PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA
sobre “Pedro Álvares Cabral e a segunda viagem até à Índia: 1500-01”
CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes e encomendada por
Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF
- pp. 79 – 94
Capítulo
LIV
Chegado
Nicolau Coelho da Índia, pela
informação que deu ao rei Dom Manuel da terra e qualidade da gente, este determinou
mandar lá uma armada de treze velas
e deu a sua capitania a Pedro Álvares Cabral e por capitão da nau de
retaguarda Sancho de Thoar. Os
outros capitães eram Simão de
Miranda, Aires Gomes da Silva, o
mesmo Nicolau Coelho, Nuno Leitão, Vasco de Ataíde, Bartolomeu
Dias que descobriu o cabo da Boa Esperança, Pero Dias, seu irmão, Gaspar
de Lemos, Luís Pires, Simão de Pina, Pero de Ataíde, de alcunha “Inferno” e por feitor da armada Aires Correia que havia de ficar em
Calecut por feitor e escrivães a seu cargo Gonçalo Gil Barbosa e Pero
Vaz Caminha.
O
rei Dom Manuel mandou apetrechar estas naus de todas as coisas necessárias a
feito de guerra porque já sabiam que haviam de ter disso necessidade pelas
questões que aconteceram a Dom Vasco da Gama tanto na Índia como na costa da
Etiópia, para a qual iam mil e quinhentos soldados.
No
memorandum
que o rei Dom Manuel entregou a Pedro
Álvares Cabral
um dos pontos mais importantes era:
√
- trabalhar muito pela amizade do rei de Calecut;
porque
a vontade do rei Dom Manuel era fazer uma fortaleza naquela cidade onde os
nossos e oficiais estivessem protegidos dos da terra e mouros e pudessem fazer
as coisas que cumprissem ao seu serviço (do rei de Portugal) e que, quando não achassem no rei de Calecut
vontade de o querer por amigo, em tal caso, da sua parte, lhe declarasse guerra
e a fizesse. Também lhe mandou:
√ -
trabalhar muito para tomar Melinde, dar ao rei o presente que lhe mandava,
entregar o seu embaixador e oferecer-lhe a sua amizade para o que de si se
cumprir;
E
porque o rei Dom Manuel foi sempre muito inclinado às coisas que tocavam a
nossa santa fé católica mandou, nesta armada, oito frades da Ordem de São Francisco, homens
letrados, de que era vigário frei
Henrique que depois foi confessor do rei e bispo de Septa. A eles, com oito
capelães e um vigário, ordenou que ficassem em Calecut para administrarem os
sacramentos aos portugueses e aos da terra que se quisessem converter à fé.
Pronta
esta armada e estando já no Restelo,
o rei foi ao mosteiro de Belém, onde
mandou dizer missa pontifical, tendo
consigo, dentro do cortinado, Pedro
Álvares Cabral.
Houve pregação que fez o bispo de Septa, Dom
Diogo Ortiz que depois foi bispo de Viseu, castelhano de naturalidade,
animava todos aos trabalhos que iam tomar ao serviço de Deus e do seu rei,
apontando aos capitães e aos outros fidalgos que iam na armada muitos louvores
dos seus antepassados com que não tão somente fez inveja aos que ficavam no
reino, mas antes os incitou a quererem muitos deles fazer esta viagem se o
tempo lhes desse para isso lugar.
Acabada
a missa, o bispo benzeu uma bandeira em que estavam pintadas as armas reais do
reino que, depois de benzida, o rei
entregou por sua própria mão a Pedro
Álvares Cabral. Entregue a bandeira, o rei acompanhou Pedro Álvares até aos
batéis das naus que os estavam esperando na praia, onde com os outros capitães
e gente nobre lhe beijaram a mão e se despediram do rei Dom Manuel.
Capítulo
LV
De
como a frota partiu do porto de Belém e do descobrimento da terra de Santa
Cruz, a que chamam Brasil.
No
dia seguinte, dia 09 de Março de 1500,
partiu a frota do porto de Belém, com bom vento da foz a fora e no dia 14, avistaram as ilhas Canárias e no dia 22, com vento favorável, passaram pela ilha de Santiago adiante, onde se apartou da
frota, devido a tormenta, a nau de que era capitão Luís Pires que chegou a
Lisboa desorientada. Por causa desta nau, andou Pedro Álvares Cabral dois dias,
buscando-a com toda a armada, mas vendo que não aparecia, seguiu a sua viagem e
navegando a leste, no dia 24 do mês de
Abril, viram terra e ficaram muito alegres porque, pelo modo como estava
situada, viram que não era nenhuma das que eram descobertas. Pedro Álvares
Cabral mandou fazer rumo na sua direcção e como foram bem à vista, mandou ao
seu mestre que fosse a terra no esquife. Este regressou logo com notícias de
ser muito fresca e viçosa. Vira andar gente baça, de cabelo comprido e liso,
nua pela praia com arcos e flechas nas mãos. Pedro Álvares Cabral mandou alguns
capitães armados irem nos batéis ver se era mesmo assim. Estes, sem saírem a
terra, voltaram à nau-capitã e afirmaram ser verdade o que o mestre dissera.
Quando
já estavam ancorados, durante a noite, levantou-se um temporal e assim
navegaram ao longo da costa até encontrarem um porto muito bom, onde Pedro
Álvares Cabral surgiu com as outras naus e por isso lhe chamou Porto Seguro. Ancorada a frota, Pedro Álvares Cabral mandou alguns dos
capitães nos esquifes ver a terra. Estes logo voltaram com dois homens que
estavam pescando numa almádia. Por eles, quis informar-se da qualidade da
terra, mas achou-os tão bárbaros que, além de não haver intérprete que os
entendesse nem por acenos sabiam dar sinal do que se lhes perguntava. Apesar
disso, Pedro Álvares Cabral mandou dar-lhes de vestir, também dar-lhes
cascáveis, manilhas de latão, espelhos, brincos e deslumbrados, fê-los pôr em
terra. Estes, contentes do bom acolhimento que tiveram, voltaram logo à frota com
outros, carregados de milho, farinha, favas e outros legumes e frutas da terra
que davam a troco de papel, pano de linho, cascáveis, espelhos e outras coisas
deste género.
Achando
Pedro Álvares Cabral tanta familiaridade e simplicidade nesta gente, ordenou
que, no dia seguinte, frei Henrique fizesse missa em terra, onde, em amanhecendo, mandou armar um altar debaixo
de uma árvore muito frondosa. A missa foi de diácono e subdiácono, oficializada
com todos os frades, capelães das naus e sacerdotes que iam na armada e outras
pessoas que entendiam de canto. Houve pregação, estando presentes muitos dos da
terra a todo o ofício divino com grande espanto e encantamento.
Acabada
a missa, Pedro Álvares recolheu-se aos batéis com toda a gente, acompanhando-os
os da terra com grandes festas, cantares, saltos e trejeitos que faziam em
sinal da alegria, tangendo chifres e buzinas, lançando flechas para o ar com
outras mostras de contentamento, levantando as mãos ao céu como que agradeciam
a Deus pela mercê que lhes fizera em lhes deixar ver gente daquela qualidade,
no que iam tão enlevados que muitos deles seguiram os batéis até a água lhes
dar pelos peitos, outros nadando e alguns em almádias até chegarem às naus.
