PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA
sobre “Vasco da Gama e as suas viagens à Índia: 1497-99;
1502-03”
CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes e encomendada por
Dom Rodrigo António de Noronha e Menezes; 1749; PDF
- pp. 34 – 68; 100-111.
Capítulo
XXIII
De
como o rei mandou Vasco da Gama por capitão de três naus para prosseguir no que
já era descoberto até ver se podia chegar à Índia.
PRÓLOGO
Já declarei assaz por extenso quão
vigilante e estudioso o Infante Dom Henrique, filho do rei Dom João – da Boa Memória – primeiro
do nome, foi no descobrimento da costa de África e quantas despesas sobre isso
fez, continuando neste negócio com muita glória e exaltamento do nome de Deus e
louvor seu até ao ano de nossa salvação de 1460, em que faleceu no mês de
Novembro, na vila da Raposeira, perto de Sagres, com a idade de sessenta e sete
anos, tendo já recebido fruto de muita honra e proveito de todos estes seus
trabalhos.
Prosseguindo eu nesta matéria em
jeito de compêndio, escrevi no começo da mesma crónica o que achei ser mais
importante a estas navegações até ao nascimento do dito príncipe Dom João (II) que foi no ano do Senhor de 1455 e daí por
diante trato tudo o que toca a estes descobrimentos
por ordem dos anos em que cada uma das tais coisas aconteceu até que Deus se
houve por servido chamar a si o rei Dom
Afonso Quinto, seu pai, que faleceu no ano de 1481. O príncipe sucedeu-lhe no
reino e no seu reinado procedeu nestes descobrimentos de qualidade tal que a
ele, sem tirar glória nem louvor a pessoa nenhuma, se pode disso dar boa parte
da palma e triunfo, nos quais o maior trabalho e dificuldade esteve no achar do
Cabo da Boa Esperança e passá-lo. Isto
fez-se no seu tempo, correndo os nossos muito mais além dele pela costa da Guiné até chegarem quase aos
limites e termos de Sofala e Moçambique, terras habitadas por gente
com quem tinham relações pelo mar e negócio com os da costa de Melinde e Mombaça e da Ilha de São
Lourenço.
Todas estas viagens se fizeram a
mandado deste invencível rei Dom João II
com muito trabalho seu e despesa por sua conta,
navegação já esquecida de todo o género humano por tanto tempo quanto se pode
ver num discurso que disso fiz na mesma Crónica
do Príncipe Dom João, que compus de novo em língua portuguesa e assim num
livro que fiz em língua latina do sítio e antiguidade da cidade de Lisboa e nos
ditos dois discursos declarei quantas e que pessoas muito antes fizeram esta viagem à Índia pelo mesmo caminho que
agora nós fazemos e fi-lo para acudir ao erro em que caíram alguns escritores
portugueses que trataram destes assuntos, dizendo que só a nação portuguesa
fora a que, navegando pelo oceano, primeiro que nenhuma outra, viera ter ao mar
da Índia e deste erro se lhes pode, em parte, relevar a culpa por ventura por
cuidarem que, atribuindo esta glória à sua própria nação, lhe acrescentavam
louvor aos muitos que se lhes deve pelas milagrosas vitórias que naquelas
partes, em diversos tempos e lugares, aconteceram.
Após o falecimento do rei Dom João Segundo, sucedeu nos reinos de
Portugal o rei Dom
Manuel, o qual, como rei
universal de toda a máquina e encargos destas navegações, não contente com o
que já era descoberto, mas antes muito desejoso de passar adiante, logo no
começo do seu reinado, no mês de Dezembro de 1495, teve em Montemor o Novo Conselho sobre isso, no qual alguns foram de
opinião que se não prosseguisse mais nesta viagem além do que já era descoberto
porque haveria de ser muito invejada por todos os reis e repúblicas da Europa e
também pelo Sultão da Babilónia e pelos mesmos reis e senhores da Índia e a
seguir grandes trabalhos e despesas a Portugal. Bastava as pacíficas relações com
a Guiné e a honrosa conquista dos lugares de África para ganho dos mercadores e
proveito das rendas do reino de Portugal e exercício da sua nobreza. Contudo o
rei Dom
Manuel I
foi do voto daqueles que aconselharam o contrário, mandando logo aparelhar
naus, no que se passou mais de um ano.
Na altura em que se faziam prestes estas
naus, teve o rei Conselho sobre quem mandaria por capitão das naus e ficou decidido
que fosse Vasco
da Gama, fidalgo da sua Casa Real, natural da vila de Sines,
homem solteiro e de idade para poder sofrer os trabalhos de uma tal viagem. Quando o rei estava em Estremoz, no
mês de Janeiro de 1497, mandou-o chamar e lhe deu a capitania delas com
palavras de muita confiança, pondo diante dele o peso de tamanho empreendimento
consistir não na despesa que nele se podia fazer nem no que nisso se
aventurava, mas sim no serviço a Deus e ao bem de Portugal, o que tudo se podia
conseguir, passando ele adiante do que já era descoberto; pudesse ele chegar à Índia e daquelas partes lhe
trazer o primeiro fruto de todas as despesas que seus antecessores nisso tinham
feito e dos perigos que a nação portuguesa tanto tempo havia que tinha passado
nestas navegações.
Ser-lhe-ia a seguir dada tanta honra e louvor quanta ele bem podia cuidar ao
que se juntariam muitas mercês que lhe esperava fazer em galardão de todos os
trabalhos que nesta viagem passasse.
Vasco da Gama respondeu com palavras
de bom cavalheiro, prudente e leal
vassalo; beijou-lhe a mão pela mercê que lhe fazia e confiança que nele tinha,
juntando a isto que uma das partes que o convidavam a este trabalho, depois do
serviço que nisso esperava fazer a Deus e a Sua Alteza, era parecer-lhe que
tinha alguma acção nesta viagem por o rei Dom João II, pouco antes que este falecesse,
a ter dado a seu pai, Estevão da Gama,
que já também era defunto, em cujo lugar e por sua lembrança, lhe pedia que
houvesse por bem nesta viagem se querer também servir de Paulo da Gama, seu irmão, porque com tal e tão fiel companheiro
esperava vir ao fim dela, sem diferenças nem cautelas que poderiam caber e
acontecer entre outras pessoas que não fossem tão conjuntos em sangue como eles
eram. Dom Manuel agradeceu-lhe muito e houve logo por bem ser Paulo da Gama um
dos que houvesse de mandar em sua companhia.
Depois de o rei ter isto estabelecido, foi-se de Estremoz a
Évora e dali despediu-se de Vasco da Gama e seu irmão, Paulo da Gama,
dando-lhes por companheiro Nicolau
Coelho, cavalheiro de sua Casa,
que partiram do porto de Belém,
Lisboa, no dia 02 de Julho de 1497,
do que agora não direi mais por ser necessário falar dos negócios do reino,
enquanto eles fazem a sua viagem. = p. 35
Capítulo
XXXV
Do que Vasco da Gama
passou na sua viagem até chegar à aguada de São Brás.
Vasco da Gama partiu de Lisboa num sábado, dia 08 de Julho do ano do Senhor de 1497, já com as naus carregadas com
o necessário para a viagem e com ele o seu irmão Paulo da Gama por capitão de outra nau e Nicolau Coelho por capitão de outra nau e também levava uma nau com
mantimentos que tinha por capitão Gonçalo
Nunes. O piloto desta armada de três naus chamava-se Pero de Alenquer, homem muito conhecedor das coisas do mar e por
cuja competência Lopo Infante e Bartolomeu Dias chegaram até ao rio do Infante quando, por mandado do
rei Dom João II, foram a descobrir e Pero
de Alenquer ia na capitania, a nau de Vasco da Gama.
Estas
quatro naus, despachou Fernão Lourenço,
feitor da Casa da Mina, em Lisboa,
que foi um dos magníficos homens daquele tempo e que, dos seus bens, fundou de
novo os paços de Santos o Velho
que depois o rei Dom Manuel I tomou dele para os bens da Coroa. Assim que,
seguindo Vasco da Gama a sua viagem, passou à vista das ilhas Canárias e daí foi ter ao porto de Santa Maria na ilha de Santiago a 28 de Julho donde, seguindo o memorando, começou a cortar a leste
em busca do Cabo da Boa Esperança e nisto andou os meses de Agosto, Setembro e
Outubro com muitas tormentas e tempos contrários até que Deus se houve por
servido de lhe mostrar terra e foi no dia
04 de Novembro. Desembarcaram e foram-na descobrir com muita alegria e
encontraram uma terra baixa em que há uma grande baía a que puseram o nome de Angra de Santa Helena. Estando Vasco da
Gama ali ancorado, porque na Angra não entrava rio nem regato nem mesmo acharam
fontes nem poços de que pudessem tomar água, Vasco da Gama mandou Nicolau Coelho no seu batel, ir por
diante ao longo da praia buscar algum rio. Ele foi indo sempre próximo de terra
e a quatro léguas da Angra foi dar a um rio
fresco e de boas águas, a que pôs o nome de Santiago, onde todos fizeram aguada, abasteceram-se de lenha e de carne
de lobos marinhos que muitos havia no lugar e eram tão grandes como grandes
cavalos. Nesta Angra, ficou Vasco da Gama com outros três homens feridos e a
questão armou-se desta maneira. No dia seguinte ao que a frota ali chegou, por
não verem gente na praia, saiu Vasco da Gama em terra com os outros capitães
para, mais à sua vontade, tomarem a altura do sol e verem se havia algumas
povoações ou se era deserta. Andando assim espalhados em magotes de uma parte
para a outra, foram dar com dois homens pretos de cabelo revolto como os da
Guiné, um pouco mais baços, que estavam a apanhar mel ao pé de uma monteira com
cada um seu tição na mão e para eles se dirigiram, chegando a passo largo e
posto que ambos, com espanto e medo de verem gente tão desacostumada, se
pusessem em fuga, tomaram os nossos um deles e o trouxeram a Vasco da Gama com o
qual se recolheu alegre às naus, cuidando que se entenderia com alguns dos intérpretes que levava, mas em toda a
frota não houve pessoa que o pudesse entender senão por acenos e sem medo nem
receio comeu e bebeu de todas as iguarias que lhe deram com dois grumetes a
quem Vasco da Gama mandou que lhe fizessem boa
companhia.
Porque
era já tarde quando se recolheram, o negro ficou aquela noite na nau e ao outro
dia pela manhã, mandou-o vestir de panos de cores e pôr em terra, despedindo-se
ele muito alegre e contente da boa companhia que lhe fizeram e sobretudo de
alguns cascáveis, continhas de cristalino e outros brincos que lhe deram.
Estas
bijutarias com que este homem saiu em terra fizeram inveja aos que o viram
porque, no dia seguinte, vieram à praia quinze ou vinte deles. Vasco da Gama
mandou logo descer gente nos batéis com que se veio a terra, trazendo consigo mostras
de especiarias, ouro e aljôfar, seda; o que os negros estimaram pouco por não
saberem o que era. Então mandou-lhes dar cascáveis, ceptis, ancis de estanho e
outras coisas desta qualidade, o que tomaram muito alegres especialmente os
cascáveis pelo som que faziam e dali por diante começaram a vir à praia com segurança
e dar dos mantimentos e outras coisas que havia na terra a troco de coisas dos
portugueses.
Com
esta familiaridade, um homem honrado chamado Fernão Veloso desejou, em companhia de alguns destes negros, a quem
já se fizera familiar, ir ver as suas habitações e modo que tinham em suas
casas e para isso teve licença de Vasco
da Gama. Os negros mostraram
nisso muito contentamento e levaram-no consigo e de caminho tomaram um lobo
marinho com que o festejaram e como nem o guisado do lobo nem o modo da terra satisfizessem
muito a Fernão Veloso, acabado o banquete, começou a caminhar para onde as naus
estavam. Os negros, que por ventura faziam conta de o manterem consigo mais
tempo para o festejarem ao seu modo, vendo-o regressar tão de súbito, vieram
com ele até à praia, mandando aos moços da aldeia para os seguirem com suas
armas que são dardos e azagaias, guarnecidos nos cabos de ossos e pontas de chifres
de alimárias com que ferem como se fossem de verdadeiro aço temperado. Isto
parece que devia ser para se defenderem se Fernão Veloso se queixasse da
companhia que lhe fizeram e os nossos lhes quisessem por isso fazer mal. Chegando
Fernão Veloso à praia começou a bradar que lhe acudissem, mas por ele ser muito
folgazão, assomado e falar sempre valentias, não se deram os nossos muita
pressa nem os negros lhe faziam mal nem entendiam que pedia socorro contra
eles. Quando Vasco da Gama que à mesma hora estava ceando,
soube o que se passava, mandou fazer sinal aos capitães para o seguirem. Os
negros, vendo os batéis vir com muita gente, recolheram-se para onde os moços
estavam escondidos com as armas, deixando Fernão Veloso na praia sem lhe
fazerem nenhum mal.
Vasco
da Gama, pensando que todos se tinham ido embora, saiu com a gente em terra
descuidado do que havia de ser porque os negros, parecendo-lhes que os nossos
vinham com má intenção, descobriram-se dos matos em que estavam escondidos e
deram tão de súbito nos nossos que, às azagaiadas, os fizeram todos recolher
aos batéis mais depressa do que se desembarcaram. Nesta briga, ficou ferido
Vasco da Gama num pé e outros três da companhia. Assim que, por causa deste
Fernão Veloso, ficaram os da terra zangados e Vasco da Gama se fez à vela a uma
quinta-feira, dia 16 de Novembro e
no dia 20 dobrou o Cabo da Boa Esperança,
a que os marinheiros, por ser muito espantoso, chamam das Tormentas. Navegando ao longo da costa com muito contentamento,
folias e tocar de trombetas e pelo tempo ser de bonança iam tão junto da terra
que viram, além da frescura dela, muitas criações de gado de grande porte e de pequeno.
A
gente desta província é baça, de cabelo revolto como os da Angra de Santa
Helena, pequenos de corpo, feios, quando falam parece que soluçam e andam
vestidos de peles. As suas casas são de adobe, terra e madeira, cobertas de
colmo. Têm música ainda que não como a nossa; contudo tangem flautas pastoris em
allegro, cujo som não pareceu mal aos nossos.
No
domingo seguinte ao dia em que dobraram o cabo da Boa Esperança, dia de Santa
Catarina, dia 25 de Novembro, chegaram
à aguada de São Brás que fica a
sessenta léguas do cabo. Nesta paragem há muitos e grandes elefantes e muitos
bois e carneiros grandes, mansos e gordos. Os negros trazem-nos com umas
albardilhas semelhantes às castelhanas feitas de tábua e servem-se deles como se
fossem cavalos. A armada abasteceu-se de bois e carneiros a troco de outras
coisas que os nossos davam aos negros.
Junto
desta Angra há um ilhéu em que os nossos viram juntos mais de três mil lobos
marinhos, tão bravos que investiam à gente como touros. Há ali também umas aves
a que chamam sitilicairos, tão
grandes como patos bravos que não voam por não terem penas nas asas somente as
têm cobertas de pele, da cor e pêlo dos morcegos.
