parentes do homicida e do morto) com muitos prantos e choros, comendo e bebendo por muitos dias e assim ficam amigos e se, por acaso, o homicida foge e se não pode fazer entrega dele aos parentes do morto, então dão-lhes as filhas e irmãs do homicida ou se as não tem, as parentas mais chegadas do homicida por prisioneiras dos parentes mais chegados do morto e assim ficam amigos.
Desta gente tão bárbara e tão inculta há já muitos que se converteram à fé de Nosso Senhor Jesus Cristo e que são aliados por casamento como nós e vivem do mesmo modo que nós vivemos.=        p. 85

   Capítulo LVII
Do que Pedro Álvares Cabral passou depois que partiu da terra de Santa Cruz até chegar a Calecut e do sítio da ilha e cidade de Quíloa.

Pedro Álvares Cabral partiu da terra de Santa Cruz a um domingo, dia 24 de Maio, e armou-se um furacão, seguido de uma trovoada com tanta força de vento e tão de súbito que, à vista uns dos outros, desapareceram quatro naus, sem delas escapar coisa viva e eram seus capitães Bartolomeu Dias, Aires Gomes da Silva, Vasco de Ataíde e Simão de Pina. As sete naus que ficaram apartaram-se umas das outras e andaram a tentar juntá-las até ao dia 16 de Julho em que se juntaram seis porque a de Pero Dias foi ter ao Estreito da Arábia e à cidade de Magadoxo, donde regressou ao reino de Portugal só com seis homens, depois de ter passado muitos perigos e trabalhos.
Estas seis naus, depois de terem dobrado o Cabo da Boa Esperança foram lançar âncora defronte de uma terra fresca, de muitas ribeiras, arvoredos e animais, mas nenhum dos naturais ousou vir às naus nem da praia quiseram comunicar com os nossos nem lhes vender mantimentos de que (os nossos) tinham muita necessidade pelo que se fez à vela e, navegando ao longo da costa com vento de bonança, foram dar a Sofala até estarem junto de duas ilhas que estão perto de terra firme a que agora chamam as primeiras. Junto de uma delas estavam duas naus que Pedro Álvares, por estas levantarem âncora, seguiu e as tomou sem estas se defenderem. O senhor destas duas naus chamava-se xeque Foteima, tio do rei de Melinde, que vinha de Sofala com muito ouro que fora resgatar com os da terra e, com medo das nossas naus, cuidando que eram corsários, se aquietava e Pedro Álvares, sabendo que estava em frente de Sofala e o modo da terra e o trato dela o deixou no mesmo lugar em que o tomaram com suas naus, ouro e mercadorias que trazia e se partiu a caminho de Moçambique onde chegou no dia 20 de Julho e fez aguada pacificamente, comprando mantimentos e pilotos até à ilha de Quíloa.
Neste caminho, indo sempre ao longo da costa, viu muitas ilhas e muito bem aproveitadas, todas do senhorio do rei de Quíloa, cujo reino vai desde o Cabo das Correntes até perto da cidade de Mombaça que são quase quatrocentas léguas de costa, além de muitas ilhas situadas ao longo dela que rendem muito ao rei.
Este rei e os naturais e moradores da ilha são da religião de Maomé; a maior parte negros e alguns deles baços. Falam todos árabe, andam muito bem vestidos no trajar mourisco e turco. Têm negócios por toda aquela costa até ao Estreito do mar da Arábia. A cidade e ilha de Quíloa estão a cem léguas de Moçambique e muito perto de terra firme. A ilha é muito viçosa de frutas, hortaliças e boas águas. Há pelo sertão muitos animais de grande porte e pequeno e muita caça e montaria e no mar muitos e bons peixes. É uma terra muito fértil de sementeiras.
A cidade é grande e muito populosa; as casas são de pedra e cal, de muitos sobrados e de terra batida, muito bem guarnecidas e caiadas na parte de dentro e de fora e muito bem decoradas por a gente da terra ser rica. As naus em que navegam são de cavilha, cozida com cairo, breadas com incenso bravo por na terra não haver breu.
Depois de Pedro Álvares Cabral ter chegado a Quíloa, que aconteceu no dia 26 de Julho, fez saber ao rei, que se chamava Abraemo, da sua vinda e que lhe trazia cartas do rei, seu senhor, e que se queria encontrar com ele para lhas dar. Pedia-lhe que ordenasse onde isto poderia acontecer porque ele não podia sair a terra por assim o seu rei ter estabelecido.
Mandou Afonso Furtado com este recado que tinha a função de escrivão da feitoria que se havia de fazer em Sofala e com ele sete dos mais bem vestidos da frota para o acompanharem.
O rei ficou muito satisfeito por os ver e fez-lhes bom acolhimento, respondendo a Pedro Álvares Cabral:
- A vossa vinda é muito boa. Agradeço a Deus por ver gente de terras tão distantes das minhas neste meu porto e de um rei e senhor tão poderoso como me informaram que é o rei de Portugal. Se não nos podemos encontrar em terra, pois que nos encontremos no mar.
Com este recado para Pedro Álvares Cabral, enviou também muitos refrescos por um dos principais da sua casa, informando também que se podiam encontrar no dia seguinte.