Neste
Porto Seguro, fizeram as naus
aguada, foram abastecidas de carne e tomaram outros mantimentos e refrescos que
os da terra davam por coisas de pouca valia. Estando ali a armada, o mar lançou
um peixe na praia mais grosso do que um tonel e tão comprido como dois tonéis,
a cabeça e os olhos como os de um porco, sem dentes, as barbatanas parecidas às
orelhas de um elefante e o rabo de um côvado de comprimento e outro de largura,
a pele como a de porco da grossura de um dedo.
Antes
que Pedro Álvares partisse deste lugar, mandou pôr em
terra uma cruz de pedra como por padrão,
a que chamou Santa Cruz, com que
tomava posse de toda aquela província para a coroa dos reinos de Portugal,
apesar de agora (erradamente) se chamar Brasil
por causa do pau vermelho que dela vem. Pedro Álvares Cabral despachou para o
reino Gaspar de Lemos com a sua nau
com as novas deste descobrimento e um dos homens da terra ao rei Dom Manuel.
Também deixou na terra dois degredados dos vinte que levava e partiu dali com a
sua armada no dia dois do mês de Maio,
tomando a sua rota para o cabo da Boa Esperança. = p. 81
Capítulo
LVI
Algumas particularidades
da terra de Santa Cruz e costumes da sua gente.
Esta
terra de Santa Cruz que está situada
na demarcação e conquista destes reinos de Portugal, com que a descobriram; os
reis de Castela conquistam aquela a que chamam Antilhas e Perú. São tão
grandes como tantas outras províncias juntas a elas. Correndo de norte a sul,
que por sua grandeza lhe puseram os cosmógrafos deste tempo por nome, mundo novo, as descrições do sítio e
clima, das quais deixarei aos mesmos cosmógrafos cujo ofício o é e eu, seguindo
o que toca ao meu, direi algumas particularidades desta província de Santa Cruz e dos costumes da gente de
que é habitada.
A
terra é muito viçosa, muito temperada e de muito bons ares, muito sadia, tanto
que a maior parte da gente que morre é de velhice mais do que de doenças. Tem
muitas e grandes ribeiras e muitos bons portos e muitas fontes de muito boas
águas. O restante da terra é de montes e vales, cheia de bosques em que há
árvores incalculavelmente fortes, entre as quais é a árvore do bálsamo e o
pau-brasil. Há muitas ervas odoríferas e medicinais, diferentes das nossas,
entre as quais a que chamamos do fumo e eu chamaria erva santa, a que dizem que
eles chamam de betum, de cuja
virtude poderia pôr aqui coisas milagrosas, de que eu via a experiência,
principalmente em casos desesperados de apostemas ulceradas, fístulas, cancro,
pólipos, nervosismo e muitos outros casos. Esta erva trouxe primeiramente a
Portugal Luís de Goes que depois de
ficar viúvo foi para a Índia com a Companhia de Jesus.
A
gente desta província é baça, de cabelo preto, liso e comprido, sem barba e de
meia estatura. São bárbaros que não crêem em nada e não adoram. Não sabem ler
nem escrever, não têm igrejas nem usam imagens de nenhum género frente às quais
possam idolatrar. Não têm lei nem peso nem moeda nem rei nem senhor; obedecem
somente àqueles que, nas guerras que têm uns com os outros, são mais valentes e
escolhem-nos para chefes, enquanto
não cometem cobardia. Andam nus e se alguns se cobrem são os nobres com vestidos
que fazem de penas de papagaio e outras aves de diversas cores, tecidos com
fios de algodão. Os vestidos são umas fraldas que lhes chegam da cintura aos
joelhos e barretes e umas tiras ou capelas que põem ao redor dos braços como
manilhas, tudo das mesmas penas. As mulheres deixam crescer os cabelos e os
homens cortam-nos da sua fronte até ao meio da cabeça. Os que se presumem de
galantes trazem nas orelhas, lábios, narizes e faces furados e nos buracos ossos
de alimárias e pedras de diversas cores muito bem polidas por pendentes
e outros que fazem de uma das árvores que fundem e ficam da dureza e cor
do alambre muito fino. Tudo fazem para assim parecerem mais ferozes e para acrescentar esta ferocidade pintam os corpos de
muitas cores, tanto os homens como as mulheres que não trazem pendentes de
pedra nos lábios e faces, mas sim contas muito finas que fazem de uns búzios
grandes que há no mar que elas estimam muito e deles fazem também pendentes e
luas que trazem nas orelhas e ao pescoço por adorno.
São
grandes flecheiros, tanto que em qualquer parte do corpo de um homem ou animal,
por pequeno que seja, a que apontam, ferram sem quase nunca errarem.
No
ano de 1513, estando o rei Dom
Manuel, em Santos o Velho, tendo despacho numa casa de madeira que lá havia, na
ponta do cais, posta sobre a água, Jorge Lopes, bixorda, que naquele altura tinha o negócio do pau-brasil que
trazem desta terra de Santa Cruz, veio falar ao rei e com ele três homens desta
província, assaz bem dispostos que então vieram numa nau que de lá chegara e
que vinham vestidos de penas com as faces, lábios, narizes e orelhas cheios de
grossos pendentes, tudo como acima está escrito. Cada um deles trazia seu arco
e flechas; vinha com eles um homem português que sabia a língua deles e por
quem o rei lhes fez perguntar algumas coisas e quando falaram na destreza que
têm no atirar, disseram que se Sua Alteza o queria ver que imediatamente lho
mostrariam.
A
maré vazava, nesta altura, e vinham pelo rio abaixo alguns pedaços de cortiça
do tamanho da palma de uma mão ou pouco mais. Contra estes pedaços logo armaram
os arcos e a quantos pedaços atiraram, indo pela água abaixo, espetaram em cada
um a sua flecha sem errarem nenhum tiro, o que eu vi porque estava na mesma
casa quando isto se passou. Os arcos são de pau-brasil e as flechas de canas
empenadas com penas de papagaio, as pontas são de pau e osso de peixe tão
fortes que passam com elas uma tábua.
Alimentam-se
principalmente de papagaios e caracóis que há muitos na terra e muitas outras aves
e alimárias. Comem também lagartos, cobras, ratos e outros animais venenosos.
Pescam
em almádias feitas de casca de árvores, em que navegam e algumas delas são tão
grandes que cabem nelas trinta a quarenta homens. A sua maneira de pescar não é
com redes, mas sim com cabaços que metem dentro da água; uns vão remando as
almádias e os outros batem na água com paus. O peixe amedrontado busca a
superfície da água e os que têm os cabaços metidos na água tentam apanhar os
peixes e assim apanham quantos peixes querem. Comem pão feito de umas raízes
brancas semelhantes às cenouras a que chamam mandioca. Estas são tão venenosas que se alguém as come cruas morre
subitamente. Eles pisam estas raízes nuns almofarizes grandes de pedra e depois
de bem pisadas, espremem-lhe o sumo que é por si muito mais venenoso do que a
raiz e depois de o terem bem espremido põem a massa a secar em cestos que para isso têm e depois de seca, moem-na
para obter a farinha a que chamam caistus
de que fazem um pão tão saboroso que os nossos portugueses o comem com mais
gosto do que pão de muito bom trigo; usam também pão de milho.
Há
na terra muitas favas, feijões e outros legumes de muitas cores que comem. Não
têm vinhas, mas fazem vinho de milho e da mesma farinha caistus que é como
cerveja ou cidra e bebem e embebedam-se amiúde e depois de bêbados são muito
traidores e maliciosos.
Há
também na terra muito algodão que as mulheres fiam e de que fazem cordas e
redes que usam para dormir no ar penduradas em paus ou árvores. Do algodão não
fazem panos porque não sabem tecer.
