sábado, 4 de março de 2017

Rei Dom Manuel I

PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA

sobre “Rei Dom Manuel I e a Invasão Turca”

CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goese encomendada por Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF - pp. 71 – 77 

Capítulo XLVII
            De como o rei determinou de passar em África para fazer guerra aos mouros e dos apercebimentos que para isso fez.

O rei Dom Manuel, apesar de estar há tão pouco tempo casado e não ter ainda filhos da rainha, sua esposa, contra a vontade e parecer de muitos do seu Conselho, determinou passar em África, no ano de 1501.
A rainha particularmente mostrava grande descontentamento, queixando-se disso nas suas cartas ao seu pai, o rei Dom Fernando e a sua mãe, a rainha Dona Isabel, mas tudo isto resultava em pouco proveito para o rei deixar de concretizar a sua vontade e desejo de imitar os reis seus antecessores e ser-lhes companheiro na glória que alcançaram nas conquistas das cidades, vilas, castelos e lugares que na terra destes infiéis, eles, por suas pessoas, passando em África, ganharam, para o que mandou escrever que se alistasse toda a gente que no reino havia de que se podia servir em feito de guerra, dos quais ele escolheu vinte e seis mil homens que lhe eram suficientes para a sua empresa.
Destes eram seis mil de cavalo, oitocentos acobertados e os restantes besteiros, espingardeiros a pé e a cavalo, peões lanceiros, além de servidores e gente do mar. Sobre esta questão, depois de o rei ter feito grandes despesas e também a gente nobre que com ele havia de ir, desistiu pela seguinte razão.
Nesta mesma altura, veio recado à senhoria de Veneza de que os turcos, com quem então tinha guerra, andavam a preparar uma grande armada para lhes tomar e destruir as terras, ilhas e cidades que Veneza tinha na Grécia, a cujo poder, não se atrevendo a resistir sem a ajuda dos reis cristãos, recorreu logo ao Papa para ser seu intercessor entre eles e o rei de Portugal para que os quisesse ajudar com esta armada que já tinha prestes. Pareceu bem ao Papa a petição dos venezianos, pelo que com embaixadores que expressamente mandou ao rei de Portugal, lhe escreveu e recomendou muito ao núncio que então estava em Portugal, que os ajudasse. Estes embaixadores chegaram ao rei Dom Manuel quando este estava nos paços de Santos o Velho e expuseram-lhe:
- Sua Alteza, a senhoria e república de Veneza, confiada na sua grande bondade e posta no extremo perigo de perder tudo o que na Grécia ganhara e possuía, manda-lhe pedir socorro e ajuda com aquela armada que já tem pronta ou parte dela. A armada dos turcos já está no mar e o socorro dos outros reis e príncipes de Itália não lhes poderá vir tão rápido como o seu, por muito que se apressem. Se Vossa Alteza aceitar, fará maior serviço a Deus do que por ventura lhe cuida fazer, seguindo a sua vontade sem saber o fruto que dela poderá tirar. O socorro que lhe pedem é certo porque eles têm por muito averigüado que, sabendo os turcos que esta sua armada ia buscar a deles, que em vez de seguir adiante, a mandariam voltar atrás, do que se resultaria grande bem para toda a cristandade. Se Deus (por pecados deles) permitisse virem os turcos à conclusão do que desejam, estaria certa a perda que se disso havia de seguir, da qual aos reis cristãos caberia boa parte.
Dom Manuel, movido pela piedade, respondeu-lhes que, sobre isso tomaria o parecer dos do seu Conselho e que da sua petição lhes daria resposta com brevidade. O voto e o parecer dos mais foi que Dom Manuel ficasse no reino e da armada que tinha prestes mandasse trinta naus e caravelas em ajuda dos venezianos e que despachasse logo esta armada, pois o substancial de toda esta questão era fazer-se com brevidade.=    p. 71