No dia seguinte, todos os capitães se puseram de trajo de festa, cada um em seu batel, encaminhando-se para a cidade, donde o rei já partira, acompanhado de almádias com gente vestida de panos de tela de ouro, brocados escarlates e outros de seda e algodão, todos com terçados cingidos, punhais e agomias ao lado deles de ouro e pedraria muito valiosas. Tangiam muitas buzinas, anafis, trombetas e outros instrumentos e dos batéis respondiam-lhes com as nossas e das naus que estavam engalanadas, com artilharia.
Nesta altura, o rei de Quíloa na sua almádia e Pedro Álvares Cabral no seu batel se juntaram bordo a bordo, onde depois de feitas as cerimónias e cortesias requeridas, lhe deu as cartas que levava do rei Dom Manuel, escritas em árabe e em português. O rei de Quíloa logo fez ler as cartas em árabe e mostrou grande contentamento pelo seu conteúdo, fazendo grandes oferecimentos a Pedro Álvares Cabral afirmando:
- De agora em diante, tenha-me por irmão e aliado do rei de Portugal. Ter um tão grande e poderoso rei por irmão e amigo faz-me muito ditoso.
Ainda estiveram um bom pedaço com outras conversas e antes da despedida, ordenaram que, no dia seguinte, Afonso Furtado fosse a terra para com ele estabelecer a paz e amizade.
Tudo aconteceu ao contrário porque o rei de Quíloa, induzido pelos mouros, quando Afonso Furtado lhe foi falar, achou-o mudado, dando desculpas mais cheias de ódio do que de amizade. Contudo, parecendo a Pedro Álvares Cabral que esta atitude poderia mudar, esteve ali ainda três dias, mandando-lhe sempre recados de amigo, mas sabendo por Molei Homar, irmão do rei de Melinde que ali estava, naquela altura, como o rei de Quíloa mandava fortalecer a ilha e a cidade, partiu para Melinde, onde chegou no dia 02 do mês de Agosto.
Sabendo o rei de Melinde da sua chegada, logo mandou visitá-lo com muitos e bons refrescos. Com estes que trouxeram os refrescos, mandou Pedro Álvares visitar o rei de Melinde com um presente e informá-lo de que trazia cartas do rei de Portugal e também o seu embaixador que ele mandara a Portugal. O rei de Melinde mostrou grande contentamento com o recado como se tivesse ganhado um tesouro e com o portador do recado mandou um homem fidalgo da sua Casa fazer grandes oferecimentos a Pedro Álvares Cabral.
Assim, no dia seguinte, mandou Pedro Álvares por Aires Correia as cartas ao rei e o presente acompanhado dos homens mais bem vestidos da frota, com trombetas e atabales. Informado o rei do aparato com que Aires Correia se lhe dirigia, mandou-o receber à praia pelos principais da sua corte. Depois de desembarcados, foram os nossos assim como os que os vieram receber à praia por entre duas filas de mulheres que tinham perfumadores nas mãos com muito bons cheiros e, nesta ordem, chegaram à casa em que o rei os estava esperando sentado numa cadeira lavrada de ouro e prata.
Quando Aires Correia chegou fez a sua cortesia, após a qual deu ao rei as cartas que para ele o rei Dom Manuel escreveu em árabe e português e lhe entregou pela mão o seu embaixador e deu o presente e passadas muita conversa, o rei rogou a Aires Correia que os dias que ali estivesse a armada, ele fosse seu hóspede, o que fez com licença de Pedro Álvares.
No dia seguinte, o rei desejoso de se encontrar com Pedro Álvares Cabral e sabendo pelo que já se passara com Vasco da Gama e pelo que Aires Correia dissera, que era escusado insistir com Pedro Álvares Cabral para que viesse a terra, mandou-lhe recado que queria encontrar-se com ele no mar e assim foi feito.
O rei, para mostrar a todo o povo o rico presente que recebera, mandou pôr um lindo jaez de ouro numa gineta (mamífero com pelagem cinzento clara muito manchada de negro – gato bravo) que vinha com as outras peças do presente, num cavalo muito formoso, no qual cavalgou e nele veio até entrar para a almádia, em que foi falar a Pedro Álvares que já o estava esperando com todos os capitães da frota, cada um em seu batel, todos com trajos de festa.
Nesta visita houve muitos oferecimentos e cumprimentos de amizade e despediram-se um do outro, depois de terem falado por um bom espaço de tempo e porque a intenção de Pedro Álvares era partir logo para não perder o tempo que tinha para esta viagem, pediu dois pilotos ao rei que logo lhos mandou dar.
Deixou Pedro Álvares ali dois degredados, João Machado e o outro Luís de Moura, para se informarem sobre o sertão e saberem se podiam ir por terra à corte do imperador da Etiópia, rei do Abexim, a que erradamente chamam de Preste João, coisa que o rei Dom Manuel muito lhe recomendou quando partiu do reino. Sobre João Machado e os bons serviços que ele fez naquelas partes a estes reinos de Portugal se fará adiante menção.
Isto feito, Pedro Álvares Cabral partiu do porto de Melinde no dia 07 do mês de Agosto e no dia 22 chegou à ilha de Anchediva, onde esteve alguns dias, refazendo-se do trabalho do mar e dali partiu para Calecut onde chegou no dia 13 do mês de Setembro de 1500. =        p. 87                         
        