São
muito dados a agouros, feitiços e deste ofício há entre eles homens e mulheres
a quem chamam pagés e crêem em tudo
o que eles lhes dizem e têm-nos em muita estima e consideração. Os pagés trazem
uma cabacinha feita como cabeça de homem com boca, nariz, olhos e cabelos posta
sobre uma flecha e dentro da cabacinha fazem fumo com folhas secas da erva
betum e do fumo que sai da cabeça, tomam eles pelo nariz tanto que com ele se
embebedam e depois de bem torvados fazem jeitos e cerimónias como se estivessem
endemoniados, dizendo o que lhes dá vontade ou o que o diabo lhes ensina; tudo
o que então dizem, os presentes crêem e têm por coisa certa.
Estando
assim neste desatino, ameaçam muitos de morte e em qualquer tempo depois, estes
morrem. Os outros dizem que viveria muito mais se o pagés não o tivesse
ameaçado. A qualquer lugar onde o pagés vá, fazem-lhe uma grande festa e
recebem-no com danças e cantares e dão-lhe tudo o que acham adequado. Além
disto, abrem-lhe caminhos ou consertam os que já existem por onde ele passa e
por festa cedem-lhe as mais formosas mulheres da terra, casadas e solteiras.
No
casamento, não têm mãe, grau de parentesco só do pai e filhas, irmão e irmã.
Daqui para baixo, casam todos sem diferença; os casados, sempre que querem,
deixam as esposas e tomam outras e se enquanto as têm em casa, estas cometem
adultério, matam-nas ou vendem-nas. Quando as mulheres dão à luz bebé, no mesmo dia se vão lavar ao rio ou fontes
e fazem logo todos os serviços ordinários de casa e os maridos lançam-se nas redes que são as suas camas, onde estão
certos dias e os parentes e amigos vão dar-lhe o profaça do filho ou filha que lhes nasceu. O pai não tem poder
sobre as filhas, mas sim os irmãos que as casam com quem querem e vendem quando
têm necessidade. O que vendem não é por dinheiro, pois não têm moeda nem fazem
dela conta, mas sim a troco de outras coisas que acham adequadas. Estimam muito
pouco as mulheres e têm-nas como escravas para delas se servirem e são comuns a
todos, excepto as casadas enquanto o são.
O
casamento deles não é mais do que estarem homem e mulher numa só casa. Não usam
a boda nem cerimónias matrimoniais quando assim se juntam em casal. São
comummente folgazões e muito alegres porque, como não têm guerra, ocupam o seu
tempo a bailar, comer e beber.
Têm
um certo género de dança em que andam todos ao redor quase como as rodas da
Flandres sem saírem do lugar e começam cantando todos por um tom, cantigas em
que contam as suas valentias e feitos de guerra, dando muitos assobios e
fazendo um grande estrondo com os pés. Ao redor desta ronda andam outros que
dão de beber aos dançantes sem cessarem de noite e de dia, embebedando-se todos
ou a maior parte.
As
casas onde vivem são muito compridas, feitas de madeira, cobertas de colmo,
muradas ao redor duas e três vezes com paus e estacas muito fortes por causa de
terem sempre guerra, uns vizinhos com os outros e nestas casas vivem muitos
juntos; os casados têm seus compartimentos e os outros vivem em comum. Todos os
que vivem dentro de uma casa destas se têm por irmãos e assim se chamam e
morrem uns pelos outros como se fossem verdadeiros irmãos do mesmo pai e mãe.
Estes
homens não fazem guerra por cobiça de riquezas nem menos para conquistarem
territórios porque tudo isto estimam muito pouco. Fazem-na por serem
desacatados pelos seus vizinhos. Quando vão começar alguma guerra, juntam-se
numa casa quatro ou cinco dos mais velhos, daqueles que, sendo mancebos, deram
mostras de valentes e foram bons capitães. Depois de sentados em coroa, pondo
seu vinho ou beberagem no meio, cada um bebe o que quer. Enquanto assim estão,
ninguém ousa falar-lhes ou aproximar-se deles e o que ali concluem é o que os
outros hão-de fazer sem lho poderem contrariar. São tão obedientes ao que estes
mais velhos decidem e ordenam no Conselho que ainda que saibam que a executam e
isso lhes há-de custar a vida, não deixarão de pôr em marcha o que estes lhes ordenaram.
Começa
entre eles a guerra, na maior parte das vezes, nos meses de Fevereiro e Março e
porque a terra é de muitas ribeiras, a guerra ocorre em almádias a que eles
chamam canoas. Levam consigo
mulheres para lhes guisarem o comer e farinha somente porque todos os dias saem
em terra a caçar e dormir e da caça que matam e peixe que apanham se mantêm e,
sem outra provisão, correm ao longo da costa quarenta e cinquenta léguas,
fazendo suas entradas e assaltos nas povoações dos inimigos. Elegem por capitão o mais valente e esforçado de
entre eles. Este governa-os enquanto não comete cobardia porque se o faz, fica
desacreditado entre eles para sempre. Este capitão, antes que partam para a
guerra anda, todos os serões e manhãs, pregando e bradando ao redor das casas,
animando-os para a guerra e ensinando-os como se hão-de aperceber do inimigo e
o que hão-de fazer e levar consigo, declarando-lhes que homens são aqueles com
quem hão-de ir pelejar e que manhas têm e modo de fazer guerra, contando-lhes
também as suas próprias façanhas e valentias e quantos homens matou na guerra e
como fez isso.
A
maneira mais frequente de guerrear desta gente é de assalto e ciladas para
atacarem os outros quando estão desprevenidos. São tão destros no atirar que,
nas guerras que têm com os portugueses, metem-lhes as flechas pelas junturas
das armas, pelo que os portugueses se acostumaram a uns laudéis (vestimenta antiga) de pano de linho que os cobre da cabeça aos pés, embutidos de algodão
tão grossos que as flechas embaçam (ficam presas) neles, mas os flecheiros agora, por causa disto, já não lhes atiram,
senão aos olhos e são nisso tão certeiros que matam muitos.
Além
dos arcos e flechas, usam umas espadas de pau muito duro e pesadas, com as
quais, onde acertam do primeiro golpe, partem qualquer membro em que tocam. Os
que matam na guerra e alguns dos que aprisionam, principalmente os velhos,
comem logo e os outros vendem ou levam presos em cordas com que todos entram
triunfantes pelos lugares onde moram, mas a carne humana que comem não é entre
eles coisa igual porque não comem senão a dos que aprisionam e têm por
inimigos. Os que lhes morrem na guerra, enterram-nos no mesmo lugar e se é
perto de suas povoações, levam-nos consigo para lá os enterrarem, no que há
grandes choros, lamentações e por dó tanto os homens como as mulheres rapam a
cabeça sobre as sepulturas e fazem fogueiras, comem e bebem em certos dias em
que aos convidados contam as façanhas e proezas do defunto.
Aos
cristãos que capturam, se têm barba ou cabelos, rapam-lhe os da cabeça e
arrancam-lhe a barba como todos os outros pêlos do corpo. Aos que capturam na
guerra dão mulheres para os servirem e dormirem com elas e se delas tiverem
filhos, os senhores os vendem ou comem. Tratam muito bem estes prisioneiros de
comer e beber e as mulheres que os servem trabalham para lhes dar boa
hospitalidade.