Nesta
aguada de São Brás, Vasco da Gama fez queimar a nau dos mantimentos de que era
capitão Gonçalo Nunes por já não
haver necessidade dela (principalmente por já não ter gente
para a levar por diante, devido à grande quantidade de homens doentes e mortos). Depois de feita a aguada e abastecidos de
carne, fizeram-se à vela, depois de treze dias desde que chegaram e mais
estariam se não tivessem sucedido desconcertos e brigas entre os nossos e os
negros pelo que, antes da armada partir daquela paragem e à vista da frota, os
negros derrubaram um padrão com uma cruz que Vasco da Gama
mandara pôr sobre um combro, junto da praia. Ele levava muito padrões que
tinham as armas do reino de Portugal talhadas para os pôr nos portos e lugares
que lhe parecesse necessário, como estava estabelecido no memorando que Vasco
da Gama levava. = p.50
Capítulo
XXXVI
Do que Vasco da Gama
passou até chegar à ilha de Moçambique.
Desta
aguada de São Brás partiu a frota no
dia da Conceição de Nossa Senhora, dia oito
de Dezembro, e navegando ao longo da costa surgiu um temporal que a fez proteger-se
no golfo. Após o temporal, a frota voltou a buscar a terra e no dia 16 chegou à vista de uns ilhéus chãos que ficam a sessenta
léguas da aguada de São Brás e cinco além do ilhéu da Cruz, onde Bartolomeu Dias pusera o derradeiro
padrão; destes ilhéus ao rio do Infante que Lopo Infante descobriu são quinze léguas.
Toda
a terra é muito graciosa, de grandes arvoredos, prados e muitas criações de
gado e tudo se via da frota por irem muito perto da praia e lhes dar a isso
lugar o bom fundo de mar que tinham e tempo galerno (=
ameno, agradável). No dia de Natal, acharam que tinham
navegado setenta léguas a leste, que era o rumo a que haviam de ir buscar a
Índia, como o levava Vasco da Gama escrito no seu memorando e, indo muito
alegres por terem passado adiante do que Bartolomeu Dias e Lopo Infante
descobriram, viram, no dia 10 de Janeiro
de 1498, muitos homens e mulheres, grandes de corpo, andar ao longo da praia, da mesma cor dos que deixaram atrás e
porque já lhes faltava água, Vasco da Gama mandou ancorar, desejoso de saber
que gente era aquela. Mandou num batel Martim
Afonso, homem que sabia muitas línguas estrangeiras e com ele um
companheiro e foram bem recebidos por aquelas gentes e pelo senhor deles que os veio esperar à
praia. Vasco da Gama, sabendo disto, mandou, pelo mesmo intérprete que se entendeu com alguns deles que deviam ser
estrangeiros das partes da Guiné, uma jaqueta, calças e carapuça de seda
vermelha e outras peças. O senhor mandou-lhe agradecer, mandando-lhe muitas
galinhas de presente e outras coisas da terra com muitos oferecimentos,
pedindo-lhe que deixasse ir consigo Martim Afonso para o festejar em sua casa e
assim fez com galinhas e outras aves e como pão, papas de milho. Os habitantes
desta terra já são mais polidos (= com mais conhecimentos, educados) do que os do Cabo da Boa Esperança porque
trazem nos braços manilhas de cobre e pedaços dele atados nos cabelos da cabeça
e barba, usam punhais guarnecidos de estanho com bainhas de marfim. Umas das
coisas que mais estimaram, das que os nossos lhes mostravam, foi pano de linho, tanto que davam, por
pouca quantidade, muito cobre que é sinal de que ele deve haver naquela terra
ou nas vizinhas. Por esta gente ser muito doméstica e fazer muito serviço a
todos da armada, Vasco da Gama chamou a esta gente a Terra da Boa Gente e um rio onde fez aguada o Rio do Cobre. Ali deixou dois dos degredados que levava para
tomarem informação da terra e saberem as particularidades dela, dando-lhes um
prazo de tempo para ficarem naquele lugar para, na viagem de regresso, os
recolher. Destes levava dez ou doze que foram presos por casos de morte. O rei
perdoou-lhes as culpas para os enviar nesta viagem, aventurando-os como pessoas
com quem, em lhes alongar a vida por qualquer modo que fosse, usava de graça e
misericórdia.
Desta
terra de Boa Gente partiu a armada
no dia 15 de Janeiro e a 25, dia da conversão de São Paulo,
chegou à boca de um rio grande e muito fresco e de muitas frutas e arvoredos,
onde ancorou já bem tarde e, logo pela manhã, viram vir rio abaixo algumas almádias
a remo com gente da mesma qualidade dos do rio do Cobre e entre eles alguns
mais baços. Estes homens, chegando às naus, sem nenhum medo nem receio, subiram
pela enxarcia tão seguros como se tivessem conhecimento e amizade com os nossos.
Vendo a sua simplicidade, os nossos deixaram-nos entrar nas naus. Foram bem
festejados, tudo por acenos e sinais por quanto nem Martim Afonso nem os outros intérpretes
os puderam entender.
Após
três dias da frota ali estar ancorada, vieram quatro senhores, dos principais
daquela comarca, visitar Vasco da Gama e ver as naus e foi-lhes feita muita
honra e eles a souberam tomar como pessoas de qualidade, cujos atavios eram
como os da outra gente, mas os panos com que cobriam o baixo ventre eram
maiores e mais largos do que os dos populares, um dos quais trazia na cabeça
uma touca com vivos e cadilhos de seda e o outro uma carapuça de cetim verde, o
que foi sinal para os nossos de que se estavam já aproximando da Índia e por
isso todos ficaram muito contentes. Vasco da Gama mandou vestir estes homens
com panos de seda de cores e fez-lhes a melhor companhia que pôde. Com estes
homens vinha um jovem, de quem, por acenos e com algumas palavras que falava de
árabe, puderam os nossos entender que a terra donde eles vinham, tinha naus tão
grandes como as nossas e que não era muito longe dali. Esta nova foi de grande
contentamento para todos e por isso Vasco da Gama pôs o nome de Bons Sinais a este rio e mandou colocar um padrão em terra, a que pôs o nome de São Rafael e ali deixou outros dois degredados. Neste rio dos Bons Sinais mandou fazer a
manutenção às naus por disso terem muita necessidade no que se deteve trinta e
dois dias. Muitos dos nossos adoeceram com diversas doenças por a terra ser
alagadiça e baixa e lançar de si vapores densos e prejudiciais.
Assim
que as naus ficaram prontas, partiram daquele lugar no dia 24 de Fevereiro e no primeiro dia de Março, avistaram quatro ilhas.
Da nau de Nicolau Coelho, de uma das ilhas, viram sair sete ou oito barcos à
vela, a que os da terra chamam zambucos
e, vendo isto, deram um grande grito e foram para salvar a capitania.
Vasco
da Gama mandou logo Nicolau Coelho, por a sua nau ser pequena, que fosse
adiante, sondando até àquela ilha donde os barcos saíram. Por seu lado, os dos
barcos, assim que viram as naus, chegaram-se a elas e foram-nas seguindo até
que ancoraram, tangendo anafis e outros instrumentos que já se pareciam mais
com os nossos do que os instrumentos das outras terras de que tomámos
conhecimento.
A
gente destes barcos era baça de bons corpos; vinham vestidos de panos de
algodão de riscas e nas cabeças traziam umas toucas foteadas com vivos de seda,
lavrados de fios de ouro e terçados mouriscos cingidos com adargas nos braços
que, quando chegaram a bordo das naus, entraram com segurança nelas, saudando
os nossos em língua árabe que todos falavam. Vasco da Gama e os outros
capitães, conhecendo que eram mouros, estiveram sempre de sobreaviso; mesmo
assim convidaram-nos a comer fruta e entre o banquetear, perguntavam-lhes sobre
a terra e a qualidade dela e destes souberam que aquela ilha se chamava Moçambique e que o xeque era vassalo do rei de Quíloa e
que dali para a Índia e para o Mar da Arábia havia negócios de muitas
mercadorias e também havia de ouro numa terra que lhes ficava atrás e se
chamava Sofala e todos ouvindo isto agradeciam
a Deus pela grande mercê que lhes tinha feito.
Esta
ilha de Moçambique tem muito bom porto, situa-se em terra baixa, alagadiça e
doentia; os principais dela eram mouros baços de diversas nações que tratavam
dos seus negócios dali para muitas partes; os naturais são negros tanto os da
ilha como os da terra firme e vivem em casas de taipa cobertas de palha.
As
naus ou zambucos em que estes mouros navegavam nem tinham coberta nem
pregadura; eram ligadas com cavilhas de pau e cordas de fio de palma a que
chamam cairo. As velas são da folha da
mesma palma, tecida como esteiras muito cerradas. Navegam com agulhas
levantiscas, quadrantes e cartas de marear.
Acabada
a merenda, cuidando estes homens que os nossos eram mouros e que, por serem de
muito longe, não os entendiam; despediram-se muito contentes da companhia e também
das peças que Vasco da Gama lhes deu e mandou ao xeque ou capitão do lugar que
se chamava Sacoeia.
Capítulo
XXXVII
De como o xeque Sacoeia,
cuidando que os nossos eram turcos ou mouros, veio às naus encontrar-se com
Vasco da Gama e o que lhe aconteceu depois em Mombaça.
Este
xeque, com o recado que lhe deram os mouros que foram à frota, parecendo que os
nossos fossem da mesma religião, mandou um presente de refresco a Vasco da Gama e mandou aos moradores
que levassem mantimentos às naus e os vendessem por preços honestos. Em
retorno, Vasco da Gama mandou-lhe alguns vestidos e outras coisas. Esta amizade
começada, Sacoeia foi encontrar-se
com Vasco da Gama à nau acompanhado de muitas almádias e gente bem munida com
arcos, flechas e outras armas e vinham vestidos todos de panos de algodão de
riscas e alguns vestidos de seda de cores, tangendo muitos anafis, trombetas,
buzinas de marfim e outros instrumentos que faziam tamanho estrondo que não se
ouviam uns aos outros e nesta ordem chegaram a bordo da nau de Vasco da Gama.
Sacoeia era um homem magro, alto de corpo e
bem disposto, de meia-idade, trazia vestida uma cabaia ao modo turco, de pano
branco fino de algodão e sobre ela outra desabotoada de veludo de Meca; na
cabeça uma touca foteada de cores bordada a fios de ouro; na cintura um terçado (espada
de folha curta, recta e larga) de ouro e
pedraria com uma adaga do mesmo género e nos pés umas alpercatas de veludo.
Vasco
da Gama veio recebê-lo a bordo, pondo de um lado e do outro por onde
haviam de passar duas filas de homens armados dos mais sãos e mais bem apresentáveis
da armada porque os doentes e mal vestidos não quis que aparecessem. Tanto ao
xeque como aos que com ele vinham, mandou dar vinho e fruta que comeram e
beberam quanto quiseram até se alegrarem. Nesta merenda, entre outros assuntos
que tiveram, Sacoeia perguntou a Vasco da Gama se eram turcos, se mouros e
donde vinham, se traziam livros da sua Lei que lhos mostrasse assim como as
armas que mais se usavam na sua terra; ao que Vasco da Gama lhe respondeu que
os livros da sua Lei lhe mostraria depois; quanto às armas eram aquelas com que
os marinheiros estavam armados: couraças, lanças, espingardas e bestas e com
algumas delas mandou atirar e depois com as bombardas. Sacoeia e os seus
alegraram-se muito e, entretanto, Vasco da Gama não cessava, por meio dos seus intérpretes, de inquirir sobre os
negócios da Índia e do caminho que havia de tomar dali até Calecut. Bem informado,
pediu a Sacoeia pilotos para esta viagem e este lhos prometeu com a condição de
que os pagasse bem. Nisto passaram um bocado de tempo até que depois de bem
satisfeitos, regressaram a terra.
Daí
a dois dias, Sacoeia voltou a
visitar Vasco da Gama com refresco e
dois pilotos que o levariam a Calecut. Foi negociado o preço e ficou acordado
pagar trinta meticais de ouro, dinheiro da terra que vale cada um quatrocentos
e vinte reais na nossa moeda. Vasco da Gama entregou-lhe os trinta meticais e deu-lhes
marlotas e outros vestidos e eles ficaram muito satisfeitos e, por mandado de
Sacoeia, os dois pilotos ficaram logo nas naus. Após e havendo de ambas as
partes muita amizade e comunicação, vieram os mouros a saber que os nossos eram
cristãos; o que causou tornar-se tudo isto em ódio e desejo de os matarem e
lhes tomarem as naus, o que um dos pilotos descobriu a Vasco da Gama, pelo que
logo se fez à vela e foi ancorar junto de uma ilha a que pôs o nome de São
Jorge que está a uma légua do mar de Moçambique.
Havendo
já sete dias que Vasco da Gama ali chegara e porque o outro piloto que tinha
pagado lhe ficava em terra sem querer regressar à nau e por isso Vasco da Gama andava
muito agastado, o outro piloto que estava na nau lhe disse que não tomasse tanto
a peito a perda do outro piloto; que ele o levaria a uma ilha de nome Quíloa que era dali a cem léguas,
povoada de cristãos e mouros que sempre estavam em guerra. Lá encontraria
muitos pilotos que não viviam senão de viajar para a Índia. Vasco da Gama
prometeu-lhe boas alvíssaras no dia que chegassem a Quíloa, fazendo-se logo à
vela.
Era
terça-feira, dia 13 de Março e com
calmarias encontrou-se a ré da ilha de Moçambique quatro léguas, pelo que
tornou a ancorar na mesma ilha de São
Jorge. Depois de ancorados, veio à nau um mouro que trazia consigo um moço
de doze ou treze anos, seu filho, e pediu a Vasco da Gama que o mandasse
recolher nas naus, dizendo-lhe que ele era homem do mar e que ele queria regressar
a Meca, donde viera por piloto de uma nau de Moçambique. Vasco da Gama
recolheu-o de boa vontade na sua nau para dele tomar informação das coisas do
mar da Arábia. Com este piloto e o que lhe deu Sacoeia e com outro que Paulo da
Gama tomou numa briga que os nossos tiveram com os da terra se partiu dali no primeiro dia de Abril em busca da ilha
de Quíloa que passou adiante chegando a um sábado, véspera de Ramos, dia sete de Abril à ilha de Mombaça que é muito fresca e há nela
muitas frutas e hortaliças como as de Portugal; tem muito bons ares, águas,
trigo e animais de criação. As casas
são de pedra, cal e cantaria, pintadas e forradas como as nossas.
Os pilotos mouros deram a entender a Vasco da
Gama que naquela ilha – Mombaça - habitavam também cristãos em povoações
separadas dos mouros, o que era falso. Por isso, Vasco da Gama ancorou muito
contente, cuidando de os encontrar e, por seu meio, obter as coisas que lhe
fossem necessárias para a sua viagem e para curar os doentes que levava porque
já quando ali chegou lhe morrera quase metade da gente e, da que escapara, a
maior parte estava doente. Ancoradas as naus, vieram cem homens numa grande almádia
a bordo da nau-capitã, vestidos à turca, com terçados e escudos, entre os quais
vinham quatro que pareciam os principais que, em chegando, quiseram subir à nau
assim armados como estavam com alguns da companhia. Vasco da Gama não lho
consentiu; “apenas eles sós e sem armas podiam entrar na nau”. Eles aceitaram e
mandou banqueteá-los, desculpando-se de não lhes consentir as armas, o que eles
aceitaram bem, dizendo-lhe que assim devia fazer sempre, pois estava em terra
estranha, onde não sabia de quem se havia de guardar. Estes disseram-lhe que o rei de Mombaça sabia da sua vinda há
dias e por ter muito desejo de o ver, pela informação que dele tinham, estava
determinado de, no dia seguinte, o vir visitar em pessoa.