Capítulo LVIII
 Do que Pedro Álvares Cabral passou em Calecut.

No mesmo dia em que Pedro Álvares Cabral chegou ao porto de Calecut, vieram-no visitar à nau, da parte do rei de Calecut, dois naires da sua Casa com um mercador guzarate, homem rico, com os quais Pedro Álvares Cabral mandou João de Sá que era um dos que foram na viagem de Vasco da Gama e por intérprete Gaspar da Gama que vinha com ele. Por eles mandou pedir licença ao rei para com ele se encontrar e dar-lhe as cartas e o presente que ele lhe trazia do rei, seu senhor e também lhe mandou quatro malabares dos que Vasco da Gama levara, vestidos à portuguesa. O rei de Calecut mostrou muito contentamento ao receber tudo isto.
Com os que trouxeram o recado, Pedro Álvares Cabral tornou a mandá-los e com eles Afonso Furtado e Aires Correia e com estes o rei de Calecut decidiu que se encontrassem numa casa junto da praia, a que eles chamam Cerame, cuja casa (dados reféns de uma e outra parte) o rei veio acompanhado por todos os senhores e naires que então andavam na sua corte e com muitos instrumentos, entre os quais vinte trombetas – dezassete de prata e três de ouro – lavradas de obra muito subtil e adornadas com pedraria.
Depois do rei estar no Cerame, Pedro Álvares Cabral veio a terra com alguns dos capitães, cada qual em seu batel, deixando por capitão das naus Sancho de Thoar. Quando Pedro Álvares chegou à praia, tomou um andor, em que foi acompanhado de muitos caimães, panicães e naires que iam a pé até ao Cerame. Lá encontrou o rei vestido com panos de algodão, seda e ouro e adornado de tanta e tão rica pedraria que não somente lhe fez espanto quando ele chegou como as chamas que delas saiam lhe impediam a visão.
A casa estava aparamentada e alcatifada e havia nela muitas e grandes tochas de prata, sobre que estavam uns candeeiros também de prata, alumiados com azeite, dando tanta claridade que escurecia o dia.
Antes de entrar no Cerame, vieram receber Pedro Álvares Cabral alguns senhores dos que depois ficaram com o rei. Seis passos antes de chegar ao estrado sobre o qual ele estava deitado num catel, estavam dois seus irmãos e um pouco mais adiante uma cadeira de prata, em que o rei mandou Pedro Álvares Cabral se sentar e dali, por intérprete, perguntou-lhe como estava, como fora a sua viagem e como ficou o rei de Portugal, seu irmão. Pedro Álvares respondeu às suas perguntas e deu-lhe as cartas que lhe trazia do rei, seu senhor e o presente. Depois decidiu com ele boa parte dos negócios a que ia e entre outras coisas concedeu-lhe que toda a gente da armada pudesse andar muito segura em terra e fazer seus negócios como os naturais. Para a mercadoria e oficiais do rei, seu irmão, lhe mandaria dar uma casa em que todos estivessem seguros e pudessem fazer o que se lhes cumprisse.
Depois de tudo estabelecido do que Pedro Álvares Cabral trazia em mente, este regressou às naus, acompanhado pelos senhores até aos batéis a mandado do rei. Passados três dias, Pedro Álvares Cabral mandou recado ao rei por um cavalheiro Francisco Correia, pedindo-lhe que lhe mandasse dar a casa que lhe prometera para segurança dos oficiais e dos bens do rei, seu senhor. O rei de Calecut mandou dar-lhe uma muito boa. Então Pedro Álvares ordenou que Aires Correia fosse a terra e depois de lá estar e ver a qualidade da casa, mandasse levar das naus os bens e mercadoria que lhe parecesse necessários.
As casas cedidas eram de um mouro guzarate que logo começou a usar de pouca verdade com os nossos. Aires Correia pediu outras casas ao rei que logo lhe mandou dar outras muito melhores e mais próximas da praia, pertencentes a um mouro de nome Cojebequi que era um dos homens mais ricos da cidade que, por se afeiçoar à nossa nação e ser muito amigo e servidor dos portugueses, destruiu depois o rei de Calecut e lhe tomou mercadoria que valia mais de oitocentos mil cruzados. Este Cojebequi, vi eu depois, quando era rapaz, neste reino de Portugal, onde veio requerer satisfação de suas perdas ao rei Dom Manuel e pedir-lhe mercês, a que Dom Manuel acedeu e deu-lhe ofícios honrados na Índia com que regressou contente para a sua terra. Destas casas cedidas aos portugueses em Calecut fez o rei doação para todo o sempre aos reis de Portugal e disso mandou fazer o padrão numa lâmina de ouro com letras talhadas ao buril com o seu sinal esculpido e selo de ouro pendente. Além disso, mandou que, sobre a mesma casa, se pusesse uma bandeira com as armas reais de Portugal para se saber que a tinha dado aos portugueses.
Nesta altura, teve o rei aviso de que partira da cidade de Cochim uma nau que vinha da ilha de Ceilão em que mercadores levavam elefantes para o reino de Cambaia, entre os quais havia um bem-ensinado para a guerra que não lho quiseram vender. O rei de Calecut mandou pedir a Pedro Álvares Cabral que a mandasse tomar porque era de seus inimigos. Logo Pedro Álvares mandou Pero de Ataíde e com ele Duarte Pacheco Pereira, Vasco da Silveira e João de Sá e com estes o rei mandou alguns mouros para verem o que os nossos faziam.
Quando o rei mandou este recado a Pedro Álvares, esta nau já estava à vista da cidade de Calecut, pelo que Pero de Ataíde se fez logo à vela e a foi acometer, dando-lhe caça e sem a querer abalroar, por a sua nau ser muito inferior à nau dos mouros que era de mais de seiscentos tonéis, lhes mandou que a detivessem. Eles, rindo-se e zombando, começaram aos gritos, a atirar flechas e a descarregar algumas bombardas de ferro que traziam. Os nossos responderam-lhes com bombardadas tão amiúde à nau de Ceilão que a fizeram recolher, já anoitecia, à barra de Cananor, onde se meteu entre quatro naus de mouros que ali estavam ancoradas, mas isto não ficou por aqui já que, no dia seguinte, os nossos a tiraram dali, apesar das quatro naus e de todos os de Cananor que lhe acudiram e a levaram a Calecut. O rei espantado veio à praia ver a nau, da qual e de tudo o que nela vinha, que era de grande valor, Pedro Álvares Cabral entregou ao rei de Calecut em nome do rei de Portugal, seu senhor.
No dia seguinte, informado o rei de Calecut pelos mouros que foram com Pero de Ataíde de quão animosamente os nossos o fizeram, mandou pedir a Pedro Álvares Cabral que lhe mandasse os homens que foram naquele ataque para se poder gabar que vira homens dignos de serem vistos por todos os reis e senhores do mundo. Fez a todos mercês e em especial a Duarte Pacheco Pereira por os mouros lhe dizerem que nunca viram homem tão animoso nem tão esforçado e que ele fora a causa única de aquela nau ser tomada. =          p. 90

Capítulo LIX
De como, por traição dos mouros de Calecut, foi morto Aires Correia e outros portugueses e do que Pedro Álvares Cabral fez sobre isso.