Quando
querem fazer alguma festa, matam um destes prisioneiros e a mulher com que teve
coabitação, ainda que dele tenha filhos, é a primeira que lhe lança uma corda
ao pescoço. Depois os homens atam outras cordas pelo meio do corpo, braços e
pernas e assim o amarram a um pilar no meio da casa e o pintam e empenam de
penas de aves. Para estas festas fazem muita bebida alcoólica e juntam muita
caça para se banquetearem todos os que a ela vêm e ao mesmo prisioneiro desatam-no
do pilar algumas vezes e atado com a corda que tem pela cintura, fazem-no
bailar e alegrar-se com a bebida alcoólica que lhe dão amiúde. Isto dura três
dias, em que não fazem outra coisa que comer, beber e bailar. Depois disto,
levam o prisioneiro a um curral, solto dos pés, braços e mãos e as mulheres e
meninos têm-no seguro por cordas que lhe ficam atadas na cintura, atirando-o de
uma parte para a outra, arremessando-lhe laranjas e outras frutas que ele
apanha do chão e pode atirar-lhas de volta assim como pedras que possa apanhar
se as houver no chão e por todo o caminho vão dando de beber ao prisioneiro que,
por isso, vai muito alegre e também os que o levam vão bebendo, cantando e
saltando e desde que saem de casa até chegarem ao lugar onde se fará a execução
vão dizendo ao condenado muitas injúrias e que o hão-de comer por vingança dele
e de todos os seus parentes e amigos. Ele responde muito alegre:
- Isso não me interessa
mesmo nada e morro com muito esforço como o deve fazer um homem valente. Se me
vão matar também eu já matei e comi muitos dos vossos. Também vou consolado
porque tenho irmãos e parentes que hão-de vingar a minha morte.
Depois
de chegados ao curral, vem o que o teve preso, bailando contra ele todo pintado
com uma gorjeira de penas de cores
que cobre todo o pescoço e parte dos ombros e com uma espada grande de pau na
mão cheia também de penas, gritando e assobiando contra o preso para o ferir,
mas ele faz o que pode para lhe tirar a espada das mãos, estorvado pelas
mulheres e meninos que puxam por ele com as cordas de uma parte para a outra até
que o da espada o fere à sua vontade e lhe faz saltar o cérebro fora da cabeça
porque este é o derradeiro golpe que lhe dá nem lhe pode dar mais, segundo o
seu costume.
Depois
corta-lhe a cabeça, as mãos e todo o resto do corpo as mulheres lançam para uma
fogueira que para isso fizeram, onde o chamuscam como a um porco e depois de
bem chamuscado, abrem-no com uma cana muito aguda como faca e lhe tiram as vísceras
que, chamuscadas no mesmo fogo, são comidas pelas mulheres e meninos. Os homens
talham a carne do corpo em postas e mandam-nas de presente uns aos outros. Com
esta carne, em sinal de vingança, fazem maiores festas e bebem muito mais
daquele seu vinho ou bebida que antes tinham feito.
Há
nesta província de Santa Cruz uma gente a que chamam papanazes que vivem nos desertos com mulheres e filhos. Não têm
casas nem lugares nem camas nem redes para dormirem; vivem de roubos e rapina.
A maior parte deles são homens de estatura mediana, andam nus; antigamente
foram senhores de toda aquela terra e, por guerras, os que habitam ao longo de
toda aquela costa de mar os lançaram dela, pelo que são seus inimigos
principais. Fazem guerra contínua e dura a todos os que vivem em casas. Têm
língua própria, mas entendem-se bem uns aos outros. Usam o mesmo modo de comer
os prisioneiros. Os papanazes não fazem justiça por nenhum delito, excepto por homicídio que é deste modo. Os parentes
do homicida vão entregá-lo aos parentes do morto que o afogam e enterram,
presentes uns e outros (os parentes do homicida e do morto) com muitos prantos e choros, comendo e
bebendo por muitos dias e assim ficam amigos e se, por acaso, o homicida foge e
se não pode fazer entrega dele aos parentes do morto, então dão-lhes as filhas
e irmãs do homicida ou se as não tem, as parentas mais chegadas do homicida por
prisioneiras dos parentes mais chegados do morto e assim ficam amigos.
Desta
gente tão bárbara e tão inculta há já muitos que se converteram à fé de Nosso Senhor Jesus Cristo e que são
aliados por casamento como nós e vivem do mesmo modo que nós vivemos.= p. 85
Capítulo
LVII
Do que Pedro Álvares
Cabral passou depois que partiu da terra de Santa Cruz até chegar a Calecut e
do sítio da ilha e cidade de Quíloa.
Pedro Álvares Cabral partiu da terra de Santa Cruz a um
domingo, dia 24 de Maio, e armou-se
um furacão, seguido de uma trovoada
com tanta força de vento e tão de súbito que, à vista uns dos outros,
desapareceram quatro naus, sem delas escapar coisa viva e eram seus
capitães Bartolomeu Dias, Aires Gomes da Silva, Vasco de Ataíde e Simão de Pina. As sete naus que ficaram apartaram-se umas
das outras e andaram a tentar juntá-las até ao dia 16 de Julho em que se juntaram seis porque a de Pero Dias foi ter ao Estreito da Arábia
e à cidade de Magadoxo, donde regressou
ao reino de Portugal só com seis homens, depois de ter passado muitos perigos e
trabalhos.
Estas
seis naus, depois de terem dobrado o Cabo da Boa Esperança foram lançar âncora defronte de uma terra
fresca, de muitas ribeiras, arvoredos e animais, mas nenhum dos naturais ousou
vir às naus nem da praia quiseram comunicar com os nossos nem lhes vender
mantimentos de que (os
nossos) tinham muita necessidade pelo que
se fez à vela e, navegando ao longo da costa com vento de bonança, foram dar a Sofala até estarem junto de duas ilhas
que estão perto de terra firme a que agora chamam as primeiras. Junto de uma delas estavam duas naus que Pedro
Álvares, por estas levantarem âncora, seguiu e as tomou sem estas se
defenderem. O senhor destas duas naus chamava-se xeque Foteima, tio do rei de Melinde, que vinha de Sofala com muito
ouro que fora resgatar com os da terra e, com medo das nossas naus, cuidando
que eram corsários, se aquietava e Pedro Álvares, sabendo que estava em frente
de Sofala e o modo da terra e o trato dela o deixou no mesmo lugar em que o
tomaram com suas naus, ouro e mercadorias que trazia e se partiu a caminho de Moçambique onde chegou no dia 20 de Julho e fez aguada pacificamente,
comprando mantimentos e pilotos até à ilha de Quíloa.
Neste
caminho, indo sempre ao longo da costa, viu muitas ilhas e muito bem
aproveitadas, todas do senhorio do rei de Quíloa,
cujo reino vai desde o Cabo das Correntes até perto da cidade de Mombaça que
são quase quatrocentas léguas de costa, além de muitas ilhas situadas ao longo
dela que rendem muito ao rei.
Este
rei e os naturais e moradores da ilha são da religião de Maomé; a maior parte
negros e alguns deles baços. Falam todos árabe, andam muito bem vestidos no
trajar mourisco e turco. Têm negócios por toda aquela costa até ao Estreito do
mar da Arábia. A cidade e ilha de Quíloa estão a cem léguas de Moçambique e
muito perto de terra firme. A ilha é muito viçosa de frutas, hortaliças e boas
águas. Há pelo sertão muitos animais de grande porte e pequeno e muita caça e
montaria e no mar muitos e bons peixes. É uma terra muito fértil de
sementeiras.
A
cidade é grande e muito populosa; as casas são de pedra e cal, de muitos
sobrados e de terra batida, muito bem guarnecidas e caiadas na parte de dentro
e de fora e muito bem decoradas por a gente da terra ser rica. As naus em que
navegam são de cavilha, cozida com cairo, breadas com incenso bravo por na
terra não haver breu.