Capítulo LI       
Da armada que o rei Dom Manuel mandou em ajuda dos venezianos contra os turcos e do sucesso da viagem que fez.
Estabelecido que se desse aos venezianos o socorro que pediam, mandou o rei Dom Manuel que tomassem da armada que tinha pronta para a sua passagem trinta naus, navios e caravelas dos mais bem equipados e artilhados e deu a capitania a Dom João de Menezes, filho de Dom Duarte de Menezes, conde de Viana, que fora capitão de Alcácer e alferes-mor do rei Dom Afonso Quinto.
Dom João de Menezes, por seus merecimentos, foi mordomo-mor do rei Dom João Segundo e do rei Dom Manuel e conde de Tarouca, comendador de Sesimbra, capitão e governador da cidade de Tânger e depois prior do Crato por falecimento de Dom Diogo Fernandes de Almeida.
Por sota-capitão (= capitão de retaguarda) desta armada ia Rui Teles de Menezes, cunhado do mesmo Dom João de Menezes, irmão de sua esposa.
Dom Diogo Fernandes de Almeida, prior que então era do Crato, desejou muito ter a capitania desta armada por ser para acometer contra os turcos e nisso insistiu muito e porque o rei não lha quis dar, se foi agravado (= ofendido) para Rodes, onde residiu quatro anos e fez muitos e assinados serviços à Ordem, entre os quais foi a famosa vitória que houve sobre uma armada de galés dos turcos. Passados os quatro anos, Dom Diogo volta ao reino, chamado pelo rei Dom Manuel e faleceu em Almeirim.
Antes de Dom João de Menezes partir de Lisboa, o rei, para o gratificar pelos muitos serviços que dele tinha recebido, deu-lhe o título de conde da vila de Tarouca, na comarca da Beira.
Nestas trinta velas, o rei Dom Manuel mandou três mil e quinhentos homens de guerra, em que entravam muitos dos seus criados, além de marinheiros e outra gente de serviço.
Além destes navios e gente de socorro, mandou outra armada, sob a bandeira do mesmo conde, Dom João de Menezes, em que ia muita gente nobre para ficar por fronteira na cidade de Ourão, se pudesse ganhar o castelo de Mazalquibir, situado na boca da barra da mesma cidade de Mazalquibir, o que lhe recomendou muito e em grande segredo ao conde.
A armada pronta, fizeram-se à vela do porto de Belém, Lisboa, no dia 15 de Junho deste ano de 1501, com vento favorável chegaram ao cabo de Santa Maria, onde estavam esperando o conde alguns navios de Lagos, Algarve que haviam de ir com ele. a estes capitães e aos que iam com ele de Lisboa, Dom João de Menezes declarou então que, por mandado do rei Dom Manuel e ordem que para isso levava do rei, o primeiro assunto a tratar era pôr cerco a Mazalquibir.
Seguindo dali a sua viagem, chegou ao porto deste castelo de Mazalquibir e por ser já tarde, se fez na volta do mar com intenção de, no dia seguinte, pela manhã, acometer o lugar; o que lhe estorvou foi o vento ser tão contrário que não o deixava chegar e nisto andou três dias, durante os quais os da terra se providenciaram do que lhes era necessário para a sua defesa.
Passados os três dias, Dom Diogo de Menezes toma o porto que foi a um sábado, véspera de Santiago, no dia 23 de Julho. O conde, com toda a gente que lhe pareceu necessária, saiu das naus, levando consigo a bandeira real, ficando ele no seu batel, por os fidalgos lhe pedirem que não desembarcasse.
Assim que toda a outra gente, guiada por seus capitães, em boa ordenança, foi acometer a vila até chegarem aos muros e lhes porem escadas sem os de dentro lhes oferecerem nenhuma resistência. Depois de os terem dentro, encravados e cegos no que cuidavam fazer e os verem andar já como vencedores, espalhados ao redor dos muros, saíram de dentro da vila quatrocentos homens a cavalo, homens que, pelo seu trajo, pareciam nobres e acompanhados de soldados a pé, que deram com tanto esforço nos nossos que, sem nenhuma resistência e com muita desordem, fizeram-nos a todos recolher aos seus batéis e, perseguindo-os, os mouros mataram vinte dos nossos, entre os quais alguns homens fidalgos.
O Conde, desesperado de não conseguir ganhar a vila, pareceu-lhe escusado assaltá-la outra vez e com parecer de todos os capitães, determinou-se partir dali. Assim decidido, D. João de Menezes despediu para o reino a frota que com ele viera para conquistar Mazalquibir e ele seguiu a sua viagem com a armada de trinta naus.=          p. 76
   
Capítulo LII       
Do que o conde passou nesta viagem depois que partiu do porto de Mazalquibir até regressar ao reino de Portugal.