Os mouros de Calecut receosos de que os portugueses passassem a ser, dali por diante, mais favorecidos do rei e dos da terra do que eles, começaram a buscar todos os meios e modos que puderam para desfazer esta amizade, comprando secretamente as especiarias que havia na cidade e vinham de fora e as que o feitor Aires Correia punha preço, por meio dos gentios, atravessavam-se, lançando valores sobre os dele de maneira a que os preços das especiarias visadas por Aires Correia ficassem sobrevalorizadas ou não as pudesse comprar. Pedro Álvares Cabral, agastado por já haver três meses que ali estava, mandou dizer ao rei que se lembrasse de como lhe prometera carga para as suas naus desde o  dia que ali chegara a vinte dias e que se carregariam primeiro do que nenhuma das naus que estavam no porto e tudo se fazia ao contrário porque nem as naus estavam carregadas nem o feitor, por nenhum preço, conseguia comprar especiarias e sobretudo que, no porto, se carregavam naus de mercadores e isso não se podia fazer sem o seu consentimento (do rei) ou sem os seus oficiais saberem. Tudo ao contrário do que prometera. Pedia-lhe que mandasse resolver isto com brevidade porque era já tempo de regressar.
O rei mostrou desgosto, dizendo que de tal coisa não era sabedor e que os mouros usavam com ele manhas e apesar de ele o proibir, eles carregavam secretamente as suas naus de especiarias. Dava licença a Pedro Álvares Cabral para tomar das naus deles as especiarias que lhe fossem necessárias, pagando-lhes o custo.
Pedro Álvares não ficou muito satisfeito com este recado porque sabia já, por experiência, que o rei de Calecut era muito instável e mudável e via que o recado era cheio de algum conselho armado em seu prejuízo. Por isso pôs em dúvida pôr em marcha tal conselho num lugar onde os prejudicados seriam mais poderosos e mais favorecidos do que os nossos, mas movido por requerimentos que todos os dias lhe enviava de terra Aires Correia dizendo-lhe que, sem tomar especiarias das naus dos mouros, a armada regressaria vazia para o reino porque ele não conseguia obter mais do que a que já tinha comprada e isto com protestos de danos e interesses.
Também mandou recado ao capitão e mestre de uma nau de que era proprietário um mouro rico de Calecut de nome Cogecem Micide que estava já fora do porto, carregada de mercadorias e âncora a pique, que se não fizesse à vela por o rei de Calecut assim mandar. Não fizeram caso, mandou então aos mestres da frota que, cada um em seu batel, armados lhe fossem trazer aquela nau à toa para dentro do porto, o que fizeram sem contradição.
Sabendo o proprietário da nau do ocorrido, foi logo queixar-se ao rei e após a outros seus próximos e amigos. Finalmente que, com a resposta que receberam do rei e o ódio que tinham aos nossos por serem cristãos, se juntaram os mais dos mouros da cidade e com mão armada foram à Casa da Feitoria de Calecut em que poderia haver até setenta homens portugueses bem descuidados do que lhes aconteceu. Aires Correia mandou logo colocar uma bandeira em lugar que se podia ver muito bem da frota, pelo que Pedro Álvares Cabral, por estar na cama doente de febres, mandou Sancho de Thoar que, com todos os batéis da frota, se fosse a terra e socorresse os nossos, dos quais os mouros entretanto feriram e matavam com flechas muitos dos que estavam sobre as paredes da casa, defendendo-a para que não quebrassem as portas. Isto durou tanto que havia já ao redor da casa mais de quatro mil mouros e naires que também os ajudavam e, vendo que não podiam ganhar a casa com apetrechos, derrubaram um lanço da parede, por onde começaram a entrar. Os nossos, vendo isto, saíram em fila por uma porta que dava para a praia, seguindo-os os mouros. Matavam e feriam os nossos até estes chegarem onde já Sancho de Thoar estava com os batéis que, para recolher os que vinham fugindo, mandou saltar alguns para terra e os que vinham fugindo se acolheram e juntos embarcaram os que puderam escapar com a água até ao peito. Morreram e foram capturados nesta peleja cinquenta dos nossos em que entre os mortos um foi Aires Correia.
Os que se salvaram ficaram a maioria feridos e destes alguns morreram. A Casa da Feitoria foi saqueada e roubada de tudo o que nela havia. Entre estes que se acolheram à frota um foi frei Henrique com algumas feridas nas costas e quatro frades dos seus e Nuno Leitão que sempre trouxe a par de si um filho de Aires Correia, de nome António Correia que ainda vive. António Correia fez depois muitos e assinados serviços a estes reinos de Portugal como se dirá na altura própria. Esta desventura aconteceu no dia 16 de Dezembro de 1500.
Comovido Pedro Álvares Cabral, vendo que em todo aquele dia em que esteve sem fazer mudança nem dar sinal de querer fazer guerra à cidade, o rei de Calecut não lhe mandava nenhum recado nem desculpa de um tão grande desastre, no dia seguinte, com conselho dos capitães e pessoas principais da armada, acometeu dez naus de mouros que estavam no porto, no que houve bastante resistência da parte deles; mas enfim, depois de ter morto mais de seiscentos, as naus foram assaltadas, mas nelas se achou alguma, mas pouca especiaria e outras mercadorias e mantimentos e três elefantes que Pedro Álvares Cabral mandou matar e salgar para provisão da armada e alguns mouros que encontrou escondidos pelas naus, mandou repartir pela frota para servirem no que fosse necessário por nela haver falta de gente pela muita que já tinha morrido.
Isto feito, mandou pôr fogo às dez naus e todas arderam à vista da cidade sem pessoa alguma ousar lhes acudir por causa da nossa artilharia nem na altura da peleja nem depois de lhes terem posto fogo. Entre estas naus estava uma do mouro Cogecem Micide sobre que se armou esta briga. Nela não se encontrou nenhuma especiaria, donde manifestamente se viu que ou os mouros enganaram o rei de Calecut dando-lhe a entender que estava carregada ou o rei, movido pelo conselho dos seus (que na maior parte favoreciam os mouros), consentiu na mesma traição. Queimadas as naus em que se passou boa parte da noite, logo no dia seguinte pela manhã, Pedro Álvares Cabral mandou bombardear a cidade, o que se fez tão bravamente que muitos saíram dela e mesmo o rei, aos pés do qual um pelouro de bombarda matou um naire muito seu íntimo. Tendo já os nossos, bem à sua vontade, bombardeado a cidade e derrubado muitas casas e morta muita gente, Pedro Álvares Cabral se fez à vela para Cochim por saber que o rei desejava a nossa amizade, onde chegou no dia 24 de Dezembro desse ano de 1500.=   p. 91

Capítulo LX
  Do que Pedro Álvares Cabral passou em Cochim, Cananor e daí até chegar a Lisboa.