Depois
de Pedro Álvares Cabral ter chegado a Quíloa,
que aconteceu no dia 26 de Julho,
fez saber ao rei, que se chamava Abraemo,
da sua vinda e que lhe trazia cartas do rei, seu senhor, e que se queria
encontrar com ele para lhas dar. Pedia-lhe que ordenasse onde isto poderia
acontecer porque ele não podia sair a terra por assim o seu rei ter
estabelecido.
Mandou
Afonso Furtado com este recado que
tinha a função de escrivão da
feitoria que se havia de fazer em Sofala e com ele sete dos mais bem vestidos
da frota para o acompanharem.
O
rei ficou muito satisfeito por os ver e fez-lhes bom acolhimento, respondendo a
Pedro Álvares Cabral:
- A vossa vinda é muito
boa. Agradeço a Deus por ver gente de terras tão distantes das minhas neste meu
porto e de um rei e senhor tão poderoso como me informaram que é o rei de
Portugal. Se não nos podemos encontrar em terra, pois que nos encontremos no
mar.
Com
este recado para Pedro Álvares Cabral, enviou também muitos refrescos por um
dos principais da sua casa, informando também que se podiam encontrar no dia
seguinte.
No
dia seguinte, todos os capitães se puseram de trajo de festa, cada um em seu
batel, encaminhando-se para a cidade, donde o rei já partira, acompanhado de almádias com gente vestida de panos de
tela de ouro, brocados escarlates e outros de seda e algodão, todos com
terçados cingidos, punhais e agomias ao lado deles de ouro e pedraria muito
valiosas. Tangiam muitas buzinas, anafis, trombetas e outros instrumentos e dos
batéis respondiam-lhes com as nossas
e das naus que estavam engalanadas, com artilharia.
Nesta
altura, o rei de Quíloa na sua almádia
e Pedro Álvares Cabral no seu batel
se juntaram bordo a bordo, onde depois de feitas as cerimónias e cortesias
requeridas, lhe deu as cartas que levava do rei Dom Manuel, escritas em árabe e
em português. O rei de Quíloa logo fez ler as cartas em árabe e mostrou grande
contentamento pelo seu conteúdo, fazendo grandes oferecimentos a Pedro Álvares
Cabral afirmando:
- De agora em diante,
tenha-me por irmão e aliado do rei de Portugal. Ter um tão grande e poderoso
rei por irmão e amigo faz-me muito ditoso.
Ainda
estiveram um bom pedaço com outras conversas e antes da despedida, ordenaram
que, no dia seguinte, Afonso Furtado
fosse a terra para com ele estabelecer a
paz e amizade.
Tudo
aconteceu ao contrário porque o rei de Quíloa, induzido pelos mouros, quando
Afonso Furtado lhe foi falar, achou-o mudado, dando desculpas mais cheias de
ódio do que de amizade. Contudo, parecendo a Pedro Álvares Cabral que esta
atitude poderia mudar, esteve ali ainda três dias, mandando-lhe sempre recados
de amigo, mas sabendo por Molei Homar,
irmão do rei de Melinde que ali estava, naquela altura, como o rei de Quíloa
mandava fortalecer a ilha e a cidade, partiu para Melinde, onde chegou no dia 02
do mês de Agosto.
Sabendo
o rei de Melinde da sua chegada, logo mandou visitá-lo com muitos e bons
refrescos. Com estes que trouxeram os refrescos, mandou Pedro Álvares visitar o
rei de Melinde com um presente e
informá-lo de que trazia cartas do rei de Portugal e também o seu embaixador que
ele mandara a Portugal. O rei de Melinde mostrou grande contentamento com o
recado como se tivesse ganhado um tesouro e com o portador do recado mandou um
homem fidalgo da sua Casa fazer grandes oferecimentos a Pedro Álvares Cabral.
Assim,
no dia seguinte, mandou Pedro Álvares por Aires
Correia as cartas ao rei e o presente acompanhado dos homens mais bem
vestidos da frota, com trombetas e atabales. Informado o rei do aparato com que
Aires Correia se lhe dirigia, mandou-o receber à praia pelos principais da sua
corte. Depois de desembarcados, foram os nossos assim como os que os vieram
receber à praia por entre duas filas de mulheres que tinham perfumadores nas
mãos com muito bons cheiros e, nesta ordem, chegaram à casa em que o rei os
estava esperando sentado numa cadeira lavrada de ouro e prata.
Quando
Aires Correia chegou fez a sua cortesia, após a qual deu ao rei as cartas que
para ele o rei Dom Manuel escreveu
em árabe e português e lhe entregou pela mão o seu embaixador e deu o presente
e passadas muita conversa, o rei rogou a Aires
Correia que os dias que ali estivesse a armada, ele fosse seu hóspede, o
que fez com licença de Pedro Álvares.
No
dia seguinte, o rei desejoso de se encontrar com Pedro Álvares Cabral e sabendo pelo que já se passara com Vasco da
Gama e pelo que Aires Correia dissera, que era escusado insistir com Pedro
Álvares Cabral para que viesse a terra, mandou-lhe recado que queria
encontrar-se com ele no mar e assim foi feito.
O
rei, para mostrar a todo o povo o rico presente que recebera, mandou pôr um
lindo jaez de ouro numa gineta (mamífero
com pelagem cinzento clara muito manchada de negro – gato bravo) que vinha com as outras peças do presente,
num cavalo muito formoso, no qual cavalgou e nele veio até entrar para a
almádia, em que foi falar a Pedro Álvares que já o estava esperando com todos
os capitães da frota, cada um em seu batel, todos com trajos de festa.
Nesta
visita houve muitos oferecimentos e cumprimentos de amizade e despediram-se um
do outro, depois de terem falado por um bom espaço de tempo e porque a intenção
de Pedro Álvares era partir logo para não perder o tempo que tinha para esta
viagem, pediu dois pilotos ao rei que logo lhos mandou dar.
Deixou
Pedro Álvares ali dois degredados, João
Machado e o outro Luís de Moura,
para se informarem sobre o sertão e saberem se podiam ir por terra à corte do
imperador da Etiópia, rei do Abexim,
a que erradamente chamam de Preste João, coisa que o rei Dom Manuel muito lhe recomendou
quando partiu do reino. Sobre João Machado e os bons serviços que ele fez
naquelas partes a estes reinos de Portugal se fará adiante menção.
Isto
feito, Pedro Álvares Cabral partiu do porto de Melinde no dia 07 do mês de Agosto
e no dia 22 chegou à ilha de Anchediva, onde esteve alguns dias,
refazendo-se do trabalho do mar e dali partiu para Calecut onde chegou no dia
13 do mês de Setembro de 1500. =
p.
87
Capítulo
LVIII
Do que Pedro Álvares
Cabral passou em Calecut.
No mesmo dia em que Pedro Álvares Cabral chegou ao porto de Calecut, vieram-no visitar à nau, da parte do rei de Calecut, dois
naires da sua Casa com um mercador guzarate, homem rico, com os quais Pedro
Álvares Cabral mandou João de Sá que
era um dos que foram na viagem de Vasco da Gama e por intérprete Gaspar da Gama que vinha com ele. Por eles
mandou pedir licença ao rei para com ele se encontrar e dar-lhe as cartas e o
presente que ele lhe trazia do rei, seu senhor e também lhe mandou quatro
malabares dos que Vasco da Gama levara, vestidos à portuguesa. O rei de Calecut
mostrou muito contentamento ao receber tudo isto.