Tudo
eram enganos porque a sua intenção era tomar as naus e matar todos. Acabada a
merenda, os mouros despediram-se de Vasco da Gama com mostras de grande amizade
e, logo no dia seguinte, que era Domingo
de Ramos, mandou o rei de Mombaça os seus visitar Vasco da Gama com um
presente de fruta e carneiros, pedindo-lhe que entrasse para dentro do porto, pois
ali o iria visitar. Naquela cidade acharia todas as especiarias e mercadorias
que havia na Índia em tanta abundância que poderia carregar as naus com elas
sem ter necessidade de passar adiante nem se aventurar aos trabalhos e
desastres daquela navegação que era uma das mais perigosas daquelas partes. Aos
que trouxeram este recado mandou que dissimulassem serem cristãos e dissessem
que na terra havia muitos deles, o que eles souberam fingir muito bem, pelo que
Vasco da Gama lhes fez muito bom acolhimento e deu algumas peças de roupa e
mandou outras ao rei, despedindo-os assim com recado que, no dia seguinte,
entraria para dentro do porto e para maior confirmação mandou com eles dois
degredados dos que consigo trazia que foram bem recebidos pelo rei e lhes
mandou mostrar a cidade.
É
uma cidade grande, situada sobre pedra viva, num alto onde bate o mar e na boca
do porto tem uma torre com artilharia e guarda de gente, chama-se Mombaça como a ilha. Depois destes degredados
terem andado por toda a cidade, levaram-nos de novo ao rei que, por negaça,
lhes deu pimenta, cravo, canela,
gengibre, noz moscada, maçãs, âmbar, marfim para levarem como amostra a Vasco
da Gama e assim os despediu e com eles lhe mandou recado que, de tudo aquilo
lhe daria carga para as naus. Vasco da Gama ficou muito contente e, logo no dia
seguinte, mandou levantar âncora com intenção de entrar no porto e, porque a
sua nau com a corrente ia já quase sobre um baixo, mandou ancorar e o mesmo
fizeram as outras naus, pelo que alguns mouros dos da cidade que trouxeram
mantimentos às nossas naus e algumas mercadorias, se recolheram aos seus barcos,
encaminhando-se para a cidade e passando um deles pela popa da nau-capitã, os
pilotos que Vasco da Gama trouxera de Moçambique se lançaram ao mar e foram
recolhidos pelos do barco sem quererem regressar à nau, ainda que Vasco da Gama
lhes fizesse bradar para regressarem.
Por
isto. Vasco da Gama logo tomou suspeita de que o rei tinha armado traição e para
disso saber a verdade, mandou meter a tormento dois mouros que Paulo da Gama capturara na briga de
Moçambique. Deles soube que os pilotos se lançaram ao mar cuidando, quando
mandou ancorar, que fora por algum aviso que tivesse da traição que lhes estava
planeada que era tomarem as naus e os meterem todos à espada. Vasco da Gama e
todos da frota agradeceram muito a Deus de os livrar do perigo que lhes estava
preparado e receosos de que os mouros viessem à noite às naus cortar-lhes as
amarras, se vigiavam com mais cuidado do que antes faziam e não foi em vão o
que cuidavam porque em duas noites que depois ali estiveram, em ambas vieram
muitos da terra a nado com terçados e machadinhas para picarem as amarras, o que
tudo faziam com tanto silêncio que, se não fora a muita vigilância que sobre
isso tinham, os nossos se veriam em perigo.
Vendo
Vasco da Gama o que se passava, sexta-feira
de Indulgências, se fez à vela sem levar outro piloto que o que, em
Moçambique, se metera na sua nau e o esforçou, prometendo a Vasco da Gama
levá-lo à cidade de Melinde, onde
acharia quantos pilotos quisesse para a Índia. Neste caminho, Vasco da Gama
tomou um zambuco com catorze mouros e entre eles um parecia o senhor de todos,
homem prudente, natural da mesma cidade e por quem se informou dos negócios da Índia e
daquela costa e em especial do reino e cidade de Melinde, diante da qual foi ancorar
no dia de Páscoa da Ressurreição,
pela manhã, com muita alegria assim pelo dia que era como por esperar que
acharia ali melhor recado do que fez em Mombaça pelas boas novas que tinha do
rei e senhor que nela então reinava.= p.55
Capítulo
XXXVIII
Do sítio da cidade de
Melinde e do que Vasco da Gama passou com o rei dela e do caminho que fez até
chegar a Calecut.
A
cidade de Melinde está situada ao
longo da praia num campo raso cercada de palmares e areais; tem muitos pomares
e hortas de boa hortaliça, com noras, fruta de espinho e outros prumos. Tem o ancoradouro
longe da povoação por estar situada em costa brava. A terra é fértil de
mantimentos e criações de gado, galinhas e caça, tudo muito barato, é bem
arruada, as casas são de pedra, cal e cantaria com açoteias. As casas são muito
formosas do lado de fora e por dentro com muito ricos lavores e pinturas.
Os
naturais da terra são gentios, baços, de cabelo revolto, bem dispostos; os
estrangeiros são mouros árabes e andam nus da cintura para cima e para baixo
cingidos com panos de seda e algodão. Os nobres, os viam sobraçados, nas
cabeças trazem fotas com cadilhos de seda e ouro; as suas armas são terçados,
lanças, adargas, arcos e flechas. Tratam-se muito bem, têm grande opinião de cavalheiros, contudo naquelas partes,
quando se quer dar louvor ao melhor de cada cidade dizem cavalheiros de Mombaça e
damas de Melinde por serem formosas,
cortesãs e bem vestidas e adornadas. Os outros mercadores que vivem nesta
cidade são guzarates do reino de Cambaia.
Na terra há ouro, âmbar, marfim, breu e cera. O rei é mouro, serve-se com
muitas cerimónias e tem assaz bom estado.
Naquele
dia em que as naus ancoraram que era de Páscoa,
nenhum dos da cidade veio a elas porque já tinham aviso do que os nossos passaram
em Mombaça e receavam o mesmo dali, o que suspeitando Vasco da Gama, na
segunda-feira, foi lançar âncora a meia légua da cidade; nem se quis mais aproximar
por o porto ter um recife perigoso. O mouro que tomara no zambuco, entendendo o
seu receio, pediu-lhe que o deixasse ir a terra só, que ele negociar-lhe-ia
pilotos para o levar à Índia e tudo o que fosse necessário e que naquele porto
estavam quatro naus de cristãos indianos prestes a regressarem, poderia ser que
lhe fizessem companhia por serem todos da mesma Lei.
Vasco
da Gama, apesar de ter pouca confiança, vendo que ganhava muito se lhe mostrasse
que tinha nele confiança, mandou-o pôr numa ilheta que está muito perto da
cidade, da qual, quando o batel se ia afastando, logo da terra vieram por ele
numa almádia e o levaram ao rei de Melinde. Este logo se informou do modo dos
nossos e sabendo que o capitão queria com ele paz e amizade,
mandou-lhe pelo mouro um presente de carneiros e fruta da terra e Vasco da Gama
mandou-lhe pelo mesmo outro presente de coisas do reino de Portugal e com ele
um degredado com que o rei folgou muito. Nestes recados andaram segunda-feira,
terça-feira e já seguro de lhe parecer que nada do que entre eles se tratava
era fingido, à quarta derradeira octava, pela manhã, se chegou mais a terra e
foi ancorar junto das quatro naus dos cristãos que eram de Cranganor; homens baços, de cabelo comprido, vestidos ao modo
persa, pelos quais foram os nossos festejados, recebendo deles préstimo, amizade
e avisos das coisas da terra, dizendo-lhe
que se fiasse do rei como de mouro e que de todos os da cidade fizesse a
mesma coisa.
O
rei de Melinde era muito velho e doente e, apesar de desejar ir ver as naus, a
má disposição estorvava-o. Contudo o seu filho mais velho, herdeiro do reino
que já regia por ele, veio vê-las no mesmo dia, depois do jantar numa almádia
grande, acompanhado de gente nobre muito bem vestida. Vinha sentado numa
cadeira de espaldas de ferro forjado e no seu assento tinha uma almofada de
veludo e aos pés outra. Trazia vestida uma cabaia de damasco carmesim, forrada
de cetim verde e uma touca foteada. Amparava-o do sol, um homem com um
sombreiro de cetim carmesim, com o seu disparável (=
que abre e fecha o sombreiro), posto numa
haste dourada de pau. Junto dele ia sentado outro homem velho que lhe levava um
terçado guarnecido de ouro e prata anilada. Na mesma almádia, vinham homens que
tangiam anafis e buzinas de marfim, tão concertado que parecia mais música de
outros instrumentos do que daqueles bárbaros. Vasco da Gama, assim que soube da
vinda do príncipe, mandou toldar e embandeirar o batel e com doze homens dos
mais vistosos veio-o receber antes que chegasse às naus. O príncipe, como vinha
desejoso de ver os nossos de perto, chegando ao batel lançou-se para dentro e
foi logo abraçar Vasco da Gama sem pejo nem cerimónias, perguntando-lhe, depois
que se sentaram, muitas coisas como homem prudente no que despenderam um bom bocado
de tempo; depois, andando ao redor das naus que ele olhava com muito espanto e
também o trajo e modo dos nossos. Vasco da Gama mandou que lhe trouxessem da
nau os mouros que tomara no zambuco e fez deles presente para ele, o que ele
estimou muito, fazendo-lhe por isso muitos oferecimentos, rogando-lhe que fosse
com ele a terra folgar e repousar nos seus paços e que reféns disso deixaria o
seu filho que ali trazia e dos seus cavalheiros quantos ele quisesse.
Vasco
da Gama escusou-se, mas o príncipe, desejoso que os nossos fossem à cidade,
entregava o filho a Vasco da Gama com alguns homens fidalgos, pedindo que dos seus
lhe desse apenas dois para os levar consigo porque se fosse sem eles, seu pai o
tomaria mal pelo desejo que tinha de ver gente portuguesa, por já saber quanto
bem o fizeram em Moçambique e Mombaça. Com estes dois homens degredados, sem
Vasco da Gama querer tomar os reféns, se recolheu o príncipe à sua almádia,
ficando decidido que, no dia seguinte, fossem no batel ao longo da praia para
ver a cidade. Vasco da Gama assim
fez, levando consigo Nicolau Coelho,
cada um em seu batel bem artilhados e chegando junto da praia, o príncipe
desceu dos paços por uma escada de pedra que vinha dar ao mar, onde tomaram um
andor (= como o das procissões) em que levaram o príncipe ao batel de Vasco da Gama. Depois de feitas
suas cerimónias, o príncipe voltou a pedir a Vasco da Gama que quisesse ir ver
seu pai que por ser muito velho e entrevado não podia fazer o mesmo e que, para
segurança disso, ele iria com seu filho para as naus. Vasco da Gama escusou-se,
dizendo que não trazia licença do rei, seu senhor, para o fazer. Enquanto estas
práticas se passavam, assim da cidade como das nossas naus e das dos cristãos
indianos e de outras e dos batéis atiravam muitas bombardas e lançavam foguetes
que durou até o príncipe se recolher para os paços. Todo o tempo que a armada
ali esteve, mandou visitar a Vasco da Gama e aos outros capitães com refrescos
da terra; deu-lhe também um bom piloto mouro guzarate chamado Malemocanaqua e com o muito desejo que
tinha da nossa amizade, tomou a palavra de Vasco da Gama que voltasse por ali no
regresso porque, em sua companhia, queria mandar um embaixador ao rei de Portugal para com ele estabelecer paz e
amizade. com esta paz e amizade e muito
amor dos da terra partiram os nossos daquela cidade de Melinde numa terça-feira, dia
24 de Abril, deixando posto um padrão
na praia a que puseram o nome de Santo
Espírito.
Seguindo assim a sua viagem pelo golfe que se
faz da costa de Melinde até à do Malabar, a uma sexta-feira, dia 17 de Maio, viram uma terra alta que o
piloto Canaqua não pôde bem conhecer
porque o tempo andava encoberto com chuviscos;
mas, no domingo seguinte, pela manhã, viu umas serras que estão junto da cidade de Calecut
e pediu logo alvíssaras a Vasco da
Gama que lhas deu boas e de boa vontade, louvando todos a Deus por os ter
guiado a um lugar que tanto tempo havia andavam buscando. fizeram por isso
grandes festas e alegrias com as quais e com as naus embandeiradas, ao som de
trombetas, no mesmo dia, depois do jantar foram ancorar a duas léguas da cidade
de Calecut, tão contentes como se já
tivessem chegado ao fim dos seus trabalhos e estivessem diante da cidade de
Lisboa donde havia onze meses que tinham partido.= p.57
Capítulo
XXXIX
Do que Vasco da Gama fez
depois que ancorou e do recado que mandou ao rei de Calecut.
Quando
as naus lançaram âncora, chegaram a elas alguns barcos, a que os nossos
compraram refrescos da terra. Por estes, Vasco da Gama soube que não era aquele
o ancoradouro de Calecut e ofereceram-se-lhe para o levarem lá e assim o
fizeram. Depois de ancorar, Vasco da Gama mandou um dos degredados à cidade e
este ao desembarcar, ao redor dele juntou-se muito povo, perguntando-lhe que
homem era e donde vinham naus tão diferentes das suas. Destes, alguns eram
mouros e começaram a falar ao degredado em árabe, mas vendo que não os
entendia, o tropel de gente levou-o a uma parte da cidade, onde pousavam
mercadores mouros estrangeiros; assim andaram com ele de casa em casa para ver
se achavam quem o entendesse até que encontraram dois mercadores de Tunes, dos
quais um, chamado Monçaide, falava
castelhano e entrando o degredado para dentro da sua casa e conhecendo o trajo
que era espanhol, perguntou-lhe de que nação da Espanha era. O degredado
informou-o que era português e assim mandou-lhe dar de comer, dizendo-lhe que
se alguma coisa cumpria aos que vinham naquela armada que o faria de muito boa
vontade e que para confirmação disso queria ir em sua companhia visitar o
capitão.
Assim
foi feito e, entrando na nau, Monçaide disse em castelhano, em alta voz:
- Boa ventura vos seja a todos. Agradecei a
Deus que vos trouxe à mais rica terra do mundo, onde achareis todo o género de
mercadorias que poderdes querer e imaginar.
Vasco
da Gama levou-o nos braços muito alegre e perguntando-lhe donde era, Monçaide
disse que era de Tunes e do tempo em que o rei Dom João Segundo costumava mandar naus a Ourão buscar coisas de que
tinha necessidade para os seus armazéns. Conhecera então portugueses e sempre
lhes fora muito afeiçoado; pelo que em tudo o que naquela terra pudesse servir ao
rei Dom Manuel I o faria, se nisso o quisessem ocupar. Vasco da Gama
agradeceu-lhe com promessa de lhe pagar bem o seu trabalho. Então Vasco da Gama
perguntou-lhe sobre o rei de Calecut e o modo do seu viver e Estado de Calecut.