Esta cidade de Cochim está situada ao lado de um rio que tem a sua foz no mar, junto dela e o rio e o mar fazem a ilha de Cochim. O porto é limpo e seguro; os edifícios são como os de Calecut e das outras povoações do Malabar. Há nela muitos mercadores mouros e gentios. A terra é pobre, contudo graciosa. O principal negócio que tem é o da pimenta. O Estado do rei tem menos gente e riqueza do que o de Calecut, a quem, naquele tempo, obedecia e era obrigado a servir nas guerras que o rei de Calecut tinha com outros reis e era-lhe tão sujeito que, quando sucedia rei novo em Calecut, vinha fazer a sua entrada em Cochim e assim que entrava na cidade depunha logo o rei de Cochim, ficando na sua mão devolver-lhe o reino ou não e dá-lo a quem lhe aprouvesse. Com o favor dos nossos, ficou isento destas condições e fez-se muito rico e poderoso. Os costumes dos de Cochim são como os de todos os outros habitantes do Malabar, de que atrás fica dito o necessário.
Assim que a armada surgiu em Cochim, Pedro Álvares Cabral mandou Jogue visitar o rei. Jogue, em Calecut, veio meter-se na frota, fez-se cristão e foi-lhe dado por nome Miguel e apelido Jogue como já era sendo gentio. Jogues são homens religiosos que andam por todas aquelas províncias pregando as suas religiões, muito abstinentes de vida. Por ele, Pedro Álvares mandou dizer ao rei que, a troco de dinheiro e outras coisas, lhe mandasse dar pimenta e outras mercadorias que, na altura, houvesse na cidade para quatro naus a que ainda faltava carga. O rei respondeu-lhe:
- A Vossa vinda é muito bem acolhida e tenho-me por ditoso por ter vindo à minha cidade. Relativamente à carga, pode mandar comprar livremente o que lhe seja necessário. Tudo Vos será vendido pelos preços de mercado. Para que assim seja, envio dois naires, dos principais da minha Casa, por reféns dos que vão a terra.
Pedro Álvares ficou muito satisfeito com tão boa resposta e, na mesma hora, ordenou que fossem a terra, por feitor, Gonçalo Gil Barbosa e por escrivães Lourenço Moreno e Sebastião Álvares e por intérprete Gonçalo Madeira de Tânger que falava bem árabe e com eles cinco degredados para os servirem. O rei mandou eles serem recebidos na praia por pessoas principais da sua corte e lhes fez muito bom acolhimento. Gonçalo Gil Barbosa e Lourenço Moreno, depois de darem o recado de Pedro Álvares Cabral ao rei de Cochim, apresentaram-lhe algumas peças de prata e outras coisas que por eles Pedro Álvares Cabral lhe mandou. O rei ficou muito contente e depois de falar com eles sobre o negócio da carga se despediu deles e mandou entregar-lhes uma casa segura e deu-lhes naires para guarda de suas pessoas e, logo no dia seguinte, se entendeu na compra da pimenta e outra mercadoria que havia na cidade. Tudo se fazia por ordem do rei e com grande diligência e verdade como se o negócio fosse todo do rei. Depois de feita a carga, vieram recados a Pedro Álvares dos reis de Cananor e Coulão, reis ricos e poderosos na terra do Malabar, que se quisesse vir tomar carga a seus portos que tudo lhe dariam por preços razoáveis e as naus se carregariam com a maior brevidade do que em nenhuma outra parte do Malabar e outros oferecimentos de amizade. Pedro Álvares Cabral escusou-se, dizendo que, quando em Cochim não achasse carga que pretendia alcançar, então iria comprá-la à sua terra (de cada um deles).
A boa vontade que lhe mostravam seria tomada em conta quando precisasse. A Pedro Álvares Cabral vieram dois irmãos indianos cristãos naturais da cidade de Cranganor: um deles de nome Ioseph e outro Mathias, pedindo-lhe que os quisesse levar consigo a Portugal porque queriam daí ir a Roma e a Jerusalém, que muito agradou a Pedro Álvares e os mandou acomodar na sua nau. Tendo Pedro Álvares Cabral feito a carga da pimenta que lhe era necessária em Cochim e Cranganor que fica de Cochim a cinco léguas, tudo durante vinte dias, o rei de Cochim mandou-lhe dizer que, de Calecut, tinha saído uma armada de vinte naus e outros navios que o vinham buscar, a mandado do rei de Calecut, para pelejarem com ele e nesta armada vinham quinze mil homens de guerra e, logo no dia seguinte, dia 09 de Janeiro apareceu a armada.
Pedro Álvares, que já estava prestes a partir, fez-se à vela com intenção de os ir acometer, mas pelo vento ser contrário não lhes pôde chegar nem eles ousaram abalroar as nossas naus com medo da nossa artilharia. Vendo isto, Pedro Álvares Cabral seguiu para o reino de Portugal, deixando em Cochim, Gonçalo Gil Barbosa e Lourenço Moreno com outros portugueses.
Quando passou perto de Cananor, veio até ele, num zambuco, um naire por quem o rei de Cananor lhe mandara dizer que a carga que lhe faltava quisesse ir comprá-la àquela sua cidade; far-lhe-ia muito bom acolhimento e lhe dariam tudo o que fosse necessário. Pedro Álvares Cabral aceitou o convite e foi logo comprar canela e algumas outras mercadorias que lhe faltavam.
No porto desta cidade, Pedro Álvares Cabral entrou no dia 15 do mês de Janeiro de 1501. Cananor é uma cidade grande e bem povoada. As casas são semelhantes às outras do Malabar. Tem uma baía muito grande e de bom porto. É muito abastada de carnes, peixe, frutas e muitos outros mantimentos.
O rei é gentio e um dos três reis principais do Malabar que são o de Calecut, o de Coulão e ele, o terceiro, mas não tão poderoso como os outros dois. Em Cananor, Pedro Álvares Cabral comprou algum gengibre, quatrocentos quintais de canela e outras mercadorias. O rei de Cananor, sabendo disto e cuidando que Pedro Álvares não comprava mais por lhe faltar dinheiro, mandou-lhe dizer que carregasse quanto quisesse que ele mandaria pagar tudo do seu bolso, pois bem sabia que em Calecut tinha sido roubado e saqueado. Pedro Álvares Cabral agradeceu muito e aos mensageiros mostrou um grande cofre cheio de cruzados, respondendo aos mensageiros do rei que não comprava mais por já ter toda a carga que as naus podiam levar.
Isto feito e as mercadorias recolhidas, tudo num só dia, Pedro Álvares partiu dali no dia 16 de Janeiro, levando consigo um embaixador que o rei de Cananor mandava ao rei Dom Manuel. Estando já perto da costa de Melinde, tomou uma nau grande de Cambaia, carregada de muitas mercadorias que pertencia a um mouro de nome Milicupi, senhor de Barroche, que soltou, dizendo ao capitão que com o rei de Cambaia e com seus vassalos e amigos não queria senão toda a paz e amizade e que assim o podia dizer a Milicupi porque, naquelas partes, não tinha o rei de Portugal, seu senhor, guerra senão com os mouros de Meca e com o rei de Calecut, pelas traições e enganos que fizera a seus capitães e assim Pedro Álvares Cabral se despediu dele, não tomando mais do que um piloto a quem pediu para o guiar no caminho que lhe ficava por fazer daquele golfo e, tendo-o já atravessado, com tormenta, a nau de Sancho de Thoar deu nuns baixos na costa de Melinde. Pedro Álvares mandou pôr-lhe fogo para que os da terra não se pudessem aproveitar do que nela havia. Contudo o rei de Mombaça mandou irem buscar a artilharia que depois usou contra nós como se em seu lugar se escreverá de modo que nenhuma outra coisa se salvou, apenas as pessoas. Dali, sem poder tomar Melinde, navegou até Moçambique, onde fez manutenção às naus e mandou descobrir por Sancho de Thoar o porto de Sofala, mandando-lhe que com as novas do que achasse se fosse de rota para o reino de Portugal.
Feita a aguada e consertadas as naus, Pedro Álvares Cabral fez-se à vela e dobrou o Cabo da      Boa Esperança, no dia 22 de Maio, dia do Espírito Santo e dali veio ter a Cabo Verde, onde encontrou Pero Dias que lhe desaparecera quando ia para a Índia. De Cabo Verde, sem tomar outro porto, chegou a Lisboa, no dia 31 de Julho de 1501, estando o rei em Sintra, que sabendo da sua vinda ficou muito alegre, mas com alguma tristeza por causa da gente que morrera nas naus que se perderam. =       p. 94  
                    
Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal

Lagos, 06 de Março de 2017    

     

sábado, 4 de março de 2017

Rei Dom Manuel I

PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA

sobre “Rei Dom Manuel I e a Invasão Turca”

CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goese encomendada por Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF - pp. 71 – 77 

Capítulo XLVII
            De como o rei determinou de passar em África para fazer guerra aos mouros e dos apercebimentos que para isso fez.

O rei Dom Manuel, apesar de estar há tão pouco tempo casado e não ter ainda filhos da rainha, sua esposa, contra a vontade e parecer de muitos do seu Conselho, determinou passar em África, no ano de 1501.
A rainha particularmente mostrava grande descontentamento, queixando-se disso nas suas cartas ao seu pai, o rei Dom Fernando e a sua mãe, a rainha Dona Isabel, mas tudo isto resultava em pouco proveito para o rei deixar de concretizar a sua vontade e desejo de imitar os reis seus antecessores e ser-lhes companheiro na glória que alcançaram nas conquistas das cidades, vilas, castelos e lugares que na terra destes infiéis, eles, por suas pessoas, passando em África, ganharam, para o que mandou escrever que se alistasse toda a gente que no reino havia de que se podia servir em feito de guerra, dos quais ele escolheu vinte e seis mil homens que lhe eram suficientes para a sua empresa.
Destes eram seis mil de cavalo, oitocentos acobertados e os restantes besteiros, espingardeiros a pé e a cavalo, peões lanceiros, além de servidores e gente do mar. Sobre esta questão, depois de o rei ter feito grandes despesas e também a gente nobre que com ele havia de ir, desistiu pela seguinte razão.
Nesta mesma altura, veio recado à senhoria de Veneza de que os turcos, com quem então tinha guerra, andavam a preparar uma grande armada para lhes tomar e destruir as terras, ilhas e cidades que Veneza tinha na Grécia, a cujo poder, não se atrevendo a resistir sem a ajuda dos reis cristãos, recorreu logo ao Papa para ser seu intercessor entre eles e o rei de Portugal para que os quisesse ajudar com esta armada que já tinha prestes. Pareceu bem ao Papa a petição dos venezianos, pelo que com embaixadores que expressamente mandou ao rei de Portugal, lhe escreveu e recomendou muito ao núncio que então estava em Portugal, que os ajudasse. Estes embaixadores chegaram ao rei Dom Manuel quando este estava nos paços de Santos o Velho e expuseram-lhe:
- Sua Alteza, a senhoria e república de Veneza, confiada na sua grande bondade e posta no extremo perigo de perder tudo o que na Grécia ganhara e possuía, manda-lhe pedir socorro e ajuda com aquela armada que já tem pronta ou parte dela. A armada dos turcos já está no mar e o socorro dos outros reis e príncipes de Itália não lhes poderá vir tão rápido como o seu, por muito que se apressem. Se Vossa Alteza aceitar, fará maior serviço a Deus do que por ventura lhe cuida fazer, seguindo a sua vontade sem saber o fruto que dela poderá tirar. O socorro que lhe pedem é certo porque eles têm por muito averigüado que, sabendo os turcos que esta sua armada ia buscar a deles, que em vez de seguir adiante, a mandariam voltar atrás, do que se resultaria grande bem para toda a cristandade. Se Deus (por pecados deles) permitisse virem os turcos à conclusão do que desejam, estaria certa a perda que se disso havia de seguir, da qual aos reis cristãos caberia boa parte.
Dom Manuel, movido pela piedade, respondeu-lhes que, sobre isso tomaria o parecer dos do seu Conselho e que da sua petição lhes daria resposta com brevidade. O voto e o parecer dos mais foi que Dom Manuel ficasse no reino e da armada que tinha prestes mandasse trinta naus e caravelas em ajuda dos venezianos e que despachasse logo esta armada, pois o substancial de toda esta questão era fazer-se com brevidade.=    p. 71