Com
os que trouxeram o recado, Pedro Álvares Cabral tornou a mandá-los e com eles Afonso Furtado e Aires Correia e com estes o rei de Calecut decidiu que se
encontrassem numa casa junto da praia, a que eles chamam Cerame, cuja casa (dados reféns de uma e outra parte) o rei veio
acompanhado por todos os senhores e naires que então andavam na sua corte e com
muitos instrumentos, entre os quais vinte trombetas – dezassete de prata e três
de ouro – lavradas de obra muito subtil e adornadas com pedraria.
Depois
do rei estar no Cerame, Pedro
Álvares Cabral veio a terra com alguns dos capitães, cada qual em seu batel,
deixando por capitão das naus Sancho de
Thoar. Quando Pedro Álvares chegou à praia, tomou um andor, em que foi
acompanhado de muitos caimães, panicães e naires que iam a pé até ao Cerame. Lá
encontrou o rei vestido com panos de algodão, seda e ouro e adornado de tanta e
tão rica pedraria que não somente lhe fez espanto quando ele chegou como as
chamas que delas saiam lhe impediam a visão.
A
casa estava aparamentada e alcatifada e havia nela muitas e grandes tochas de
prata, sobre que estavam uns candeeiros também de prata, alumiados com azeite,
dando tanta claridade que escurecia o dia.
Antes
de entrar no Cerame, vieram receber Pedro Álvares Cabral alguns senhores dos
que depois ficaram com o rei. Seis passos antes de chegar ao estrado sobre o
qual ele estava deitado num catel, estavam dois seus irmãos e um pouco mais
adiante uma cadeira de prata, em que o rei mandou Pedro Álvares Cabral se
sentar e dali, por intérprete, perguntou-lhe como estava, como fora a sua
viagem e como ficou o rei de Portugal, seu irmão. Pedro Álvares respondeu às
suas perguntas e deu-lhe as cartas que lhe trazia do rei, seu senhor e o
presente. Depois decidiu com ele boa parte dos negócios a que ia e entre outras
coisas concedeu-lhe que toda a gente da armada pudesse andar muito segura em
terra e fazer seus negócios como os naturais. Para a mercadoria e oficiais do
rei, seu irmão, lhe mandaria dar uma casa em que todos estivessem seguros e
pudessem fazer o que se lhes cumprisse.
Depois
de tudo estabelecido do que Pedro
Álvares Cabral trazia em mente, este regressou às naus, acompanhado pelos
senhores até aos batéis a mandado do rei. Passados três dias, Pedro Álvares
Cabral mandou recado ao rei por um cavalheiro Francisco Correia, pedindo-lhe que lhe mandasse dar a casa que lhe
prometera para segurança dos oficiais e dos bens do rei, seu senhor. O rei de
Calecut mandou dar-lhe uma muito boa. Então Pedro Álvares ordenou que Aires Correia fosse a terra e depois de
lá estar e ver a qualidade da casa, mandasse levar das naus os bens e
mercadoria que lhe parecesse necessários.
As
casas cedidas eram de um mouro guzarate que logo começou a usar de pouca
verdade com os nossos. Aires Correia pediu outras casas ao rei que logo lhe
mandou dar outras muito melhores e mais próximas da praia, pertencentes a um
mouro de nome Cojebequi que era um
dos homens mais ricos da cidade que, por se afeiçoar à nossa nação e ser muito
amigo e servidor dos portugueses, destruiu depois o rei de Calecut e lhe tomou
mercadoria que valia mais de oitocentos mil cruzados. Este Cojebequi, vi eu
depois, quando era rapaz, neste reino de Portugal, onde veio requerer
satisfação de suas perdas ao rei Dom Manuel e pedir-lhe mercês, a que Dom Manuel
acedeu e deu-lhe ofícios honrados na Índia com que regressou contente para a
sua terra. Destas casas cedidas aos portugueses em Calecut fez o rei doação para todo o sempre aos reis de Portugal e disso mandou
fazer o padrão numa lâmina de ouro com letras talhadas ao buril com o seu
sinal esculpido e selo de ouro pendente. Além disso, mandou que, sobre a mesma
casa, se pusesse uma bandeira com as armas reais de Portugal para se saber que
a tinha dado aos portugueses.
Nesta
altura, teve o rei aviso de que partira da cidade de Cochim uma nau que vinha
da ilha de Ceilão em que mercadores levavam elefantes para o reino de Cambaia,
entre os quais havia um bem-ensinado para a guerra que não lho quiseram vender.
O rei de Calecut mandou pedir a Pedro Álvares Cabral que a mandasse tomar porque
era de seus inimigos. Logo Pedro Álvares mandou Pero de Ataíde e com ele Duarte
Pacheco Pereira, Vasco da Silveira
e João de Sá e com estes o rei
mandou alguns mouros para verem o que os nossos faziam.
Quando
o rei mandou este recado a Pedro Álvares, esta nau já estava à vista da cidade
de Calecut, pelo que Pero de Ataíde
se fez logo à vela e a foi acometer, dando-lhe caça e sem a querer abalroar,
por a sua nau ser muito inferior à nau dos mouros que era de mais de seiscentos
tonéis, lhes mandou que a detivessem. Eles, rindo-se e zombando, começaram aos
gritos, a atirar flechas e a descarregar algumas bombardas de ferro que traziam.
Os nossos responderam-lhes com bombardadas tão amiúde à nau de Ceilão que a
fizeram recolher, já anoitecia, à barra de Cananor,
onde se meteu entre quatro naus de mouros que ali estavam ancoradas, mas isto
não ficou por aqui já que, no dia seguinte, os nossos a tiraram dali, apesar
das quatro naus e de todos os de Cananor que lhe acudiram e a levaram a Calecut. O rei espantado veio à praia
ver a nau, da qual e de tudo o que nela vinha, que era de grande valor, Pedro Álvares Cabral entregou ao rei de
Calecut em nome do rei de Portugal, seu senhor.
No
dia seguinte, informado o rei de Calecut pelos mouros que foram com Pero de Ataíde de quão animosamente os
nossos o fizeram, mandou pedir a Pedro Álvares Cabral que lhe mandasse os homens
que foram naquele ataque para se poder gabar que vira homens dignos de serem
vistos por todos os reis e senhores do mundo. Fez a todos mercês e em
especial a Duarte Pacheco Pereira
por os mouros lhe dizerem que nunca viram homem tão animoso nem tão
esforçado e que ele fora a causa única de aquela nau ser tomada. = p. 90
Capítulo
LIX
De como, por traição dos
mouros de Calecut, foi morto Aires Correia e outros portugueses e do que Pedro
Álvares Cabral fez sobre isso.
Os
mouros de Calecut receosos de que os portugueses passassem a ser, dali por
diante, mais favorecidos do rei e dos da terra do que eles, começaram a buscar
todos os meios e modos que puderam para desfazer esta amizade, comprando
secretamente as especiarias que havia na cidade e vinham de fora e as que o
feitor Aires Correia punha preço,
por meio dos gentios, atravessavam-se, lançando valores sobre os dele de
maneira a que os preços das especiarias visadas por Aires Correia ficassem
sobrevalorizadas ou não as pudesse comprar. Pedro Álvares Cabral, agastado por
já haver três meses que ali estava, mandou dizer ao rei que se lembrasse de
como lhe prometera carga para as suas naus desde o dia que ali chegara a vinte dias e que se
carregariam primeiro do que nenhuma das naus que estavam no porto e tudo se
fazia ao contrário porque nem as naus estavam carregadas nem o feitor, por
nenhum preço, conseguia comprar especiarias e sobretudo que, no porto, se
carregavam naus de mercadores e isso não se podia fazer sem o seu consentimento
(do
rei) ou sem os seus oficiais saberem.