A tudo lhe respondeu como homem prudente, dizendo que o rei era homem bom, mas
vanglorioso. Haveria de folgar muito com a sua vinda por vir de tão longe e em
nome de um tal rei como era o rei de Portugal. Principalmente se vinha estabelecer negócios na terra porque dos
direitos das mercadorias que entravam e saíam daquela terra sustentava o seu
Estado, mais do que pelas rendas do reino. Logo ali estabeleceu Vasco da Gama com este mouro que, ao outro dia, fosse como
intérprete com dois homens que
queria mandar visitar o rei de Calecut. Com este recado foram Fernão Martins e outro português a um
lugar chamado Panane a cinco léguas
dali, onde estava o rei. Ao aproximar-se do rei, Fernão Martins disse-lhe por
outro intérprete com quem Monçaide
falava, que o capitão daquelas naus mandava pedir-lhe licença para o ir visitar
e lhe dar cartas que lhe trazia do rei de Portugal, seu senhor. O rei aceitou
bem o recado e antes que lhe respondesse, mandou dar-lhes a cada um seu pano de
algodão e de seda muito finos e pelo intérprete fez-lhe algumas perguntas
breves, afirmando que dissesse ao capitão que era bem-vindo, mas aquele lugar
era perigoso por ser tempo de inverno; pedia-lhe “que fosse a Pandarane que era bom porto”. Vasco da Gama
logo o fez, guiado por um piloto que o rei lhe mandou. Contudo, porque na terra
havia mouros, não quis entrar tanto para dentro quanto o piloto o quisera,
receando que lhe pudesse acontecer o mesmo que em Moçambique e Mombaça.
Havendo
já oito dias que Vasco da Gama chegara àquele local, a uma segunda-feira, pela
manhã, o catual do rei que é como o corregedor da corte mandou-lhe dizer
que tinha vindo para o acompanhar até à cidade de Calecut, onde já estava o rei
(de
Calecut); sempre que quisesse podia
desembarcar e também que fosse com brevidade visitar o rei que ele, catual, não
tinha outro assunto a tratar em Pandarane que o de esperar por ele.
Por
já ser tarde, Vasco da Gama escusou-se, deixando a visita para o dia seguinte,
que era 29 de Maio. Saiu em terra
pela manhã e o catual já o estava esperando na praia com muitos fidalgos da Casa
do rei, a que chamam naires. Vasco
da Gama deixou as naus à responsabilidade de seu irmão, Paulo da Gama, e de Nicolau
Coelho, dizendo-lhes que, se algo lhe acontecesse em Calecut e sentissem
que podiam correr risco de vida por esperar por ele; que se fizessem à vela e
tomassem outro porto do Malabar para ali comprarem algumas especiarias com que,
juntamente com as novas do que tinha descoberto, regressassem ao reino. Ele não
podia fazer outra coisa senão ir visitar o rei de Calecut e entregar-lhe as
cartas que trazia do rei, seu senhor, que era o remate do caminho
que tinham feito.
Para
que as naus não ficassem desprovidas de gente, não quis levar consigo mais do
que doze homens, os principais: Diogo
Dias, escrivão da sua nau, Iam de Sá,
que foi tesoureiro das especiarias da Casa da Índia, Álvaro de Braga, que foi escrivão da alfândega do Porto, Fernão Martins, intérprete e Álvaro Velho;
os outros eram seus criados.
Na
mesma altura em que Vasco da Gama desembarcava, o catual fê-lo tomar um andor (como
os das procissões com uma cadeira) que
levavam quatro homens aos ombros de cada um dos quatro lados. Estes homens são
tão ágeis neste ofício que o que vai no andor, posto que eles vão às vezes
correndo, quase que não sente que o movem; a par deles vai outro homem com um
sombreiro disparável (= que se abre e fecha) com uma haste comprida para proteger o convidado do sol e da chuva.
Deste
modo se deslocaram Vasco da Gama num andor e o catual noutro, indo os naires e
os nossos a pé ao redor dos andores que o catual não deixava correr, mas antes
mandava-os ir devagar, vendo que os nossos por estarem muito fracos do mar não
os podiam seguir como o faziam os naires e outra muita gente que ia atrás
deles, espantados por verem homens de tão longe e de trajo tão desacostumado em
todas aquelas províncias. = p.59
Capítulo
XL
Do que Vasco da Gama
passou até chegar a Calecut, onde o rei o estava esperando.
De
Pandarane, que fica a cinco léguas
de Calecut, foram jantar a uma povoação que se chama Capotati, o catual numa casa e Vasco da Gama noutra. Acabado o
jantar, embarcaram todos em almádias e foram cerca de uma légua rio acima, em
que estavam mutas naus grandes em manutenção em terra, cobertas com folhas de
palma, onde desembarcaram e tornaram a subir para dois andores que os estavam
esperando. O catual disse a Vasco da Gama:
- Quero levá-lo a um
pagode de muita devoção e de grande romagem para nele fazerem oração e agradecerem
a Deus por os trazer a esta terra sãos e salvos.
Pagodes
são as suas igrejas. Vasco da Gama
pensou que, por lhe terem dito que naquela província havia cristãos, aquele
seria um pagode cristão, o que lhe
confirmou muito mais ao ver, em chegando ao pagode, cinco sinos sobre a porta
principal, postos em campanário. A par dos sinos estava uma coluna de ferro
forjado trabalhado da altura de um grande mastro de nau e no seu capitel também
um galo do mesmo género. O pagode e suas oficinas eram do tamanho de um grande
convento dos nossos, tudo de cantaria muito bem lavrada, os telhados cobertos
de ladrilho (tipo açoteias).
Chegados
à porta do pagode, o catual tomou Vasco da Gama pela mão e, entrando, vieram
ter com eles quatro homens nus da cintura para cima e para baixo cobertos com
panos de algodão até aos joelhos. Tinham as cabeças descobertas e três linhas
sobraçadas ao modo que os diáconos trazem a estola. Com um hissope, lançaram a
Vasco da Gama água benta de uma pia e a todos os que com ele vinham. Após
deram-lhes sândalo moído para pôr nas testas. Estes sinais ainda convenceram
mais os nossos de que era uma igreja de cristãos.
Passando
mais adiante pelo pagode, em que havia muitas e diversas imagens pintadas pelas
paredes, chegaram a uma capela redonda que estava no meio do corpo do pagode,
lavrada de cantaria com uma porta estreita de ferro forjado trabalhado a que se
subia por degraus de pedra. Dentro estava, encaixada na parede uma imagem que,
por o lugar ser escuro, não puderam ver bem que imagem era nem estes homens os
deixaram entrar para dentro, indicando com o dedo e dizendo “Maria, Maria”. Ouvindo este nome, o
catual e naires lançaram-se todos de bruços com as mãos à frente e logo se
levantaram fazendo oração de pé; o que os nossos, parecendo-lhes que devia ser
aquela a imagem da Virgem Maria
também os nossos oraram de joelhos.
Acabada
a oração, tornaram a caminhar e, já perto de Calecut, o catual levou Vasco da
Gama a outro pagode semelhante a fazer oração, donde até aos paços do rei foram
com muita dificuldade porque era tanta a gente por estradas e ruas que, por
nenhum modo, poderiam passar se os naires não fossem abrindo caminho com as
espadas que trazem sempre nuas (= sem protecção) a modo de terçados revoltos, rodelas e
armas, de que vulgarmente se servem.
Antes
que chegassem aos paços, por aumentar a quantidade de gente no caminho que
seguiam, o catual meteu-se numa casa, onde se recolheram até que, da parte do
rei, veio visitar Vasco da Gama um irmão do próprio catual num andor,
acompanhado de muitos naires com anafis e trombetas e imediatamente partiram
para onde o rei estava.
Seriam
mais de três mil homens os naires que os precediam, os quais, de quando em
quando, saiam alguns fora da fila a esgrimir uns com os outros. Neste exercício
é a nação mais destra que se conhece no mundo.
Desta
maneira chegaram aos paços onde
estava o rei. Os paços são todos de casas térreas, muito formosas tanto de
edifícios como de jardins, pomares e muitos tanques de água. Destes jardins
saíram alguns senhores de título, a que chamam caimães, a recebê-los e na sua companhia passaram quatro pátios, à
porta de cada um dos pátios havia dez porteiros, até chegarem a uma casa, junto
àquela em que o rei estava, donde saiu um homem velho, vestido de panos brancos
de algodão que o cobriam todo. Este era o brâmane-mor
do rei, dignidade semelhante ao capelão-mor entre nós. Dirigiu-se a Vasco da
Gama e abraçou-o e fez entrar os nossos adiante, após os quais seguiu logo,
levando Vasco da Gama pela mão até onde estava o rei, por quem foi recebido da
maneira que a seguir se conta. = p.60
Capítulo
XLI
O
modo que o rei de Calecut teve a receber Vasco da Gama e de algumas práticas
que com ele passou.
O
rei estava numa sala grande, cercada ao redor por assentos de pau muito bem lavrados,
levantados uns dos outros como no coro ou teatro, que se encheram logo de
caimães e naires. O chão desta sala era todo coberto de veludo verde e as
paredes decoradas com panos de seda de cores e bordados a ouro. O rei estava
deitado num catel – que são camas de
ferro – coberto de um pano de seda branco e outro bem lavrado e por cima um
sobrecéu do mesmo tipo. (Ele era muçulmano). Era homem de meia idade, baço, alto de
corpo e de bom parecer. Tinha vestido um baju,
tipo roupeta curta, de pano de algodão muito fino com muitos botões de ouro e
pérolas. Na cabeça, tinha uma carapuça de veludo, guarnecida de pedraria e
chaparia de ouro; trajo comum a todos os reis do Malabar, pois nenhuma pessoa
usa o baju e a carapuça senão eles. Tinha penduradas nas orelhas arrecadas e nos dedos dos pés e das
mãos muitos anéis e nos braços e
pernas manilhas, tudo bem trabalhado
e lavrado de pérolas e pedraria de muito valor.
Junto
do catel estava um homem velho que lhe dava o betelhe que o rei mastigava; os vasos em que o cuspia depois de
mastigado eram de ouro maciço. O betelhe é uma folha grande como as de tanchagem
e muito parecida; cresce como a hera agarrada a árvores ou em latadas. Dá-se a
mastigar untado com cal de marisco diluída em água rosada. Com esta folha usam
um fruto tão grande como as nozes, cortado em pedaços, a que chamam arreca, que é de umas árvores tipo
palmeiras delgadinhas, altas e muito limpas. Deste fruto, usam apenas o sumo; o
resto cospem com viscosidade e ventosidade que lhes tira do estômago e da
cabeça. Dizem que conserva muito a saúde, dá bom hálito e mata a sede.
Quando
Vasco da Gama entrou fez a reverência requerida em
tal lugar e o mesmo fizeram os outros portugueses. O rei acenou a Vasco da Gama
para que se aproximasse do catel e mandou-o sentar num dos degraus do estrado,
onde estava o catel. Aos outros mandou que se sentassem nos assentos que
estavam ao redor da sala. A todos mandou dar água para refrescarem as mãos e,
lavadas as mãos, mandou-lhes trazer água e figos e outras frutas da terra de
que todos comeram e beberam.
Acabada
a merenda, o rei começou a falar tão alto com Vasco da Gama pelo seu intérprete que o ouviam todos os que
estavam na sala e nas perguntas que lhe fez, vendo Vasco da Gama que começava a
entrar em negócios, além do que já lhe perguntara sobre o seu caminho de
Portugal até ali e as dificuldades
da longa viagem,
Vasco da Gama disse, por Fernão Martins, seu intérprete, ao intérprete
do rei:
-
Entre os reis cristãos não é costume
tomarem uns dos outros embaixadas, mas sim falar de negócios em particular. Este
costume pede que o queira ter nesta visita que trago do rei
de Portugal, meu senhor, tão desejoso da Vossa
amizade, tanto ele como os seus antecessores, que há mais de sessenta anos que
têm vindo a trabalhar no descobrimento desta navegação até que Deus me fez a
mercê de a concluir e, por isso, me considero o homem mais afortunado do mundo.
O rei aceitou bem o que Vasco da Gama lhe fez
dizer e logo mandou que ele e Fernão Martins se fossem para outra sala que
estava junto daquela, seguindo logo atrás deles.
Nesta
sala, havia um catel muito mais rico do que o de fora, no qual o rei se deitou
e sem haver nesta sala mais gente do que o brâmane-mor e o que lhe dava o
betelhe e o seu vedor da Fazenda (=
ministro das Finanças), fez dizer pelo seu intérprete a Vasco da Gama:
- Aqui está em lugar em que pode livremente dizer
o que lhe apraz. Tudo se manterá em bom segredo, pois os que estão presentes são
do meu Conselho Secreto e pessoas a quem eu confio todos os meus negócios e mercadorias.
Vasco
da Gama, pelo seu intérprete Fernão Martins, expôs-lhe a que vinha e de quão
longe e por mandado de quem e o objectivo da sua embaixada era querer o rei Dom Manuel, seu senhor, amizade com um tão poderoso e mencionado rei como ele o era por
todas as partes do mundo e que para sinal disso lhe trazia cartas suas de
crença que lhe apresentaria quando o houvesse por bem.
O
rei respondeu-lhe:
-
Fico muito satisfeito com o que me diz e
tudo o que há no meu reino e seja do vosso interesse que se cumpra segundo a
vossa vontade por serviço do rei de Portugal, a quem de agora em diante, quero
como a um irmão. Ele não pode ter amizade fingida, pois há tanto tempo que
busca este reino com tantas dificuldades e perigos para os seus vassalos e
gentes, como me afirmou.
Com
estas práticas e outras que tiveram, acabadas porque já era noite, o rei mandou
que Vasco da Gama se recolhesse com o catual para uma pousada que tinha mandado
que lhe dessem; no dia seguinte se veriam com mais tempo e então lhe daria as
cartas que trazia do rei, seu irmão e mandou ao catual:
- Vai com ele e trata-o
bem e faz tudo o que for preciso para seu conforto e satisfação.
Assim
se foram Vasco da Gama e o catual para a pousada que ficava distante e o tempo
estava chuvoso. Já era noite quando chegaram e Monçaide com Vasco da Gama que o
acompanhou sempre com tanta lealdade e amizade até vir na sua companhia a
Portugal, deixando a religião de Maomé, em que nascera, pela Lei de Nosso
Senhor Jesus Cristo em que viveu e acabou como bom e católico cristão.= p.62
Capítulo
XLII
Da crença, religião,
cerimónias e costumes dos gentios canaris, brâmanes, naires e do sítio da terra
do Malabar e da cidade de Calecut.
Enquanto
Vasco da Gama repousa duas noites e um dia em terra, das dificuldades dos doze
meses do mar, antes de se ver pela segunda vez com o rei de Calecut, não será impróprio
a esta nossa História dizer alguma coisa sobre a província, crença e costumes da
gente e reis do Malabar, da qual este de Calecut é o mais poderoso, chamado Samori, dignidade semelhante entre nós à
de imperador.