Capítulo LI       
Da armada que o rei Dom Manuel mandou em ajuda dos venezianos contra os turcos e do sucesso da viagem que fez.
Estabelecido que se desse aos venezianos o socorro que pediam, mandou o rei Dom Manuel que tomassem da armada que tinha pronta para a sua passagem trinta naus, navios e caravelas dos mais bem equipados e artilhados e deu a capitania a Dom João de Menezes, filho de Dom Duarte de Menezes, conde de Viana, que fora capitão de Alcácer e alferes-mor do rei Dom Afonso Quinto.
Dom João de Menezes, por seus merecimentos, foi mordomo-mor do rei Dom João Segundo e do rei Dom Manuel e conde de Tarouca, comendador de Sesimbra, capitão e governador da cidade de Tânger e depois prior do Crato por falecimento de Dom Diogo Fernandes de Almeida.
Por sota-capitão (= capitão de retaguarda) desta armada ia Rui Teles de Menezes, cunhado do mesmo Dom João de Menezes, irmão de sua esposa.
Dom Diogo Fernandes de Almeida, prior que então era do Crato, desejou muito ter a capitania desta armada por ser para acometer contra os turcos e nisso insistiu muito e porque o rei não lha quis dar, se foi agravado (= ofendido) para Rodes, onde residiu quatro anos e fez muitos e assinados serviços à Ordem, entre os quais foi a famosa vitória que houve sobre uma armada de galés dos turcos. Passados os quatro anos, Dom Diogo volta ao reino, chamado pelo rei Dom Manuel e faleceu em Almeirim.
Antes de Dom João de Menezes partir de Lisboa, o rei, para o gratificar pelos muitos serviços que dele tinha recebido, deu-lhe o título de conde da vila de Tarouca, na comarca da Beira.
Nestas trinta velas, o rei Dom Manuel mandou três mil e quinhentos homens de guerra, em que entravam muitos dos seus criados, além de marinheiros e outra gente de serviço.
Além destes navios e gente de socorro, mandou outra armada, sob a bandeira do mesmo conde, Dom João de Menezes, em que ia muita gente nobre para ficar por fronteira na cidade de Ourão, se pudesse ganhar o castelo de Mazalquibir, situado na boca da barra da mesma cidade de Mazalquibir, o que lhe recomendou muito e em grande segredo ao conde.
A armada pronta, fizeram-se à vela do porto de Belém, Lisboa, no dia 15 de Junho deste ano de 1501, com vento favorável chegaram ao cabo de Santa Maria, onde estavam esperando o conde alguns navios de Lagos, Algarve que haviam de ir com ele. a estes capitães e aos que iam com ele de Lisboa, Dom João de Menezes declarou então que, por mandado do rei Dom Manuel e ordem que para isso levava do rei, o primeiro assunto a tratar era pôr cerco a Mazalquibir.
Seguindo dali a sua viagem, chegou ao porto deste castelo de Mazalquibir e por ser já tarde, se fez na volta do mar com intenção de, no dia seguinte, pela manhã, acometer o lugar; o que lhe estorvou foi o vento ser tão contrário que não o deixava chegar e nisto andou três dias, durante os quais os da terra se providenciaram do que lhes era necessário para a sua defesa.
Passados os três dias, Dom Diogo de Menezes toma o porto que foi a um sábado, véspera de Santiago, no dia 23 de Julho. O conde, com toda a gente que lhe pareceu necessária, saiu das naus, levando consigo a bandeira real, ficando ele no seu batel, por os fidalgos lhe pedirem que não desembarcasse.
Assim que toda a outra gente, guiada por seus capitães, em boa ordenança, foi acometer a vila até chegarem aos muros e lhes porem escadas sem os de dentro lhes oferecerem nenhuma resistência. Depois de os terem dentro, encravados e cegos no que cuidavam fazer e os verem andar já como vencedores, espalhados ao redor dos muros, saíram de dentro da vila quatrocentos homens a cavalo, homens que, pelo seu trajo, pareciam nobres e acompanhados de soldados a pé, que deram com tanto esforço nos nossos que, sem nenhuma resistência e com muita desordem, fizeram-nos a todos recolher aos seus batéis e, perseguindo-os, os mouros mataram vinte dos nossos, entre os quais alguns homens fidalgos.
O Conde, desesperado de não conseguir ganhar a vila, pareceu-lhe escusado assaltá-la outra vez e com parecer de todos os capitães, determinou-se partir dali. Assim decidido, D. João de Menezes despediu para o reino a frota que com ele viera para conquistar Mazalquibir e ele seguiu a sua viagem com a armada de trinta naus.=          p. 76
   
Capítulo LII       
Do que o conde passou nesta viagem depois que partiu do porto de Mazalquibir até regressar ao reino de Portugal.

Depois de o conde partir de Mazalquibir, o primeiro porto que ancorou foi o de Alicante e dali passou por Ibiza, percorrendo as outras ilhas até chegar à de Sardenha, onde surgiu diante da cidade de Calhere e foi muito bem recebido pelo regedor e moradores da cidade, onde tomou os mantimentos necessários e seguiu viagem. Estando na paragem de Tunes avistou uma carraca e dois galeões que perseguiu até que se lhe renderam. Estas velas eram de Génova e iam carregadas de mercadorias de genoveses e outros mercadores cristãos, turcos, mouros, judeus para a cidade de Ourão. Com esta presa, regressou ao porto de Calhere, onde fez descarregar todas as mercadorias dos turcos, mouros e judeus e as fez repartir pela frota, com inventário que mandou fazer.
Além destas mercadorias, tomou, nestas naus, sessenta mouros e turcos de resgate e alguns judeus e cristãos cativos a que deu liberdade e a carraca com todas as mercadorias que eram de cristãos e de qualidade para se poderem levar a terra de infiéis; soltou livremente os genoveses, mas não os galeões por ter necessidade deles para esta viagem.
Isto feito, partiu novamente do porto de Calhere, levando consigo o vice-rei da Sicília que, com medo da armada dos turcos que se dizia andar no mar, não ousou partir dali, senão em companhia do conde que o pôs no cabo Passaro, no mesmo reino da Sicília e dali navegou para a cidade de Cotrom que é na Apúlia, no reino de Nápoles, donde atravessou para Verona que é na Grécia, senhorio dos turcos e neste lugar vieram ter com ele três galés sotis (= de retaguarda) dos venezianos que o guiaram até à ilha de Corfu, onde a la mar três ou quatro léguas, saiu a recebê-lo o geral da armada da senhoria de Veneza com vinte e cinco grandes galés e cinco galeões, festejando-se ambas as armadas, de Portugal e de Veneza, com muitos tiros de artilharia e som de muitos instrumentos de guerra e, por o tempo ser de calma, as galés meteram as naus à toa no porto de Corfu, onde depois de todas ancoradas, o geral e governadores da ilha mandaram muitos presentes de frutas e refrescos ao conde e a todos os capitães da armada portuguesa.
O conde, posto que fosse requerido e rogado para sair em terra e repousar dos trabalhos da viagem, não o quis fazer; contudo a todos os capitães que quiseram ir a terra deu para isso licença e em terra a todos eles se fez muita honra e acolhimento enquanto ali estiveram. Como a gente de guerra e do mar é naturalmente soberba e brigona, ali em Corfu se armou uma briga entre os da armada e os soldados venezianos e muita gente da terra e foi assunto que, para os pacificarem, tiveram muito trabalho o conde, o geral dos venezianos e os governadores da terra.
Os turcos, sabendo desta armada e de outras que os reis e senhores cristãos faziam para socorrer os venezianos e que Nigroponte, sobre que particularmente tinham determinado ir, era já provido pela senhoria de Veneza. Vendo que a despesa que fizera com a armada era demasiada, mandou-a recolher aos portos, pelo que o geral dos venezianos disse ao conde:
- Dom João de Menezes, daqui por diante é escusada a sua demora cá e fazer mais despesa ao rei Dom Manuel, seu senhor, do que aquela que já fez em favor e ajuda da senhoria de Veneza. A nossa mercê deixa-nos em tamanha obrigação quanta nós nunca poderíamos servir aos reis de Portugal. A armada dos turcos já se recolheu e já não a tememos mais. Quando lhe aprouver, pode regressar ao reino de Portugal. Os nossos embaixadores estarão muito cedo a agradecer ao rei, seu senhor, esta tão grande mercê que nos fez.
A resposta do conde foi de muitos oferecimentos, dizendo que faria tudo o que a senhoria de Veneza ordenasse, pois eram essas as ordens que trazia do rei, seu senhor
Depois deste acontecimento, esteve a armada alguns dias em Corfu, refazendo-se do caminho e preparando-se para o que haveria de fazer.
Tomados os mantimentos, o conde partiu quase pela mesma rota que fizera à ida e regressou ao reino com toda a sua frota junta; apesar de, no caminho, com tormenta, se derramarem algumas vezes, perdendo os dois galeões genoveses.
O primeiro lugar do reino que alcançaram foi Sagres, no cabo de São de Vicente, no dia de Natal, e dali vieram para Lisboa, onde o conde repartiu o despojo da carraca por todos e da quinta parte que se destinava ao rei, este cedeu-lha.=        p. 77