Tudo ao contrário do que prometera. Pedia-lhe que mandasse resolver isto com
brevidade porque era já tempo de regressar.
O
rei mostrou desgosto, dizendo que de tal coisa não era sabedor e que os mouros
usavam com ele manhas e apesar de ele o proibir, eles carregavam secretamente
as suas naus de especiarias. Dava licença a Pedro Álvares Cabral para tomar das
naus deles as especiarias que lhe fossem necessárias, pagando-lhes o custo.
Pedro
Álvares não ficou muito satisfeito com este recado porque sabia já, por
experiência, que o rei de Calecut era muito instável e mudável e via que o
recado era cheio de algum conselho armado em seu prejuízo. Por isso pôs em
dúvida pôr em marcha tal conselho num lugar onde os prejudicados seriam mais
poderosos e mais favorecidos do que os nossos, mas movido por requerimentos que
todos os dias lhe enviava de terra Aires
Correia dizendo-lhe que, sem tomar especiarias das naus dos mouros, a
armada regressaria vazia para o reino porque ele não conseguia obter mais do
que a que já tinha comprada e isto com protestos de danos e interesses.
Também
mandou recado ao capitão e mestre de uma nau de que era proprietário um mouro
rico de Calecut de nome Cogecem Micide
que estava já fora do porto, carregada de mercadorias e âncora a pique, que se
não fizesse à vela por o rei de Calecut assim mandar. Não fizeram caso,
mandou então aos mestres da frota que, cada um em seu batel, armados lhe fossem
trazer aquela nau à toa para dentro do porto, o que fizeram sem contradição.
Sabendo
o proprietário da nau do ocorrido, foi logo queixar-se ao rei e após a outros
seus próximos e amigos. Finalmente que, com a resposta que receberam do rei e o
ódio que tinham aos nossos por serem cristãos, se juntaram os mais dos mouros
da cidade e com mão armada foram à Casa
da Feitoria de Calecut em que poderia haver até setenta homens portugueses
bem descuidados do que lhes aconteceu. Aires
Correia mandou logo colocar uma bandeira em lugar que se podia ver muito
bem da frota, pelo que Pedro Álvares
Cabral, por estar na cama doente de febres, mandou Sancho de Thoar que, com todos os batéis da frota, se fosse a terra
e socorresse os nossos, dos quais os mouros entretanto feriram e matavam com
flechas muitos dos que estavam sobre as paredes da casa, defendendo-a para que
não quebrassem as portas. Isto durou tanto que havia já ao redor da casa mais
de quatro mil mouros e naires que também os ajudavam e, vendo que não podiam
ganhar a casa com apetrechos, derrubaram um lanço da parede, por onde começaram
a entrar. Os nossos, vendo isto, saíram em fila por uma porta que dava para a
praia, seguindo-os os mouros. Matavam e feriam os nossos até estes chegarem
onde já Sancho de Thoar estava com
os batéis que, para recolher os que vinham fugindo, mandou saltar alguns para
terra e os que vinham fugindo se acolheram e juntos embarcaram os que puderam
escapar com a água até ao peito. Morreram e foram capturados nesta peleja
cinquenta dos nossos em que entre os mortos um foi Aires Correia.
Os
que se salvaram ficaram a maioria feridos e destes alguns morreram. A Casa da
Feitoria foi saqueada e roubada de tudo o que nela havia. Entre estes que se
acolheram à frota um foi frei Henrique
com algumas feridas nas costas e quatro frades dos seus e Nuno Leitão que sempre trouxe a par de si um filho de Aires
Correia, de nome António Correia que
ainda vive. António Correia fez
depois muitos e assinados serviços a estes reinos de Portugal como se dirá na
altura própria. Esta desventura aconteceu no dia 16 de Dezembro de 1500.
Comovido
Pedro Álvares Cabral, vendo que em
todo aquele dia em que esteve sem fazer mudança nem dar sinal de querer fazer
guerra à cidade, o rei de Calecut não lhe mandava nenhum recado nem desculpa
de um tão grande desastre, no dia seguinte, com conselho dos capitães e
pessoas principais da armada, acometeu dez naus de mouros que estavam no porto,
no que houve bastante resistência da parte deles; mas enfim, depois de ter
morto mais de seiscentos, as naus foram assaltadas, mas nelas se achou alguma,
mas pouca especiaria e outras mercadorias e mantimentos e três elefantes que
Pedro Álvares Cabral mandou matar e salgar para provisão da armada e alguns
mouros que encontrou escondidos pelas naus, mandou repartir pela frota para
servirem no que fosse necessário por nela haver falta de gente pela muita que
já tinha morrido.
Isto
feito, mandou pôr fogo às dez naus e todas arderam à vista da cidade sem pessoa
alguma ousar lhes acudir por causa da nossa artilharia nem na altura da peleja
nem depois de lhes terem posto fogo. Entre estas naus estava uma do mouro Cogecem Micide sobre que se armou esta
briga. Nela não se encontrou nenhuma especiaria, donde manifestamente se viu
que ou os mouros enganaram o rei de Calecut dando-lhe a entender que estava
carregada ou o rei, movido pelo conselho dos seus (que na maior parte favoreciam
os mouros), consentiu na mesma traição. Queimadas as naus em que se passou boa
parte da noite, logo no dia seguinte pela manhã, Pedro Álvares Cabral mandou
bombardear a cidade, o que se fez tão bravamente que muitos saíram dela e mesmo
o rei, aos pés do qual um pelouro de bombarda matou um naire muito seu íntimo.
Tendo já os nossos, bem à sua vontade, bombardeado a cidade e derrubado muitas
casas e morta muita gente, Pedro Álvares Cabral se fez à vela para Cochim por saber que o rei desejava a
nossa amizade, onde chegou no dia 24 de
Dezembro desse ano de 1500.= p. 91
Capítulo
LX
Do que Pedro Álvares
Cabral passou em Cochim, Cananor e daí até chegar a Lisboa.
Esta
cidade de Cochim está situada ao
lado de um rio que tem a sua foz no mar, junto dela e o rio e o mar fazem a
ilha de Cochim. O porto é limpo e seguro; os edifícios são como os de Calecut e
das outras povoações do Malabar. Há nela muitos mercadores mouros e gentios. A
terra é pobre, contudo graciosa. O principal negócio que tem é o da pimenta. O Estado do rei tem menos
gente e riqueza do que o de Calecut, a quem, naquele tempo, obedecia e era
obrigado a servir nas guerras que o rei de Calecut tinha com outros reis e
era-lhe tão sujeito que, quando sucedia rei novo em Calecut, vinha fazer a sua
entrada em Cochim e assim que entrava na cidade depunha logo o rei de Cochim,
ficando na sua mão devolver-lhe o reino ou não e dá-lo a quem lhe aprouvesse.
Com o favor dos nossos, ficou isento destas condições e fez-se muito rico e
poderoso. Os costumes dos de Cochim são como os de todos os outros habitantes
do Malabar, de que atrás fica dito o necessário.
