Sobre “À Memória do Meu Pai”
Lagos, 16 de Junho de 2013
O meu pai gostava muito de cantar, mas não o
fazia frequentemente. Cantava apenas se estivéssemos nalgum convívio e lho
fosse pedido.
Nos últimos tempos de convívios, lembrava-se
só de três fados que cantava: Maria José dos
Santos – Novo Fado da Severa – Marco do Correio. “Maria José dos Santos” era o fado de que
mais gostava e que mais gostava de cantar. Em casa nunca cantava por cantar,
mas ouvia muita rádio e discos de vinil e tinha uma voz bonita. A minha mãe
nunca cantava, mas contava que, quando era solteira e ficava sozinha em casa,
cantava com muito gosto a acompanhar os cantores da rádio enquanto fazia as
suas tarefas. Uma ou outra vez a apanhei a cantar, acompanhando a rádio e
dirigi-me para a divisão da casa onde estava, dizendo-lhe “canta muito bem; tem uma voz bonita.” Ela imediatamente parava de
cantar e não voltava a fazê-lo. Não me dizia absolutamente nada.
Não sei o que se passava; talvez algum
compromisso que tenham ambos assumido. Sei que o meu pai, quando era solteiro,
passava muitos sábados e domingos sem se deitar por causa dos bailes. Após o
casamento, isso não aconteceu nem uma única noite. Assumiu plenamente o seu
estatuto de pai de família.
Nos
últimos tempos, a memória do meu pai começava a fraquejar-lhe. Ajudava-os (pai
e mãe) psicologicamente as canções e
fados que iam escutando na rádio SIM da época da sua juventude.
Nós
pedimos ao meu pai que fosse escrevendo o que gostasse. Ele assim o fez.
Escreveu letras de canções e fados de que gostava e se ia lembrando. Depois
chegou uma altura em que deixou de o fazer. Dizia que o cansava muito. Nós
respeitámos e não insistimos mais. Contudo ainda se estava a dois anos do
período dos AVC e seu falecimento.
Desses
apontamentos transcrevo:
Maria José dos Santos
Maria
José dos Santos
Formosa,
cheia de encantos
Há
três anos que namorava
Com
um moço bem comportado
Rapaz
pobre, mas honrado
Que
cegamente a amava.
Ela
aos seus pais deu a entender
O
que tencionava fazer
Era
com ele casar
Mas
seu pai assim falou
Agora
dizer-te vou
O
que andamos a tratar.
Esse
rapaz de quem gostas
Deves
virar-lhe as costas
Não
lhe queiras ter amor.
Tens
o teu primo que é rico
E
eu muito contente fico
Ver-te
casar com um doutor.
Que
me importa o ser doutor
Se
eu não lhe tenho amor
A
filha assim respondeu
Tu
tens de me obedecer
Ao
que eu te vou dizer
Se
pai me queres chamar.
Eu
lhe obedecerei
Mas
nunca esquecerei
Do
homem que p’ra mim nasceu.
Bem
contra a sua vontade
Aos
pais mostrou lealdade
E
com seu primo casou.
No
dia do casamento
Com
grande acompanhamento
Ela
à igreja chegou ....
(não há mais escrito ou porque acabou assim ou porque o meu
pai se esqueceu do resto.)
-------------------------------
Amor não me engana
Que amor não me
engana
Com a sua
bravura
Se da antiga
chama
Mal vive a
amargura.
Numa mancha
negra
Numa pedra fria
Que amor não se
entrega
Na noite vazia.
Às vezes se
abraçam
Num silêncio
aflito
Quanto mais se
apertam
Mais se ouve o
seu grito.
Muito à flor
das águas
Noite marinheira
Vem p’ra minha
beira
Em novas
cantadas.
Junto de uma
hera
Nascem flores
vermelhas
Pela primavera.
Assim tu
souberas
Irmã cotovia
Dizer se me
esperas
Ao nascer do
dia.=
-------------------------
O fado da Mouraria.
Zanguei-me com
meu amor
Não o vi em
todo o dia
À noite cantei
melhor
O fado da
Mouraria.