São
estes gentios canaris do Malabar muito cerimoniosos; têm templos, a que chamam pagodes, muito grandes e bem
ornamentados com mutas imagens afiguradas tanto de anjos e diabos como de homens
e mulheres e outras de diversos géneros. Alguns destes pagodes têm rendas e
outros vivem de esmolas. Fundam capelas e casas de oração, a que deixam rendas
para os brâmanes se manterem e fazerem sacrifícios, em que usam grandes
cerimónias.
Há
muitas seitas deles e tantas ordens de votos diferentes que faria um grande
volume se as quisesse dizer por extenso, mas como o meu ofício é escrever
crónicas e não costumes de gentes nem História Geral, remeto o leitor para o
livro que escreveu Duarte Barbosa em
língua portuguesa sobre os costumes de toda a gente que há do Cabo da Boa Esperança
até à China, no qual trata dos costumes, cerimónias e seitas destes canaris,
brâmanes e toda a gente do Malabar assaz abundantemente, entre os quais os brâmanes são sacerdotes por geração e
deles a ordem separada de mais nobres e outros populares que
servem os nobres e qualquer outra pessoa que lhes paga e sobretudo em levar
cartas de umas províncias a outras porque, ainda que seja tempo de guerra,
deixam-nos passar livremente.
Os
brâmanes trazem três fios ao
pescoço, sobraçados de um braço ao outro em sinal da Trindade que crêem como nós. Têm por fé que Deus veio ao mundo e
nasceu ser humano para salvação dos homens e mulheres. São na sua maior parte,
doutos em filosofia e matemáticas. São muito antigos na Índia porque, quando o
imperador Alexandre foi lá ter, já os havia e eram de tanto tempo atrás que, de
seu princípio e em que tempo começaram, se não achava memória. Megástenes e Estrabo, escritores gregos, chamam-lhes filósofos da Índia. Casam uma só vez e as suas esposas fazem o
mesmo; nem depois que morre um destes nem elas pode o outro voltar a casar.
Têm
os malabares, entre outras festas,
uma que solenizam no mês de Setembro e que começa a 22 de Agosto. Neste dia, os meninos, com arcos de pau e flechas de
folhas de palma, começam a atirar uns aos outros e daquele dia por diante os
outros rapazes maiores e vai isto crescendo de dia para dia até chegar aos
homens e chega a tanto que se ferem e matam uns aos outros e os que morrem
nesta festa consideram-se salvos.
Começam
o ano no mesmo mês de Setembro, mas não em dia certo ou hora, senão na hora que
os seus feiticeiros (a que são muito
dados) lhe dizem ser a boa hora, a afortunada e se, por seus feitiços e
astrologia acham boa conjunção e hora afortunada no primeiro dia de Setembro,
naquele o começam; senão esperam até ao segundo, terceiro, quarto dia até se
achar a hora que, depois de conhecida, todos os homens e mulheres de idade de
quinze anos para cima põem umas faixas de pano sobre os olhos tão apertadas que
não vêem coisa nenhuma e assim guiados por rapazes desta idade para baixo vão
de suas casas aos pagodes, onde, depois que lhe dizem que estão diante do ídolo, desatam o pano que têm diante
dos olhos e se a primeira coisa que vêem é o ídolo, consideram que todo o ano
serão muito afortunados. Têm muitas outras superstições, tantas que, se estão
nas horas que acham serem infortunadas, nestas não querem receber dinheiro, o
que abasta bastante as finanças, quanto a cerimónias.
Há
nesta terra do Malabar cinco reis que não obedecem a nenhum outro: o de Calecut, Cananor, Cranganor, Cochim, Coulão. Além destes há o de Travancor que é sujeito ao rei de Narsinga, um dos mais poderosos reis de
toda a Índia, de cujo Estado tratarei adiante.
Os
costumes desta gente do Malabar são vários e tantos que seria longo processo
escrever todos; por isso escreverei apenas sobre os naires que são homens nobres. Estes, por lei do reino, não podem
casar; contudo os caimães, que são
senhores, podem-no fazer. Os naires têm todas as raparigas naires de geração
porque se dormem com mulher que não seja da casta naire, por lei, os outros
naires os matam à cutilada.
Os
naires recebem dos reis do Malabar que servem certa quantia de dinheiro por mês
que pode valer na nossa moeda duzentos
reais com que se mantêm honestamente com um pajem que os serve por a terra
ser barata e eles de pouco alimento.
Os
filhos destas raparigas naires não são de nenhum deles, mas sim da rapariga e
não têm nenhum dever para com os seus filhos nem estes são seus herdeiros, mas
sim os filhos das suas irmãs e não os filhos dos seus irmãos.
Andam
nus da cintura para cima e para baixo andam tapados com panos de seda e
algodão. Trazem sempre espadas e rodelas, arcos, flechas e lanças e também
espingardas que já usavam nesta altura, ainda que poucas, mas agora têm muitas
e muito boas, feitas na mesma terra. São homens muito ligeiros e destros nas
armas, exercício que aprendem desde meninos; contudo não podem trazer estas
armas, senão depois do rei ou senhor com quem vivem fazerem cavalheiros aos mestres que os ensinam
e que se chamam panicães. O rei arma
cavalheiro o pânica que o ensinou. Os
naires são tão obedientes aos panicães em moços como depois de homens; em
qualquer parte onde os encontrem lançam-se de bruços diante deles e adoram-nos
como se fossem ídolos.
Estes
naires e outras castas de gente que há no Malabar têm tal modo e ordem nas suas
gerações que o tecelão nunca pode ser sapateiro nem o sapateiro alfaiate nem o
alfaiate carpinteiro nem o carpinteiro ferreiro e assim todos os outros de modo
que hão-de continuar nos ofícios de seus pais e avós e se um destes vem ter
amizade com mulher que não seja de família do mesmo ofício, os próprios
parentes e amigos dele o matam.
Sobre
a cidade de Calecut, esta está
situada ao longo de um recife tipo costa brava. É muito grande em distância
mais do que em povoamento porque as casas são muito afastadas umas das outras
com muitos jardins e só as do rei e os pagodes são de pedra e cal, telhadas de
tijolo; todas as outras são palhotas, cobertas de folha de palma e isto por
lei.
É
uma cidade muito graciosa de jardins, pomares e hortas; tem muitas noras e
tanques de água. Está coberta e cercada de palmares e areais que a fazem muito
mais graciosa. É muito abundante de mantimentos da terra como dos que lhe vêm
de fora. Os naturais são gentios como todos os outros da terra do Malabar.
Habitam nela muitos mouros mercadores. Deles há os muito ricos, tanto que
havia, na altura, alguns que eram proprietários de cinquenta e sessenta naus.
Aos mercadores estrangeiros e de qualidade que vão a Calecut, por ordem do rei,
se dá um naire para o guardar e
servir e um escrivão, a que chamam chetim
que são homens que sabem de mercadoria e muito entendidos em contabilidade e um
corretor para lhe vender as suas
mercadorias e comprar-lhe outras. Estes serviços são pagos pelo mercador, mas para
ajuda destas despesas, os mercadores a que compram lhe dão um tanto por
cento, segundo a qualidade da mercadoria.
Na
cidade de Calecut, encontra-se todo o género de mercadorias em tanta quantidade
que a muita abundância que de todas estas coisas que os nossos viram nela lhes
fez espanto. Esta cidade é cabeça de toda a terra do Malabar e o rei era o mais
rico e poderoso de todos os reis daquela província antes que os portugueses
viessem à Índia, mas agora, por não querer a nossa amizade, por conselho dos
mouros, diminuiu muito em tamanho o seu Estado e o Estado de Cochim o aumentou
pela boa e verdadeira amizade que connosco sempre manteve. = p. 64
Capítulo
XLIII
Do que Vasco da Gama
passou com o rei de Calecut na segunda vez que com ele se encontrou e do que
lhe aconteceu até partir de Pandarane.
Vasco da Gama, desejoso de voltar para as naus,
queria, no dia seguinte, ir dar as cartas ao rei, mas não lhe foi possível e
isto dilatou-se até ao terceiro dia, no qual, na companhia do catual e de um feitor do rei lhas levou e também um presente das melhores coisas
que trazia de Portugal; mas o rei, ao recebê-lo, fez pouco caso, o que Vasco da
Gama, entendendo a pouca satisfação do rei, lhe disse:
- Não se espante, Vossa
Majestade, da insignificância do presente porque se o rei, meu senhor, soubera
decerto que lhe havia Deus de deparar esta viagem, os presentes seriam tais,
quais Sua Alteza Real requer. Se o senhor me deixar voltar a Portugal, o
presente que, com mais gosto, trarei será muitas naus que, cada ano, haverão de
vir ao porto de Calecut e delas receberá tanto proveito quanto nunca receberá
de nenhuma outra gente que a este porto venha.
O
rei ficou muito satisfeito e com alegria tomou as cartas da mão de Vasco da
Gama, escritas em português e árabe. Vasco da Gama pede ao rei:
- Peço a Vossa Majestade
que não mande ler nem interpretar estas cartas que lhe entrego do rei, meu
senhor, por homens mouros de fé, pois todos me são suspeitos.
Vasco
da Gama afirmava isto com bastantes motivos porque já tinha sabido por Monçaide como os mouros o tinham
mexericado com o rei por via do mesmo catual que o acompanhava, dizendo ao rei
que Vasco da Gama era ladrão, corsário; que se guardasse dele, que o mandasse
prender e castigar e lhe tomasse as naus porque com elas Vasco da Gama havia de
fazer muito mal antes de partir como o tinha feito em todos os portos onde
chegara.
O
rei mandou ler a carta em português por Monçaide por não haver na cidade outrem
que entendesse a língua portuguesa e este interpretou-a de verbo a verbo e a
carta em árabe mandou ler pelo mesmo Monçaide e por guzarates gentios que
falavam árabe.
Depois
disto feito, o rei despediu-se de Vasco da Gama, dizendo-lhe:
- Vossa Senhoria pode
estar na cidade, se quiser ou ir-se para as suas naus, mas aconselho-o a
guardar-se de conversar com os mouros porque sei que não estão satisfeitos com
a sua vinda.
Vasco da Gama agradeceu muito e despediu-se do
rei. Saiu acompanhado do catual e do
feitor do rei até à sua pousada e
logo no dia seguinte que foi o último de Maio, partiu para Pandarane com os seus, até onde o acompanharam muitos naires e
antes de chegar a Pandarane, o catual, que ficara em Calecut, passou por ele e,
segundo depois claramente se viu, era para o não deixar embarcar e o deter em
terra, tudo urdido pelos mouros. O catual diz a Vasco da Gama:
- Vasco da Gama, mande
chegar as naus a terra e entregue-me as velas e a governação delas.
Vasco
da Gama recusou-se a tal fazer, mas o catual foi insistindo todo aquele dia e,
no dia seguinte, dia 02 de Junho, estabeleceram
ambos que fossem levadas para terra as coisas que Vasco da Gama trazia de
Portugal; as que parecesse ao catual adequadas para com elas poder comprar
especiarias e o que lhe fosse necessário e que depois o deixaria ir para as
naus.
Vasco
da Gama imediatamente pôs em marcha o que ficou estabelecido e tudo o que lhe
trouxeram das naus entregou ao próprio catual e também Diogo Dias que ficava por feitor e Álvaro de Braga que ficava por escrivão.
Isto
feito, Vasco da Gama recolheu-se à frota sem mais querer voltar a terra e para
o rei de Calecut não tomar má suspeita do que fazia, mandou-lhe dizer pelo
feitor dos agravos que recebera do catual e para não lhe fazer outros maiores,
determinava não ir mais a terra. O rei respondeu-lhe que se ia informar sobre o
assunto e se o catual fosse culpado o mandaria castigar e para os nossos
estarem mais seguros seria bom que fossem para Calecut porque lá havia muito
mais mercadores do que em Pandarane e a eles poderiam vender com muito mais
brevidade o que levavam e deles comprar o que quisessem.
Vasco
da Gama ordenou logo que assim se fizesse e, no dia seguinte, partiram para
Calecut Diogo Dias, Álvaro de Braga com outros portugueses,
acompanhados de naires do rei e de um seu feitor que lhes fez o preço de todo o
caminho e pagou o transporte das coisas que levavam.
Depois
dos nossos estarem em Calecut, cada
dia, Vasco da Gama mandava dois a três portugueses a verem a cidade e depois
daqueles regressarem, mandava outros para assim, pouco a pouco, a verem todos.
Os gentios que os viam no caminho e na cidade faziam-lhes grande acolhimento,
dando-lhes de comer e camas para dormirem e andavam tão seguros pela cidade
como se estivessem em Portugal e os da terra, tanto mouros como gentios, vinham
muito às naus e Vasco da Gama também lhes dava bom acolhimento e nesta amizade
estiveram os nossos até ao começo do mês de Agosto e porque se aproximava o tempo em que tinham de partir,
Vasco da Gama mandou dizer ao rei por Diogo Dias:
- Para confirmação da paz
e amizade que o rei, meu senhor, quer ter convosco, determino deixar em Calecut
um feitor, mas não o quero fazer sem a sua permissão.
O
rei de Calecut tomou mal este recado ou por não o entender bem ou por pensar
que Vasco da Gama queria partir sem lhe pagar os direitos costumados tanto da
ancoragem das naus como da mercadoria que tinha já vendida e respondeu a Diogo
Dias:
- Podem ir-se embora, mas
primeiro têm de me pagar seiscentos xerafins (que vale cada um trezentos reais) que Vasco da Gama deve aos oficiais das
minhas finanças.
Vasco
da Gama não respondeu ao rei a este propósito.
O
rei mandou logo pôr guardas a Diogo Dias e a Álvaro de Braga e nas mercadorias
que tinham em terra. Vasco da Gama,
sabendo disto, mandou-lhe pedir os presos e a mercadoria arrestada e vendo que
o rei não lhe queria mandar nada, esperou que viessem às naus algumas pessoas
de qualidade que pudesse tomar como reféns. Estes foram seis homens honrados
malabares com dezanove criados, com os quais, quando os tinha na nau, se fez à
vela e com vento contrário foi ancorar a quatro léguas no mar de Calecut,
esperando que lhe viesse algum recado de terra, mas vendo que não vinha, fez-se
na volta do mar, onde lançou âncora tão afastado de Calecut que quase de lá não
viam a frota.
Estando
assim, o rei de Calecut mandou-lhe dizer que se espantava muito com o que Vasco
da Gama lhe tinha feito e pedia-lhe que se não fosse embora porque logo
despacharia os portugueses que Vasco da Gama mandara a Calecut e que, por eles,
lhe mandaria a resposta das cartas que lhe trouxera do rei de Portugal, seu
irmão. Com este recado, Vasco da Gama se fez à vela e à boca da noite, veio
ancorar diante da cidade e no dia seguinte, o rei mandou Diogo Dias e Álvaro de
Braga com os que ficaram em terra, mandando por Diogo Dias uma carta para o rei
Dom Manuel e mandou dizer a Vasco da Gama que, se quisesse deixar feitor e
oficiais com mercadorias em Calecut que ele os mandaria guardar pelos seus
naires de maneira que não lhes fizessem agravo nenhum e que a mercadoria que
ficava em terra não lha mandava, esperando que o feitor e oficiais voltassem
para ficarem em Calecut e fazerem dela seu proveito e se não os quisesse deixar
em Calecut que lhe mandaria a mercadoria.