Capítulo LXIV       
De como o rei foi incógnito em peregrinação à Galiza visitar a catedral do apóstolo Santiago.

Tendo por objectivo as boas andanças e o sucesso destas viagens marítimas à Índia, fazia o rei, além das suas acostumadas esmolas, outras esmolas de dinheiro e de especiarias a muitas casas de religião tanto nos reinos de Portugal como fora deles e mesmo a pessoas particulares para que, por sua intercessão e oração, prouvesse a Deus que os negócios da Coroa Portuguesa prosperassem de bem a melhor e também tanto ele como a rainha pessoalmente visitavam muitas casas de devoção, entre as quais o rei se propôs ir a Galiza, à catedral do Apóstolo Santiago, situada na cidade de Compostela.
Nesta romagem (= peregrinação), levou consigo o Bispo da Guarda, Dom Pedro, que era também prior de Santa Cruz de Coimbra e Dom Diogo Lobo, barão de Alvito, Dom Martinho de Castel-Branco, Dom Nuno Manuel, seu guarda-mor, Dom António de Noronha, seu escrivão da puridade e Dom Fernando, segundo marquês de Vila Real, a quem o rei mandou, depois de estar na Galiza, por não querer que se soubesse qual dos da companhia ele era, que todos agissem como se fossem o rei.
Partiu o rei de Lisboa incógnito no mês de Outubro de 1502, fazendo o seu caminho por Coimbra, onde visitou o Mosteiro de Santa Cruz e vendo que a sepultura do rei Dom Afonso Henriques, fundador daquela rica e sumptuosa casa, requeria outra mais digna aos merecimentos de um tão magnânimo rei, logo se propôs a mandá-la fazer de novo como depois fez do modo que agora está.
Dali foi ter a Montemor o Velho, Aveiro e ao Porto, onde ordenou que a sepultura de São Pantaleão se acabasse do modo que o rei Dom João estabelecera em seu testamento.
Do Porto foi a Valença do Minho e em algumas vilas desta mandou fazer justiça rigorosa a pessoas que, até àquele momento, se não pudera fazer execução pelo muito poder e parentesco que tinham naqueles lugares.
De Valença entrou na Galiza pela cidade de Tui, tomando dali o caminho directo até à catedral do Bem-aventurado Apóstolo, com muita devoção, onde se deixou conhecer e foi muito bem acolhido tanto pelo Cabido da Sé como pelos governadores da cidade e fidalgos que nela moravam.
O rei esteve três dias seguidos na cidade de Compostela, passados os quais, depois de ter feito, por sua devoção, muitas esmolas à mesma casa, ao Sprital (= albergue/hospital) e a pessoas necessitadas, regressou ao reino, fazendo mercês a todos os hóspedes das casas em que se hospedava até chegar a Lisboa, onde encontrou a rainha nos paços de Santos o Velho, por quem e por toda a corte foi recebido com muita alegria.
Logo depois da sua vinda, mandou que se fizesse uma lâmpada (= vaso em que arde uma luz alimentada a azeite) de prata da forma de um castelo que mandou pôr na Sé de Santiago, diante do altar-mor que era a mais rica de quantas, até àquela altura, naquela catedral se ofereceram e também ordenou que se fizessem rendas (perpétuas) de azeite na Galiza para esta lâmpada alumiar continuamente de dia e de noite como depois sempre se fez.=    p. 98

Capítulo LXV       
De como o rei quisera ir a África e a causa por que desistiu de o fazer.

Enquanto o rei viveu, o seu desejo e vontade foi sempre ir a África para pessoalmente fazer guerra aos mouros, mas o tempo e o sucesso nunca lhe quis dar a isso oportunidade.
No ano de 1503, quisera pôr em marcha com a mesma companhia com que dantes tinha ordenado quando, a pedido do Papa, mandou socorro aos venezianos contra os turcos como atrás já está descrito. Sabida esta sua determinação pelo reino de Portugal, todos os que estavam escolhidos para a outra viagem  começaram a aperceber-se de próxima ida a África, no começo deste ano de 1503, mas a primavera deu de si tão mau sinal com chuvas e tempestades que as sementeiras que já estavam feitas se perderam na maior parte e as que estavam para se fazer não aconteceram pelo que, logo no início do ano, o pão começou a subir de preço e, pouco a pouco, tanto os pobres como os ricos começaram a sentir a carestia (= a crise) e chegou a tanto que nem por dinheiro se encontrava trigo nem nenhum outro pão nem legumes e, por isso, a gente constrangida pela grande e incomportável fome que sentia, comiam muitos animais estranhos à sua alimentação, raízes de ervas e outras coisas que tiveram como conseqüência muitas doenças mortais e assim o rei desistiu deste empreendimento de ir a terras de África e como rei virtuoso que era mandou comprar, com o seu próprio dinheiro, muito pão na Áustria, Holanda, Flandres, Inglaterra e França. Nesta missão foram criados seus de confiança para, com maior diligência, terem o pão no reino de Portugal e a mando do rei este pão foi vendido pelo preço do custo.=        p. 98 
     
Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal


Lagos, 04 de Março de 2017