Depois de o conde partir de Mazalquibir, o primeiro porto que ancorou foi o de Alicante e dali passou por Ibiza, percorrendo as outras ilhas até chegar à de Sardenha, onde surgiu diante da cidade de Calhere e foi muito bem recebido pelo regedor e moradores da cidade, onde tomou os mantimentos necessários e seguiu viagem. Estando na paragem de Tunes avistou uma carraca e dois galeões que perseguiu até que se lhe renderam. Estas velas eram de Génova e iam carregadas de mercadorias de genoveses e outros mercadores cristãos, turcos, mouros, judeus para a cidade de Ourão. Com esta presa, regressou ao porto de Calhere, onde fez descarregar todas as mercadorias dos turcos, mouros e judeus e as fez repartir pela frota, com inventário que mandou fazer.
Além destas mercadorias, tomou, nestas naus, sessenta mouros e turcos de resgate e alguns judeus e cristãos cativos a que deu liberdade e a carraca com todas as mercadorias que eram de cristãos e de qualidade para se poderem levar a terra de infiéis; soltou livremente os genoveses, mas não os galeões por ter necessidade deles para esta viagem.
Isto feito, partiu novamente do porto de Calhere, levando consigo o vice-rei da Sicília que, com medo da armada dos turcos que se dizia andar no mar, não ousou partir dali, senão em companhia do conde que o pôs no cabo Passaro, no mesmo reino da Sicília e dali navegou para a cidade de Cotrom que é na Apúlia, no reino de Nápoles, donde atravessou para Verona que é na Grécia, senhorio dos turcos e neste lugar vieram ter com ele três galés sotis (= de retaguarda) dos venezianos que o guiaram até à ilha de Corfu, onde a la mar três ou quatro léguas, saiu a recebê-lo o geral da armada da senhoria de Veneza com vinte e cinco grandes galés e cinco galeões, festejando-se ambas as armadas, de Portugal e de Veneza, com muitos tiros de artilharia e som de muitos instrumentos de guerra e, por o tempo ser de calma, as galés meteram as naus à toa no porto de Corfu, onde depois de todas ancoradas, o geral e governadores da ilha mandaram muitos presentes de frutas e refrescos ao conde e a todos os capitães da armada portuguesa.
O conde, posto que fosse requerido e rogado para sair em terra e repousar dos trabalhos da viagem, não o quis fazer; contudo a todos os capitães que quiseram ir a terra deu para isso licença e em terra a todos eles se fez muita honra e acolhimento enquanto ali estiveram. Como a gente de guerra e do mar é naturalmente soberba e brigona, ali em Corfu se armou uma briga entre os da armada e os soldados venezianos e muita gente da terra e foi assunto que, para os pacificarem, tiveram muito trabalho o conde, o geral dos venezianos e os governadores da terra.
Os turcos, sabendo desta armada e de outras que os reis e senhores cristãos faziam para socorrer os venezianos e que Nigroponte, sobre que particularmente tinham determinado ir, era já provido pela senhoria de Veneza. Vendo que a despesa que fizera com a armada era demasiada, mandou-a recolher aos portos, pelo que o geral dos venezianos disse ao conde:
- Dom João de Menezes, daqui por diante é escusada a sua demora cá e fazer mais despesa ao rei Dom Manuel, seu senhor, do que aquela que já fez em favor e ajuda da senhoria de Veneza. A nossa mercê deixa-nos em tamanha obrigação quanta nós nunca poderíamos servir aos reis de Portugal. A armada dos turcos já se recolheu e já não a tememos mais. Quando lhe aprouver, pode regressar ao reino de Portugal. Os nossos embaixadores estarão muito cedo a agradecer ao rei, seu senhor, esta tão grande mercê que nos fez.
A resposta do conde foi de muitos oferecimentos, dizendo que faria tudo o que a senhoria de Veneza ordenasse, pois eram essas as ordens que trazia do rei, seu senhor
Depois deste acontecimento, esteve a armada alguns dias em Corfu, refazendo-se do caminho e preparando-se para o que haveria de fazer.
Tomados os mantimentos, o conde partiu quase pela mesma rota que fizera à ida e regressou ao reino com toda a sua frota junta; apesar de, no caminho, com tormenta, se derramarem algumas vezes, perdendo os dois galeões genoveses.
O primeiro lugar do reino que alcançaram foi Sagres, no cabo de São de Vicente, no dia de Natal, e dali vieram para Lisboa, onde o conde repartiu o despojo da carraca por todos e da quinta parte que se destinava ao rei, este cedeu-lha.=        p. 77


Capítulo LXIV       
De como o rei foi incógnito em peregrinação à Galiza visitar a catedral do apóstolo Santiago.