Vasco
da Gama, não se fiando neste recado, mandou pedir a mercadoria ao rei e se o
fizesse, lhe mandaria os malabares e relativamente a deixar feitor, considerava
escusado.
No
dia seguinte, pela manhã, veio ter à nau Monçaide,
pedindo a Vasco da Gama que o levasse consigo para Portugal porque vinha fugido
de Calecut, onde se voltasse era certo de que os mouros o matariam. Do que
deixava em terra pouca importância tinha comparado com salvar a sua vida.
Vasco
da Gama recolheu-o e fez-lhe bom acolhimento até estar nestes reinos, Portugal,
onde se fez cristão. Neste mesmo dia, às dez horas, vieram à nau-capitã sete
almádias, em que o rei mandava toda a mercadoria que ficara em terra, das quais
três aproximaram-se mais e disseram que mandasse os malabares que eles
entregariam a mercadoria. Vasco da Gama, mais desejoso de trazer estes homens a
Portugal do que da mercadoria, respondeu:
- Tudo são mentiras. Aí não
vem toda a mercadoria. Vou levar os malabares comigo a Portugal para eles
mesmos dizerem ao rei, meu senhor, as desconsiderações que recebi do rei de
Calecut e dos mouros da terra. Transmitam aos parentes e amigos destes
malabares que prometo fazer-lhes muito boa companhia e que espero, com a ajuda
de Deus, de os voltar a trazer a este porto sãos e salvos.
Após
mandou atirar bombardadas às almádias que, com medo se recolheram. O rei de
Calecut mandou dizer que sentiu muito a atitude de Vasco da Gama e se tivera a
sua armada no mar, mandaria acometer as nossas naus; mas tinha a armada em
terra por ser inverno e, naquelas partes, não navegarem; apenas no verão que lá
é no tempo do nosso inverno. Contudo andando as nossas naus em calmaria uma
légua abaixo de Calecut, o rei mandou-as acometer com sessenta barcos a que
chamam tones, nos quais ia muita
gente de guerra. Houve uma trovoada e chuva providencial que os apartou com a
qual Deus lhes acudiu.
Dali
Vasco da Gama tomou a sua rota a caminho de Melinde, mas antes de sair da costa do Malabar escreveu uma carta
ao rei de Calecut, na qual lhe contava todas as traições que os mouros da terra
lhe tinham feito e sobre o mau trato que recebera do catual e de outros
oficiais. Por isso se partia sem se despedir dele, apesar de ir muito desejoso
de o servir e dava-lhe a sua palavra de que o rei Dom Manuel, seu senhor,
havia, dali por diante, ter muito em consideração a sua amizade e que ele mesmo
(Vasco da Gama) em pessoa esperava trazer
de volta os malabares. Esta carta mandou-lhe por um dos criados dos malabares
que fez pôr em terra.
O
rei recebeu a carta muito bem, mostrou contentamento e a fez ler aos parentes,
esposas e amigos dos malabares que Vasco da Gama levava consigo. Navegando
assim com calmarias, foi ter a uns ilhéus, onde o vieram acometer oito navios
pequenos de remo que vinham todos metidos debaixo de uma ramada como balsa. Fez
fugir sete navios e tomou um, onde achou cocos e jagra, que é açúcar de
palmeiras em pó, e muitos arcos, flechas, espadas e outras armas. O capitão
destes navios era um corsário, de nome Timoja,
natural de Onor, homem que fez depois muitos serviços a Portugal. Deste lugar
se foi Vasco da Gama a uma ilhota chamada Anchediva.= p. 67
Capítulo
XLIV
Do que Vasco da Gama
passou em Anchediva e dali até chegar ao reino de Portugal.
Esta
ilha de Anchediva é pequena, de
muitos arvoredos, abundante de pescados do mar e marisco. Há nela muito boa
água, é de muito bons ares, está situada junto de terra firme, onde Vasco da
Gama mandou fazer a manutenção das naus.
Nesta
altura, entre os homens da terra que vinham ver os nossos às naus, um deles era
criado de um grande senhor, chamado Cabaio,
que além de muitas terras que tinha pelo sertão, possuía a ilha e cidade de Goa. Bom cavalheiro, que mantinha à sua
custa muita gente de guerra e, sobretudo estimava muito homens estrangeiros e
lhes dava grandes salários e ordenados. Este, desejoso de ver as nossas naus e
gente, por manha, pela fama que tinham de serem homens de guerra, com disfarce
de amizade, mandou fintar Vasco da Gama, oferecendo-lhe mantimentos e dinheiro
com o mais que lhe fosse necessário; mas o mensageiro divertiu-se tanto a
transmitir o recado que Vasco da Gama, suspeitando que era espia, o mandou
prender e meter a tormento. Então este confessou que o Cabaio o mandava para
ver que gente havia nas naus e a ordem delas para, com este aviso, as mandar
acometer e a eles, se os pudesse tomar, ter por seus soldados. Antes disto,
tinha afirmado a Vasco da Gama ser cristão, trazido àquelas partes menino e embora
as mostras fossem de mouro, no coração tinha fé em Jesus Cristo; tudo em língua
italiana que falava assaz bem, mas o tormento fez-lhe confessar a verdade: que
era judeu, natural do reino da Polónia, da cidade de Poina, na qual estive duas vezes em negócios a que o rei Dom João Terceiro, que santa glória
haja, me mandou àquelas partes, cabeça e metrópole da Polónia maior; cidade
grande, bem cercada e muito abastada de mantimentos.
Assim
que Vasco da Gama soube o que o Cabaio armava cilada sobre ele, com a maior
diligência que pôde, mandou aparelhar as naus e a uma sexta-feira, dia 05 de Outubro, se fez à vela a caminho
de Melinde, levando consigo este
judeu, a quem sempre fez muita honra e bom acolhimento por o achar homem que
tinha experiência de muitas coisas da Índia e de outras províncias e trouxe-o a
Lisboa, onde se fez cristão e lhe chamaram Gaspar
da Gama que serviu o rei Dom Manuel em muitos negócios na Índia e o fez cavalheiro da sua Casa, dando-lhe
tenças, ordenados e ofícios de que se manteve toda a sua vida abastadamente.
Neste
caminho de Anchediva até Melinde, andou Vasco da Gama com calmarias e tempos
contrários mais de quatro meses, em que lhe morreram trinta homens e a primeira
terra e povoação que viram foi a cidade de Magadoxo,
situada no fim daquele golfe na costa da Etiópia, cento e treze léguas de
Melinde, diante da qual ancoraram no dia dois
de Fevereiro. Por ser de mouros, mandou-a bombardear de tão perto que fez
muito dano aos moradores e naus que estavam ancoradas no porto.
Correndo
a costa dez léguas contra Melinde lhe saíram de uma vila de mouros, chamada Pate, oito terradas que são navios pequenos de guerra com muita gente. Desfez-se
deles às bombardas e por lhe escassear o vento, não as perseguiu. Dali foi
ancorar uma segunda-feira, dia sete de
Fevereiro, diante da cidade de Melinde onde, antes de lançar âncora, o rei
o mandou visitar com refrescos da terra, seguindo logo o príncipe que veio ver
Vasco da Gama a bordo e, por sinal de amizade, mandaram com ele um embaixador ao
rei Dom Manuel. Neste porto de Melinde,
Vasco da Gama esteve cinco dias, nem quis mais esperar porque lhe passava o
tempo em que havia de dobrar o Cabo da Boa Esperança e se fez à vela numa
sexta-feira, dia doze de Fevereiro.
Por levar já muito pouca gente, mandou despejar e queimar a nau de que era
capitão Paulo da Gama, por ser muito
velha, em frente de uma vila, chamada Tagata.
Recolheu-os na sua nau e partiu com Nicolau
Coelho na outra nau.
Seguindo
a sua viagem, no dia 28 de Fevereiro,
achou-se diante da ilha de Zanzibar
que está cinco a seis léguas da terra firme daquela costa da Etiópia, povoada
de mouros que têm negócios por todos os lugares daquela costa, principalmente
na cidade de Mombaça para onde navegam em navios pequenos, sem coberta, de um
só mastro que levam carregados de mantimentos.
A
ilha de Zanzibar é muito viçosa com
rios, fontes, criações de animais e frutas, tanto que nos matos nascem
laranjeiras e outras árvores de espinho que dão muito boa fruta. O senhor desta
ilha mandou visitar Vasco da Gama com refresco da terra, pedindo-lhe que o
quisesse ter por seu amigo.
Dali
partiu no dia um de Março e a
primeira terra que avistou foram as ilhas
de São Jorge onde surgiu e sem falar com o Xeque de Moçambique se fez à vela sem tomar porto até à aguada de São Brás, onde fez aguada, abasteceu-se
de lenha e de carne e seguindo dali a sua viagem (sem em todo o caminho atrás
poder ancorar em nenhum dos portos onde deixara degredados – porque
o seu irmão, Paulo da Gama, estava muito doente e queria que fosse tratado em
Lisboa) dobrou o Cabo da Boa Esperança no dia vinte
de Março, donde cortou direito à ilha
de Santiago até ao dia vinte e cinco
de Abril que acharam sonda de vinte e cinco braças. Nesta paragem, com
temporal, apartou-se Nicolau Coelho
de Vasco da Gama e sem mais o poder ver, navegou com rota para o reino, onde
chegou a Cascais no dia dez de Julho de 1499. Por Nicolau
Coelho, o rei Dom Manuel soube as primeiras novas do que passaram nesta viagem.
Vasco
da Gama foi ter à ilha de Santiago e
por seu irmão, Paulo da Gama, vir muito doente de hetegüidade (consumpção lenta e progressiva do
organismo; tuberculose) e a sua nau fazer
muita água; com o desejo de o trazer vivo a Portugal, fretou uma caravela e deu
a capitania da sua nau a João de Sá,
mandando-lhe que a consertasse porque sem isso não poderia navegar.
A
caravela preparada, Vasco da Gama
partiu rumo a Lisboa, mas como a doença de Paulo da Gama ia ficando pior, Vasco
da Gama foi forçado a dirigir-se à ilha
Terceira, onde Paulo da Gama faleceu. Por respeito, Vasco da Gama ficou o
tempo necessário na ilha Terceira para as devidas exéquias a um tão honrado
homem e tão bom cavalheiro como Paulo da
Gama e depois da cerimónia fúnebre do seu irmão que ficou enterrado no
mosteiro de São Francisco, Vasco da Gama
se fez à vela e chegou a Lisboa no dia 29
de Agosto do mesmo ano, 1499,
havendo dois anos e quase dois meses que partira do mesmo porto com 148 homens,
dos quais voltaram ao reino 55.
A
sua vinda foi recebida com muito contentamento da parte do rei Dom Manuel que
lhe fez muita honra, dando-lhe o título de “Dom” para ele, seus irmãos e descendentes deles todos e depois
fê-lo almirante da Índia e Conde da Vidigueira com juramento.
A
Nicolau Coelho o rei Dom Manuel fez fidalgo da sua Casa e assim a eles como
a todos os que voltaram fez mercê a
cada um, segundo a qualidade do seu serviço e pessoa.
Vasco
da Gama deixou postos nesta viagem cinco padrões: São Rafael, no rio dos Bons Sinais; São Jorge, em Moçambique; Santo
Espírito, em Melinde; Santa Maria,
nos ilhéus que por isso se chamam de Santa Maria, situados entre Bacanor e
Baticala e o outro em Calecut, chamado São
Gabriel. Com estes padrões, em virtude das bulas dos Papas Nicolau Quinto e
Sixto Quarto, concedidas ao Infante Dom Henrique, filho do rei Dom João I e ao
rei Dom Afonso Quinto, sobrinho do dito Infante e filho do rei Dom Duarte,
tomou licitamente posse para a coroa destes reinos de Portugal, de tudo o que
descobrira até ao reino de Calecut como dantes fizeram os outros capitães até à
paragem do rio de Lopo Infante, cujas bulas me pareceu desnecessário mencionar
aqui, primeiro por conterem muita leitura e segundo porque quem, por
curiosidade, as quiser ler, encontrá-las-á na Torre do Tombo destes reinos,
onde no momento presente estão em meu poder (Damião de Goes estava na Torre do Tombo
a reunir material para escrever esta crónica).= p. 68
Capítulo
LXVIII
Do que o almirante Dom
Vasco da Gama passou a segunda vez que foi à Índia até chegar a Cochim.= p. 100
Informado
o rei Dom Manuel por Pedro Álvares Cabral do que se passara com o rei de
Calecut e das traições que os mouros da terra lhe armaram, determinou de o
mandar outra vez à Índia, mas por o rei querer separar da sua bandeira cinco velas que também mandava à Índia
sob a capitania de Vicente Sodré
para ficar lá e andar de armada contra os mouros; escusou-se de o fazer e por
isso deu a capitania da mesma armada a Dom
Vasco da Gama em que entravam dez
velas de que eram capitães Dom Luís
Coutinho, Pedro Afonso de Aguiar,
Francisco da Cunha, João Lopes Perestrelo, Rui da Castanheda, Gil Matoso, Luís Fernandes,
António do Campo, Diogo Pires e das cinco velas que iam separadas em capitania, por si, era capitão Vicente Sodré, tio de Dom Vasco
da Gama e os outros capitães eram Brás
Sodré, seu irmão, Pero de Ataíde,
Pero Rafael e João Rois Badarças.
Além
destas quinze velas, o rei mandou madeira já preparada para uma caravela que se havia de armar em
Moçambique para guarda daquela costa até Sofala. Estas duas armadas partiram do
porto de Belém, no dia 10 de Fevereiro de 1502, tendo o rei
dado a Dom Vasco da Gama, pouco antes de partir, o título de Almirante do Mar da Índia, para lhe
gratificar os serviços que lhe tinha feito e esperava que lhe fizesse nesta
viagem.
Além
destas quinze velas, o rei mandou aparelhar mais outras cinco de que deu a capitania a Estevão
da Gama, primo-irmão de Dom Vasco da Gama, que partiu de Lisboa no dia primeiro de Abril do mesmo ano de 1502. Os outros capitães eram Lopo Mendes de Vasconcelos, Tomás de Carmona, Lopo Dias, criado de Dom Álvaro e João de Bonagracia, italiano.
Dom
Vasco da Gama passou o cabo da Boa Esperança com toda a sua armada até chegar
ao cabo das Correntes sem lhe
acontecer coisa que seja de contar, donde mandou o seu tio, Vicente Sodré, com onze velas das da
companhia que o fossem esperar a Moçambique porque com as quatro queria ir a
Sofala ver o sítio do porto e o modo da gente da terra do xeque. Em Sofala, foi bem recebido e, ficando
amigos, partiu para Moçambique, mas ao sair do rio de Sofala perdeu uma das
naus, mas a gente e mercadoria salvou-se toda.
Em
Moçambique encontrou-se com o xeque
que já era outro e não o que ali encontrou da primeira vez que foi à Índia.