Assim
que a armada surgiu em Cochim, Pedro
Álvares Cabral mandou Jogue visitar
o rei. Jogue, em Calecut, veio meter-se na frota, fez-se cristão e foi-lhe dado
por nome Miguel e apelido Jogue como já era sendo gentio. Jogues
são homens religiosos que andam por todas aquelas províncias pregando as suas
religiões, muito abstinentes de vida. Por ele, Pedro Álvares mandou dizer ao
rei que, a troco de dinheiro e outras coisas, lhe mandasse dar pimenta e outras mercadorias que, na altura, houvesse na cidade para quatro
naus a que ainda faltava carga. O rei respondeu-lhe:
- A Vossa vinda é muito bem
acolhida e tenho-me por ditoso por ter vindo à minha cidade. Relativamente à
carga, pode mandar comprar livremente o que lhe seja necessário. Tudo Vos será
vendido pelos preços de mercado. Para que assim seja, envio dois naires, dos
principais da minha Casa, por reféns dos que vão a terra.
Pedro
Álvares ficou muito satisfeito com tão boa resposta e, na mesma hora, ordenou
que fossem a terra, por feitor, Gonçalo
Gil Barbosa e por escrivães Lourenço
Moreno e Sebastião Álvares e por
intérprete Gonçalo Madeira de Tânger
que falava bem árabe e com eles cinco degredados para os servirem. O rei mandou
eles serem recebidos na praia por pessoas principais da sua corte e lhes fez
muito bom acolhimento. Gonçalo Gil Barbosa e Lourenço Moreno, depois de darem o
recado de Pedro Álvares Cabral ao rei de Cochim, apresentaram-lhe algumas peças de prata e outras coisas que por eles Pedro
Álvares Cabral lhe mandou. O rei ficou muito contente e depois de falar com
eles sobre o negócio da carga se despediu deles e mandou entregar-lhes uma casa segura e deu-lhes naires para guarda de suas pessoas e,
logo no dia seguinte, se entendeu na compra da pimenta e outra mercadoria que
havia na cidade. Tudo se fazia por ordem do rei e com grande diligência e verdade como se o negócio fosse todo do rei.
Depois de feita a carga, vieram recados a Pedro Álvares dos reis de Cananor e Coulão, reis ricos e
poderosos na terra do Malabar, que se quisesse vir tomar carga a seus portos
que tudo lhe dariam por preços razoáveis e as naus se carregariam com
a maior brevidade do que em nenhuma outra parte do Malabar e outros
oferecimentos de amizade. Pedro Álvares Cabral escusou-se, dizendo que, quando
em Cochim não achasse carga que pretendia alcançar, então iria comprá-la à sua
terra (de cada um deles).
A
boa vontade que lhe mostravam seria tomada em conta quando precisasse. A Pedro
Álvares Cabral vieram dois irmãos
indianos cristãos naturais da cidade de Cranganor: um deles de nome Ioseph e outro Mathias, pedindo-lhe que os quisesse levar consigo a Portugal
porque queriam daí ir a Roma e a Jerusalém, que muito agradou a Pedro
Álvares e os mandou acomodar na sua nau. Tendo Pedro Álvares Cabral feito a carga da pimenta que lhe era
necessária em Cochim e Cranganor que fica de Cochim a cinco léguas, tudo
durante vinte dias, o rei de Cochim mandou-lhe dizer que, de Calecut, tinha
saído uma armada de vinte naus e outros navios que o vinham buscar, a mandado
do rei de Calecut, para pelejarem com ele e nesta armada vinham quinze mil
homens de guerra e, logo no dia seguinte, dia 09 de Janeiro apareceu a armada.
Pedro
Álvares, que já estava prestes a partir, fez-se à vela com intenção de os ir
acometer, mas pelo vento ser contrário não lhes pôde chegar nem eles ousaram
abalroar as nossas naus com medo da nossa artilharia. Vendo isto, Pedro Álvares
Cabral seguiu para o reino de Portugal, deixando em Cochim, Gonçalo Gil Barbosa
e Lourenço Moreno com outros
portugueses.
Quando
passou perto de Cananor, veio até
ele, num zambuco, um naire por quem o rei de Cananor lhe mandara dizer que a
carga que lhe faltava quisesse ir comprá-la àquela sua cidade; far-lhe-ia muito
bom acolhimento e lhe dariam tudo o que fosse necessário. Pedro Álvares Cabral
aceitou o convite e foi logo comprar canela
e algumas outras mercadorias que lhe faltavam.
No
porto desta cidade, Pedro Álvares Cabral entrou no dia 15 do mês de Janeiro de
1501. Cananor é uma cidade grande e bem povoada. As casas são semelhantes
às outras do Malabar. Tem uma baía muito grande e de bom porto. É muito
abastada de carnes, peixe, frutas e muitos outros mantimentos.
O
rei é gentio e um dos três reis principais do Malabar que são o de Calecut, o
de Coulão e ele, o terceiro, mas não tão poderoso como os outros dois. Em
Cananor, Pedro Álvares Cabral comprou algum gengibre, quatrocentos quintais de canela e outras mercadorias. O rei de Cananor, sabendo disto e
cuidando que Pedro Álvares não comprava mais por lhe faltar dinheiro,
mandou-lhe dizer que carregasse quanto quisesse que ele mandaria pagar tudo do
seu bolso, pois bem sabia que em Calecut tinha sido roubado e saqueado. Pedro
Álvares Cabral agradeceu muito e aos mensageiros mostrou um grande cofre cheio
de cruzados, respondendo aos mensageiros do rei que não comprava mais por já
ter toda a carga que as naus podiam levar.
Isto
feito e as mercadorias recolhidas, tudo num só dia, Pedro Álvares partiu dali
no dia 16 de Janeiro, levando
consigo um embaixador que o rei de
Cananor mandava ao rei Dom Manuel. Estando já perto da costa de Melinde, tomou uma nau grande de Cambaia,
carregada de muitas mercadorias que pertencia a um mouro de nome Milicupi, senhor de Barroche, que
soltou, dizendo ao capitão que com o rei de Cambaia e com seus vassalos
e amigos não queria senão toda a paz e
amizade e que assim o podia dizer a Milicupi
porque, naquelas partes, não tinha o rei de Portugal, seu senhor, guerra senão
com os mouros de Meca e com o rei de Calecut, pelas traições e enganos que
fizera a seus capitães e assim Pedro Álvares Cabral se despediu dele, não
tomando mais do que um piloto a quem pediu para o guiar no caminho que lhe
ficava por fazer daquele golfo e, tendo-o já atravessado, com tormenta, a nau
de Sancho de Thoar deu nuns baixos
na costa de Melinde. Pedro Álvares mandou pôr-lhe fogo para que os da terra não
se pudessem aproveitar do que nela havia. Contudo o rei de Mombaça mandou irem
buscar a artilharia que depois usou contra nós como se em seu lugar se
escreverá de modo que nenhuma outra coisa se salvou, apenas as pessoas. Dali,
sem poder tomar Melinde, navegou até Moçambique,
onde fez manutenção às naus e mandou descobrir por Sancho de Thoar o porto de Sofala, mandando-lhe que com as novas do
que achasse se fosse de rota para o reino de Portugal.
Feita
a aguada e consertadas as naus, Pedro Álvares Cabral fez-se à vela e dobrou o Cabo da Boa
Esperança, no dia 22 de Maio, dia do Espírito Santo e dali veio ter a
Cabo Verde, onde encontrou Pero Dias que lhe desaparecera quando
ia para a Índia. De Cabo Verde, sem tomar outro porto, chegou a Lisboa, no dia 31 de Julho de 1501, estando o rei em Sintra, que sabendo da
sua vinda ficou muito alegre, mas com alguma tristeza por causa da gente que
morrera nas naus que se perderam. = p. 94
Transcrita
para o português actual por Maria Carmelita de Portugal
Lagos,
06 de Março de 2017
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