Tendo por objectivo as boas andanças e o sucesso destas viagens marítimas à Índia, fazia o rei, além das suas acostumadas esmolas, outras esmolas de dinheiro e de especiarias a muitas casas de religião tanto nos reinos de Portugal como fora deles e mesmo a pessoas particulares para que, por sua intercessão e oração, prouvesse a Deus que os negócios da Coroa Portuguesa prosperassem de bem a melhor e também tanto ele como a rainha pessoalmente visitavam muitas casas de devoção, entre as quais o rei se propôs ir a Galiza, à catedral do Apóstolo Santiago, situada na cidade de Compostela.
Nesta romagem (= peregrinação), levou consigo o Bispo da Guarda, Dom Pedro, que era também prior de Santa Cruz de Coimbra e Dom Diogo Lobo, barão de Alvito, Dom Martinho de Castel-Branco, Dom Nuno Manuel, seu guarda-mor, Dom António de Noronha, seu escrivão da puridade e Dom Fernando, segundo marquês de Vila Real, a quem o rei mandou, depois de estar na Galiza, por não querer que se soubesse qual dos da companhia ele era, que todos agissem como se fossem o rei.
Partiu o rei de Lisboa incógnito no mês de Outubro de 1502, fazendo o seu caminho por Coimbra, onde visitou o Mosteiro de Santa Cruz e vendo que a sepultura do rei Dom Afonso Henriques, fundador daquela rica e sumptuosa casa, requeria outra mais digna aos merecimentos de um tão magnânimo rei, logo se propôs a mandá-la fazer de novo como depois fez do modo que agora está.
Dali foi ter a Montemor o Velho, Aveiro e ao Porto, onde ordenou que a sepultura de São Pantaleão se acabasse do modo que o rei Dom João estabelecera em seu testamento.
Do Porto foi a Valença do Minho e em algumas vilas desta mandou fazer justiça rigorosa a pessoas que, até àquele momento, se não pudera fazer execução pelo muito poder e parentesco que tinham naqueles lugares.
De Valença entrou na Galiza pela cidade de Tui, tomando dali o caminho directo até à catedral do Bem-aventurado Apóstolo, com muita devoção, onde se deixou conhecer e foi muito bem acolhido tanto pelo Cabido da Sé como pelos governadores da cidade e fidalgos que nela moravam.
O rei esteve três dias seguidos na cidade de Compostela, passados os quais, depois de ter feito, por sua devoção, muitas esmolas à mesma casa, ao Sprital (= albergue/hospital) e a pessoas necessitadas, regressou ao reino, fazendo mercês a todos os hóspedes das casas em que se hospedava até chegar a Lisboa, onde encontrou a rainha nos paços de Santos o Velho, por quem e por toda a corte foi recebido com muita alegria.
Logo depois da sua vinda, mandou que se fizesse uma lâmpada (= vaso em que arde uma luz alimentada a azeite) de prata da forma de um castelo que mandou pôr na Sé de Santiago, diante do altar-mor que era a mais rica de quantas, até àquela altura, naquela catedral se ofereceram e também ordenou que se fizessem rendas (perpétuas) de azeite na Galiza para esta lâmpada alumiar continuamente de dia e de noite como depois sempre se fez.=    p. 98

Capítulo LXV       
De como o rei quisera ir a África e a causa por que desistiu de o fazer.

Enquanto o rei viveu, o seu desejo e vontade foi sempre ir a África para pessoalmente fazer guerra aos mouros, mas o tempo e o sucesso nunca lhe quis dar a isso oportunidade.
No ano de 1503, quisera pôr em marcha com a mesma companhia com que dantes tinha ordenado quando, a pedido do Papa, mandou socorro aos venezianos contra os turcos como atrás já está descrito. Sabida esta sua determinação pelo reino de Portugal, todos os que estavam escolhidos para a outra viagem  começaram a aperceber-se de próxima ida a África, no começo deste ano de 1503, mas a primavera deu de si tão mau sinal com chuvas e tempestades que as sementeiras que já estavam feitas se perderam na maior parte e as que estavam para se fazer não aconteceram pelo que, logo no início do ano, o pão começou a subir de preço e, pouco a pouco, tanto os pobres como os ricos começaram a sentir a carestia (= a crise) e chegou a tanto que nem por dinheiro se encontrava trigo nem nenhum outro pão nem legumes e, por isso, a gente constrangida pela grande e incomportável fome que sentia, comiam muitos animais estranhos à sua alimentação, raízes de ervas e outras coisas que tiveram como conseqüência muitas doenças mortais e assim o rei desistiu deste empreendimento de ir a terras de África e como rei virtuoso que era mandou comprar, com o seu próprio dinheiro, muito pão na Áustria, Holanda, Flandres, Inglaterra e França. Nesta missão foram criados seus de confiança para, com maior diligência, terem o pão no reino de Portugal e a mando do rei este pão foi vendido pelo preço do custo.=        p. 98 
     
Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal


Lagos, 04 de Março de 2017                         

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