Este fez-lhe muita cortesia e bom acolhimento, mandando dar todo o aviamento
necessário à frota. Depois do carregamento feito, partiu para Quíloa, levando consigo a caravela que
se armou em Moçambique e Dom Vasco da Gama deu a capitania desta caravela a João Serrão porque a sua intenção era fazer guerra ao rei que se chamava
Abrahemo e destruir-lhe a cidade se
não se emendasse dos erros do passado.
Chegados
a Quíloa, primeiro Dom Vasco da Gama
e logo depois chegou Estevão da Gama com as cinco naus de que era capitão e ao
todo eram dezanove velas porque a nau de António Campo se perdera
da companhia.
O
rei de Quíloa teve tanto medo com a chegada destas naus que, de sua própria
vontade, mandou dizer a Dom Vasco da Gama que se queria encontrar com ele e
assim foi feito. O encontro aconteceu no mar, Dom Vasco da Gama prendeu-o e
desenganou-o assim:
- Se não se faz vassalo
do rei, meu senhor, levo-o preso até à Índia e daí a Portugal.
O
rei de Quíloa, com medo destas ameaças, prometeu dar cada ano dois mil meticais
de ouro de páreas (tributo
de um soberano a outro como sinal de obediência ou vassalagem) e as daquele ano mandaria quando fosse a
terra para segurança disso ficaria com ele Mafamede
Enconii que era a segunda pessoa mais importante do seu reino, a quem o rei
queria grande e secreto mal com medo que tinha de este lhe tomar o reino que
ele tinha usurpado a outro que fora rei.
Dom
Vasco da Gama, crendo que era verdade o que lhe dizia, soltou-o; mas depois de
se sentir em liberdade, desejoso que Dom Vasco da Gama tivesse alguma acção
para matar Mafamede Enconii, não
quis mandar as páreas. Este, vendo-se
preso, disse a Dom Vasco da Gama que o rei era um homem muito mau e que assim
enganara Dom Vasco da Gama. Ele propôs-se pagar às suas custas, os dois mil
meticais de ouro e assim o fez. Dom Vasco da Gama deixou-o ir livremente para a
cidade e ficaram ambos grandes amigos.
De
Quíloa, Dom Vasco da Gama foi ter, por causa das correntes, a uma enseada, oito
léguas abaixo de Melinde e, apesar de muito desejar encontrar-se com o rei para
o gratificar pela boa companhia que lhe fizera da outra vez, não o pôde fazer.
Contudo o rei mandou um degredado, de nome Luís
de Moura, que ali deixara Pedro Álvares Cabral, visitar Dom Vasco da Gama. Feita
a aguada e abastecidos de carne, partiu para a Índia; chegando ao monte Deli, avistou uma nau do sultão
da Babilónia chamada Merii, cujo
capitão era Ioarfaquim. Nau grande e
bem armada que partira de Calecut carregada de especiarias e outras mercadorias
para Meca, onde havia muitos peregrinos que, pela sua devoção, iam visitar o
sepulcro do profeta Maomé. Dom Vasco da Gama tomou esta nau com muito esforço
porque os mouros se defenderam muito bem todo aquele dia e a noite, mas no dia seguinte,
os portugueses entraram na nau e foram mortos mais de trezentos e aos meninos
que lá havia, Dom Vasco da Gama mandou que os levassem para a sua nau com
intenção de os fazer frades no mosteiro de Santa Maria de Belém, Lisboa.
Tomada
esta nau, Dom Vasco da Gama partiu para Cananor,
onde entregou ao rei o seu embaixador que mandara a Portugal e deu-lhe um
presente que o rei Dom Manuel lhe mandava. Dom Vasco da Gama foi recebido com
grande aparato e muita cortesia.
Após
dirigiu-se ao porto de Calecut e
chegando lá tomou alguns paraus em que poderia haver até cinquenta malabares da
cidade. Tendo ancorado no porto sem dar sinais de guerra, chegou à sua nau um
mouro vestido em trajo de frade franciscano que os nossos julgaram ser algum
dos que estavam com Aires Correia quando o mataram. Quando chegou disse “Deo Gratias” e disse logo que era mouro
e que vinha assim vestido para poder chegar às naus sem lhe fazerem mal para
dar recado ao capitão que o rei queria com ele fazer paz e amizade porque tudo
o que até ali se passara lhe pesava muito. Dom Vasco da Gama respondeu-lhe:
- Também quero o mesmo e
por isso regressei a Calecut. Em sinal do que o rei me transmite, quero que me
seja entregue toda a mercadoria que tomaram a Aires Correia ou o pagamento do
seu valor.
Muitos
recados num sentido e no outro foram trocados até que Dom Vasco da Gama, sentindo
que tudo era enganos, mandou dizer ao rei pelo mesmo mouro:
- Eu também ando nestes
negócios das especiarias e se não fizer o que mandou dizer, por vingança da
morte de Aires Correia, mandarei enforcar todos aqueles malabares, seus
súbditos que são meus prisioneiros.
O
rei de Calecut não respondeu a este recado de Dom Vasco da Gama e este
mandou-os enforcar e depois de mortos mandou-lhes cortar os pés, as mãos e os
corpos mandou lançá-los ao mar para, com a maré, irem ter à praia. Os pés e as
mãos mandou meter num parau e à toa ser levado a terra por dois batéis e nele
uma carta para o rei de Calecut, desafiando-o à guerra de fogo e sangue da
parte do rei Dom Manuel, seu senhor, tanto a ele como a todos os seus amigos,
súbditos e vassalos. Esta carta e o espantoso presente foi para o rei e todos
os da cidade de muita tristeza.
Naquela
noite, Dom Vasco da Gama fez chegar todas as naus o mais perto de terra que
cada uma pôde e ao amanhecer, mandou bombardear a cidade. Isto provocou, entre
outros danos, o derrube do cerame do rei que estava junto à praia. Depois
partiu para Cochim, deixando Vicente Sodré com seis velas para
guardar a costa do Malabar.
Capítulo
LXIX
Do que o almirante Dom Vasco da Gama fez em
Cochim e Calecut e do mais que se passou na sua viagem até regressar ao reino.
Na
mesma altura em que Dom Vasco da Gama lançou âncora no porto de Cochim, veio ao seu encontro na nau o
feitor Gonçalo Gil Barbosa com os
outros portugueses que com ele estavam e por eles soube da honra, acolhimento e
boa amizade que todos tinham recebido do rei de Cochim e por isso ficou muito satisfeito.
No
mesmo dia, o rei de Cochim mandou um naire, dos principais da sua Casa, a
convidar Dom Vasco da Gama para o ir
visitar e logo ficou decidido que o visitaria no dia seguinte e assim o fez. Dom
Vasco da Gama entregou um presente de muitas peças de ouro, prata, brocados e
sedas entre os quais havia uma coroa de ouro. Transmitiu-lhe que o rei Dom
Manuel, seu senhor, lhe mandava aquele presente como a um bom e verdadeiro
irmão e amigo. O rei de Cochim sentiu-se muito honrado e, em sinal de amizade,
mandou por Dom Vasco da Gama ao rei Dom Manuel outro presente de que faziam
parte duas braceletes de ouro com muita e muito rica pedraria e uma pedra preciosa
do tamanho de uma avelã, de que há muito poucas, a que os indianos chamam bulgoldalf e que é uma pedra com um
grande poder de cura contra todo o género de doenças e que se encontra na
cabeça de uma alimária. Após, o rei de Cochim entregou a Dom Vasco da Gama o
feitor Gonçalo Gil Barbosa com todos os outros portugueses que ficaram à sua
guarda, muito contente por até ali os ter protegido dos perigos e traições que
os mouros de toda aquela província lhes armavam e do mesmo modo entregou Dom
Vasco da Gama ao rei de Cochim Diogo
Fernandes Correia que havia de ficar por feitor e Lourenço Moreno e Álvaro Vaz,
escrivães a seu cargo com todos os outros portugueses que com eles ficaram.
Poucos
dias depois, vieram encontrar-se com Dom
Vasco da Gama embaixadores de certa gente cristã que habita nas terras de Cranganor a pedir-lhe que os quisesse
tomar à sua guarda e, em nome do rei de Portugal, defendê-los dali por diante, em
cuja vassalagem se punham. Dom Vasco da Gama agradeceu a Deus e prometeu-lhes,
em nome do rei, o fazer tanto ele como todos os outros capitães que à Índia
viessem. Sobre os costumes e religião será escrito adiante em lugar próprio.
Andando
Dom Vasco da Gama ocupado com as
coisas necessárias à sua viagem de regresso, o rei de Calecut mandou
dissimuladamente um brâmane sob o pretexto de dizer que queria ir a Portugal
com um seu filho e um seu sobrinho que trazia consigo para aprenderem letras e
verem o modo que os cristãos tinham de viver na Europa; mas alguns dias depois,
de conversa em conversa, com muita prudência veio Dom Vasco da Gama a descobrir
que ele tinha vindo ali da parte do rei de Calecut a pedir-lhe que quisesse ser
seu amigo e ir com toda a sua armada a Calecut, onde lhe daria carga para
quantas naus quisesse e além disto mandaria pagar tudo o que dos portugueses lá
tomara.
Dom
Vasco da Gama decidiu de o fazer, apesar de ser contra a vontade de todos os outros
capitães. Contudo, para sua segurança, mandou deter o brâmane na nau de Estevão da Gama, a quem deixou a
responsabilidade de toda a frota e ele com sua nau e uma caravela partiu para Calecut, levando consigo o filho e o
sobrinho do brâmane. Depois de ancorado, o rei de Calecut mandou-lhe muitos
recados de paz e amizade; no que andavam os mesmos filho e sobrinho do brâmane
a transmitir, mas como o rei era inconstante, induzido pelos mouros, vendo como
Dom Vasco da Gama estava ali com tão pouca companhia, mandou-o acometer com
trinta e quatro paraus, dos quais Dom Vasco da Gama não se pôde livrar sem
deixar a âncora e calabre que mandou cortar, ao dar à vela. Nem assim
conseguiria escapar-lhes se não fosse um vento de terra que afastou a nau de
terra, contudo foi sempre seguido pelos paraus até que apareceu Vicente Sodré, a quem ele mandara
recado pela caravela que trouxera de Cochim para que ele viesse ter com ele a
Calecut. Com a sua vinda, os paraus foram destroçados e morta muita da sua
gente.
De
seguida, Dom Vasco da Gama partiu para Cochim
e quando lá chegou mandou enforcar o brâmane, por quem o rei de Calecut mandara
o recado e o mesmo teria feito ao filho e ao sobrinho, se estes não tivessem
escapado da nau antes de se ter descoberto a traição. O rei de Calecut afirmou
ter ficado muito triste com a morte deste brâmane e vendo que nem por manha nem
por força se podia vingar à sua vontade dos portugueses, decidiu com cartas e
recados secretos acometer o rei de Cochim, fazendo-lhe grandes oferecimentos se
lhe quisesse entregar os portugueses que tinha na sua terra e não dar carga às
suas naus. Sobre isto escreveu-lhe três vezes, mas ele respondeu-lhe muito
ao contrário:
- Não é costume de bons reis serem
traidores nem de confiança nem de perjuros aos que neles confiam e põem suas
pessoas, bens e vidas sob a sua guarda e verdade que faltando, não se podem mais
chamar reis.
O
rei de Cochim deu conhecimento a Dom Vasco da Gama destes recados quando dele
se despediu para o seu regresso ao reino de Portugal. Não o quis dizer antes
para não o desinquietar e dar trabalho com suspeitas de poder cuidar que o rei
de Cochim aceitaria as ofertas que o rei de Calecut lhe tinha feito.
Dom
Vasco da Gama agradeceu-lhe muito da parte do rei, seu senhor, esta boa vontade
e lealdade, dizendo-lhe perante muitos dos seus panicães, caimães e naires que
deixaria na Índia tantas naus da sua armada quantas necessárias para se sentir
seguro perante o rei de Calecut. O rei de Cochim mostrou grande contentamento,
principalmente por lho dizer diante daqueles, entre os quais sabia haver alguns
que, por respeito aos mouros, não tinham boa vontade aos nossos.
Dom
Vasco da Gama partiu de Cochim para Cananor
com dez naus carregadas a buscar três que lá estavam a carregar e estando a
três léguas de Pandarane, saíram a ele vinte e nove naus que o rei de Calecut
tinha prontas para o mandar acometer, com as quais, por conselho e parecer dos
outros capitães, determinou pelejar e ordenou que fosse adiante Vicente Sodré, Pero Rafael, Diogo Pires
por irem hesitantes. Estes atacaram duas naus dos mouros que vinham afastadas
um pouco das outras: Vicente Sodré uma e Pero Rafael e Diogo Pires a outra e as
renderam antes que nem Dom Vasco nem nenhuma das outras naus da armada
chegassem a eles. A gente destas naus atirou-se toda ao mar e os nossos, em
batéis, mataram mais de trezentos. As outras naus dos mouros, vendo o desbarato
das duas, acolheram-se a terra sem que Dom Vasco da Gama as pudesse alcançar.
Encontraram-se
nestas duas naus algumas coisas de valor, entre as quais um ídolo de ouro que
pesava trinta arráteis (30x459 gr) de figura muito monstruosa que tinha por olhos duas ricas esmeraldas,
coberto com um manto de ouro martelado, ornado de pedraria com um rubi no peito
do tamanho de um cruzado (moeda portuguesa). Despejadas as naus, Dom Vasco da Gama mandou pôr-lhes fogo que se
ateou de modo que todas arderam à vista da frota.
Dali
se foi para Cananor buscar as três
naus que estavam a carregar, onde estabeleceu paz e amizade com o rei e
fizeram-se contratos assinados e selados por ambos, nos quais entrava o
rei de Cochim, prometendo o rei de Cananor nunca lhe fazer guerra nem ajudar o
rei de Calecut se disso tivesse vontade nem nenhuma outra pessoa. Feitos e
firmados estes contratos, Dom Vasco da Gama entregou ao rei de Cananor Gonçalo Gil Barbosa que ali ficava por
feitor, Sebastião Álvares e Diogo Godinho por escrivães e outros
portugueses que com eles ficaram, cerca de vinte que o rei tomou em sua confiança
e guarda.
De
seguida, partiu para o reino de Portugal no dia 28 de Dezembro de 1502 com treze naus carregadas de especiarias e
de outras riquezas, deixando estabelecido que Vicente Sodré com a sua armada ficasse na costa do Malabar, onde
andaria até ao mês de Fevereiro. Se até
àquela data o rei de Calecut não fizesse guerra ao rei de Cochim, então
fosse para o estreito do mar da Arábia fazer guerra aos mouros como vinha no
memorando. Os capitães que ficaram com Vicente Sodré foram Brás Sodré, seu irmão, Pero
de Ataíde, Pero Rafael, Fernão Rodrigues Badarça e Diogo Pires.
Depois
de isto estabelecido, partiu o almirante Dom Vasco da Gama para o reino de
Portugal sem ir a terra senão em Moçambique,
onde fez aguada e se abasteceu de carne e seguindo sua viagem, no cabo das Correntes, apanhou um temporal
em que a nau de Estevão da Gama se
perdeu da frota e Dom Vasco da Gama chegou com as outras doze naus a Lisboa no
dia um de Setembro de 1503.
O
rei estava esperando-o no porto e recebeu-o com tanto prazer quanto o seu bom sucesso
o requeria e logo foi visitar a nau com Dom Vasco da Gama e os mais senhores e
fidalgos que então se encontravam na corte e depois acompanharam Dom Vasco da
Gama até ao paço, indo diante dele um seu pajem que levava numa bacia de água
de mãos os dois mil meticais de ouro das páreas
do rei de Quíloa e também os contratos
que fizera com ele, com o rei de Cananor e com o rei de Cochim. Destes dois mil
meticais de ouro o rei Dom Manuel mandou fazer uma custódia para o sacramento do altar, guarnecida de pedras preciosas
e mandou-a oferecer no mosteiro de Santa
Maria de Belém, Lisboa. Passados seis dias após a vinda de Dom Vasco da
Gama, chegou a Lisboa Estevão da Gama.= p. 105
Capítulo
LXXIII
Do como o rei de Calecut
começou a fazer guerra a Trimupata,
rei de Cochim e qual a causa.= p.
107
Depois
da partida de Dom Vasco da Gama, o rei de Calecut pôs em marcha a má vontade
que tinha contra o rei de Cochim, misturada já com a inveja de o ver próspero e
a sua cidade – Cochim – ir em crescimento com o proveito que recebia dos
portugueses para o que se começou a preparar para lhe fazer guerra.
Sabido
isto em Cochim, houve muitos dos mouros e gentios dos principais da terra que
aconselhavam o rei, para evitar tão grande perigo, a satisfazer o rei de
Calecut com a entrega dos portugueses que estavam no seu reino, Cochim.
Contudo
ele não quis seguir este conselho, antes afirmou aos que lho davam que se
falassem mais nisso os mandaria castigar. Não era ele, o rei, que havia de
quebrar a confiança dos portugueses e a verdade, pela qual não estimaria perder
todo o seu reino e Estado. Assim que, tendo por certa a vinda do rei de
Calecut, começou a preparar-se o melhor que pôde.
Nesta
altura, Vicente Sodré que ficara por
capitão do mar, veio ter com a sua
armada a Cochim, mas embora esta guerra estivesse já divulgada e Diogo
Fernandes Correia lhe requeresse que se fosse a Cochim e desembarcasse com a
gente que as naus pudessem dispensar para ajuda e favor do rei de Cochim e seu (deles,
portugueses); ele não o quis fazer, dando
a isso suas razões que parece que, naquela altura e de tanta necessidade, não
tinham lugar. Finalmente sem ter em conta o que Diogo Fernandes Correia requeria e cumpria ao serviço do rei, ele
se fez à vela a caminho do cabo de Gardafum,
a esperar as naus dos mouros para fazer presas do que esperava mais proveito do
que da guerra do rei de Calecut com o de Cochim.
Fazendo-se
estes preparativos de guerra, houve da parte de ambos os reis muitos recados,
mas o de Cochim de maneira nenhuma quis conceder ao de Calecut a entrega dos
portugueses, pelo que cada um deles se decidiu a fazer a guerra ao outro: o de Cochim juntou toda a sua armada na
mesma cidade e o de Calecut em Panane,
para onde, além dos seus súbditos e vassalos vieram muitos senhores daquela
província, desejando lançar os portugueses fora da Índia por amizade aos mouros
que a isso os induziam com muitas dádivas, ofertas e antigas amizades. Chegou a
tanto de pensarem todos os malabares que o rei de Cochim não podia deixar de
perder daquela vez o seu Estado, pelo que mesmo os seus vassalos se lançavam
para combater com os de Calecut, entre os quais o caimal de Chirabipil, o de Cambalão e o da ilha grande
que está defronte de Cochim; pessoas principais do reino de Cochim. Contudo
esta guerra não pareceu bem a Nabeadarim,
sobrinho do rei de Calecut e seu único herdeiro que muitas vezes
aconselhou o seu tio a que não a fizesse, profetizando-lhe que desta guerra
haveriam de recrescer muitos males e danos. Mesmo assim o rei de Calecut fez
pouco caso e num dia certo que os seus feiticeiros lhe indicaram para
começar a guerra, partiu de Panane muito poderoso, tomando o caminho pelas
terras de Repelim que ficam a quatro
léguas de Cochim.
Foi
tamanho o medo em todos da cidade de Cochim que Diogo Fernandes Correia, parecendo-lhe ser melhor para o rei de
Cochim e que com isso se faria as pazes entre os dois reis, pediu-lhe embarcação
para se ir com todos os portugueses para Cananor, onde ficariam até vir a
armada de Portugal. O rei de Cochim estranhou muito, dizendo-lhe que ele ainda
não estava morto nem o rei de Calecut senhor do reino de Cochim, pelo qual ele
próprio se aventuraria por serviço do rei de Portugal, seu irmão. Diogo
Fernandes Correia e todos os portugueses que estavam em Cochim ficaram não
somente satisfeitos, mas também espantados, confirmando a opinião que dele
tinham como pessoa em quem nunca acharam engano nem falta no que prometesse.
O
rei de Cochim fez, para esta guerra, capitão um seu sobrinho e herdeiro, de
nome Naramuhim que enviou com cinco
mil e quinhentos naires a um passo que chamam de vau por se conseguir passar com a maré vazia com água pelo joelho,
por onde o rei de Calecut queria entrar para a ilha de Cochim.
Sabendo
o rei de Calecut que Naramuhim
estava no passo do vau; com receio dele porque era um dos melhores guerreiros
de todas as terras do Malabar e muito bem preparado nas coisas de guerra, escreveu
uma carta ao rei de Cochim, na qual lhe pedia novamente a entrega dos
portugueses. O rei de Cochim respondeu o mesmo que das outras vezes e o rei de
Calecut moveu logo o seu exército, jurando não voltar às suas terras sem deixar
destruídas as terras do rei de Cochim. Contudo às terras por onde entrou,
apesar de serem do reino de Cochim, não as destruiu por serem de vassalos
desleais ao rei de Cochim, que andavam com ele. No dia 31 de
Março de 1503, partiu das terras de Repelim
e no dia 02 de Abril, chegou ao
passo do vau, onde alguns dos seus naires quiseram logo atacar Naramuhim, sobrinho do rei de Cochim,
que já ali estava. Este defendeu o rei de Cochim como bom guerreiro, matando
muitos deles sem perder nenhum dos seus.
No
dia seguinte, tendo já o rei de Calecut
montado o seu arraial, mandou ao senhor de Repelim que, com a sua gente e
outras capitanias fosse atacar o vau e para ajuda destes, mandou muitos paraus
armados com a melhor gente da sua corte. Naramuhim
defendeu-se ainda melhor do que fizera no dia anterior. Nestas vitórias ele
usava o conselho e parecer de Lourenço
Moreno que o acompanhou nesta situação com alguns dos portugueses que
ficaram em Cochim. Destas duas vezes como de outras que os de Calecut atacaram
o passo do vau e se espalharam pela terra para destruir alguns lugares de
Cochim, sempre foram desbaratados, sucedendo ao rei de Calecut tudo ao
contrário do que esperava.
Vendo
o rei de Calecut o estrago que o príncipe Naramuhim fazia nos seus, teve esperteza
para, com um naire a quem pagava
soldo e que era da gente do rei de Cochim e que subornado por dádivas e
promessas deixou de vir fazer as pagas do soldo ao campo de batalha de
Naramuhim como dantes o fazia e fingindo-se maldisposto, foi para Cochim,
afirmando que quem quisesse soldo lá o fosse receber, o que fizeram por alguns
dias. Crescendo assim este descuido, uma noite muitos dos naires pediram ao
príncipe Naramuhim que os deixasse ir a Cochim receber o que lhes era devido.
Nessa
noite, tendo o rei de Calecut aviso do que se passava, mandou acometer o vau
por mar e por terra com toda a sua gente, paraus e artilharia ao que Naramuhim,
não pôde resistir pela gente que faltava e pouca que tinha em comparação com a
do rei de Calecut e o passo foi entrado e Naramuhim foi morto com flechas e
dois sobrinhos seus entre os palmares até onde os inimigos o seguiram,
defendendo-se sempre como esforçados guerreiros. Esta batalha durou parte
daquela noite em que foram acometidos e todo o dia seguinte até ser tão tarde
que já não se viam uns aos outros pelo que o rei de Calecut não quis mais prosseguir
a vitória, mas também perdeu muita da sua gente.
Com
a nova deste tão grande desastre, o rei de Cochim ficou muito triste. Contudo,
apesar de estar muito debilitado, determinou esperar o rei de Calecut e dar-lhe
batalha, na qual foi desbaratado. Constrangido passou-se a uma ilha que se
chama Vaipim, situada defronte de
Cochim, levando consigo todos os portugueses com a mercadoria que tinha na
cidade, sem nunca os de si querer apartar nem entregar ao rei de Calecut,
apesar de, após estas perdas, este ainda os mandasse pedir muitas vezes,
prometendo ao rei de Cochim paz e amizade. O rei de Cochim continuou não lhe
entregando os portugueses e o rei de Calecut mandou queimar a cidade de Cochim,
acometer por muitas vezes a ilha de Vaipim, onde não pôde fazer dano por ser um
sítio muito bem protegido e o rei de Cochim ter consigo gente que lhe bastava
para se defender.
Escrevam
os gregos, escrevam os romanos tudo o que se pode dizer de imperadores, reis,
príncipes, repúblicas, cidades e pessoas particulares a que deram muitos
louvores por manterem as suas promessas a que a confiança pública os obrigava,
mas eu não creio que a verdade e a confiança que o rei de Cochim manteve e
defendeu os nossos seja inferior a nenhuma daquelas de que eles em seus livros
sobre este caso fazem muitas e espantosas admirações.
Vendo
o rei de Calecut que aproveitava pouco em querer invadir a ilha de Vaipim e por ser já o início do inverno
se foi a Cranganor com o objectivo
de, no início do verão, voltar outra vez a esta guerra e para que lhe ficasse
Cochim pacífico mandou fazer tranqueiras (= paliçada) no mais seguro da cidade em que deixou para
guarda muita e boa gente da sua.
No
dia em que mataram Naramuhim foi
tamanho o medo em Cochim que muitos
se lançaram no arraial do rei de Calecut, entre os quais foram dois lombardos
milaneses, lapidários (= que lapidam pedras preciosas), um de nome João Maria e o outro Pedro
António que estavam com Diogo Fernandes Correia e foram à Índia com permissão
do rei Dom Manuel na segunda armada de Dom Vasco da Gama e foram muito
prejudiciais, dando muitos ardis de guerra ao rei de Calecut contra os nossos
como adiante se escreverá.
Capítulo
LXXIV
De como se perderam nas
ilhas de Curia e Muria, Vicente Sodré e Brás Sodré, seu irmão, e do que os
outros capitães depois passaram.
Convencido
Vicente Sodré da esperança que tinha
posta nas presas das naus dos mouros que ia buscar mais do que a razão que o
obrigava a ficar em Cochim em ajuda do rei e a favor dos nossos, partiu como no
capítulo atrás está escrito. Seguindo assim a sua viagem tomou, na costa de Cambaia, cinco naus aos mouros, tão
ricas que só o dinheiro contado que nelas achou passava de duzentos mil
pardaus, moeda que vale na nossa trezentos e sessenta reais cada um e com o bom
êxito conseguido, depois mandou queimar estas naus e seguiu para umas ilhas que
estão além do cabo de Guardafum, chamadas Curia
e Muria para consertar algumas das
suas naus que metiam água e lá chegou no dia 20 de Abril do ano de 1503.
Os
moradores destas ilhas, apesar de serem mouros, por serem todos lavradores e
pescadores, homens pacíficos, mais interessados no que lhes traga proveito do
que aos perigos da guerra, fizeram boa companhia a todos os da armada,
servindo-os, vendendo-lhes mantimentos e devido à segurança que encontraram
entre gente de costumes tão diferentes dos nossos e fé, Vicente Sodré mandou tirar a caravela de Pero de Ataíde para manutenção
e vendo os mouros que a armada estava a vagar, disseram-lhe que ordinariamente
naquelas ilhas, no início do mês de Maio, costumava acontecer uma tormenta
de vento forte daquele lado onde eles estavam ancorados e que nenhuma nau
que ali estivesse naquela altura se salvava, pelo que lhe aconselhavam que
fosse para o outro lado das ilhas até que o temporal passasse porque lá estaria
seguro. Vicente Sodré, parecendo-lhe
que isto era engano, não dando atenção ao que lhe diziam, respondeu-lhes que as
naus que se perdiam com aquele temporal eram feitas de cana e tinham as âncoras
de pau. Por muito forte que fosse o temporal, as suas naus poderiam bem esperar
no lugar onde estavam. Os mouros aflitos avisavam-no sem cessar, mas ele não
quis mudar.
Como
os mistérios de Deus são grandes e ocultos, logo ali a ambição, soberba e
egoísmo de Vicente Sodré foram postos à prova e teve o que merecia pela
desumanidade e crueza que usou em Cochim, deixando um rei tão nosso amigo e
seus próprios naturais portugueses em perigo tão evidente. Finalmente Pero Rafael, Fernão Rodrigues Bardaças e Diogo
Pires, apesar de ele ter mandado que não se apartassem dele, não lhe
quiseram obedecer e passaram-se para o outro lado da ilha já no último dia do
mês de Abril, ficando ali Vicente Sodré
e o seu irmão Brás Sodré e a gente
da caravela que estava a consertar e de que era capitão Pero de Ataíde. Ancoradas estas três velas detrás das ilhas,
sobreveio o temporal que os mouros diziam, com tanta fúria que as duas naus
deram à costa e se desfizeram em pedaços. Morreu a maior parte da gente e o
mesmo aconteceu a Vicente Sodré e ao seu irmão Brás Sodré sem se salvar coisa
nenhuma senão o que o mar lançou na praia que foram enxárcias, mastros, pipas e
coisas deste género com muitos corpos mortos porque nem do dinheiro nem das
mercadorias que eram muitas e de muito valor se pôde recuperar nada, apesar de
nisso se terem empenhado muito.
Passada
esta tormenta, as três naus que estavam detrás das ilhas vieram para o lugar
anterior, onde os Sodrés morreram e donde, depois da caravela de Pero de Ataíde ter ficado consertada,
se partiram, elegendo-o a ele por seu capitão e todos decidiram de se ir a
caminho de Cochim socorrer o rei e os portugueses que lá deixaram por lhes
parecer juízo de Deus o que aconteceu àqueles dois irmãos. Isto aconteceu já em
meados de Maio que é a força do
inverno naqueles lados, pelo que, com temporais que lhes davam de face, não
puderam chegar a Cochim como desejavam e foram constrangidos a ancorar em Anchediva, onde invernaram. Quatro dias
depois da sua chegada, chegou a este porto António
do Campo, um dos capitães da armada de Dom Vasco da Gama que, por
morrer-lhe o piloto, navegou sempre ao longo da costa com muito trabalho e
perda de gente que lhe morrera.=
p. 111
Transcrita para o português actual por
Maria Carmelita de Portugal
Lagos,
10 de Fevereiro de 2017
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