O sopro de uma
saudade
Vinha beijar-me
hora a hora
P’ra ficar mais
à vontade
Mandei a
saudade embora.
Quando
regressou ao ninho
Ele que nem
assobia
Vinha a
assobiar baixinho
O fado da
Mouraria.=
----------------------------
LÁGRIMA
Cheia de penas,
cheia de penas me deito
E com mais
penas com mais penas me levanto
No meu peito já
me ficou no meu peito
Este meu jeito
de te querer assim tanto.
Eu desespero
tenho por meu desespero
Dentro de mim
dentro de mim o castigo
Eu não te quero
eu digo que não te quero
E à noite de
noite sonho contigo.
Se considero
que um dia hei-de morrer
No desespero
que tenho de te não ver
Estendo o meu
xaile estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu
xaile e deixo-me adormecer.
Se eu soubesse
se eu soubesse que morrendo
Tu me havias tu
me havias de chorar
Por uma lágrima
tua por uma lágrima tua
Que alegria me
deixaria matar.=
------------------------------------------
Marco do correio
Minha rua é
sossegada
Tem à beira do passeio
A coisa mais
engraçada
Que é o marco
do correio.
Marco do
correio
De totinho ao
centro
Não sabes eu
creio
O que tens lá
dentro.
Quantas raivas
e desejos
Mil respostas e
perguntas
Quantas
saudades e beijos
E muitas
lágrimas juntas.
Marco do correio
Deixa-me
espreitar
Deixa que eu
não leio
Nem vou
divulgar.
Vá lá não
fiques zangado
Deixa-me ler
por favor
A carta que
tens ao lado
A carta do meu
amor.=
--------------------------------
AI MOURARIA
Ai Mouraria
Da velha rua da
Palma
Onde eu um dia
Deixei presa a
minha alma.
Por ter passado
Mesmo ao meu
lado
Certo fadista
De cor morena
Boca pequena
E olhar
trocista.
Ai Mouraria
Da mulher do
meu encanto
Que me mentia
Mas que eu
adorava tanto.
Amor que o
vento
Como um lamento
Levou consigo
Mas que ainda
agora
A toda a hora
Mora comigo.
Ai Mouraria
Da velha rua da
Palma
Onde eu um dia
Deixei presa
A minha alma.
Por ter passado
Mesmo ao meu
lado
Certo fadista
De cor morena
Boca pequena
E olhar
trocista.
Ai Mouraria
Da mulher do
meu encanto
Que me mentia
Mas que eu
adorava tanto.
Amor que o
vento
Como um lamento
Levou consigo
Mas que ainda
agora
A toda a hora
Mora comigo.=
-----------------------------------
Vielas de Alfama
Vielas de
Alfama
Horas mortas
noite escura
Uma guitarra a
trinar
Uma mulher a
cantar
O seu fado de
amargura.
Através da
vidraça
Enegrecida e
quebrada
Aquela voz
magoada
Que entristece
quem lá passa.
Vielas de
Alfama
Ruas da Lisboa
antiga
Não há fado que
não diga
Guisas do vosso
passado.
Vielas de
Alfama
Beijadas pelo luar
Quem me dera lá
morar
Para viver
junto do fado.
Às vezes a lua
desperta
E apanha
desprotegidas
Duas bocas
muito unidas
Numa porta
entreaberta.
Então a lua
curvada
Pressente a sua
culpa
E como quem
pede desculpa
Esconde-se
envergonhada.=
-----------------------------------
Novo Fado da Severa
Ó rua do
Capelão
Juncada de
rosmaninho
Se o meu amor
vier cedinho
Eu beijo as
pedras do chão
Que ele pisar
no caminho.
Tenho o destino
marcado
Desde a hora em
que te vi
Ó meu amor
adorado
Viver abraçado
ao fado
Morrer abraçado
a ti.=
----------------------------------------
Fado das Mãos Sujas
Ter as mãos
sujas do
trabalho
É ser alguém
O que só pode
acontecer
Aos homens
sãos.
Tenho as mãos
sujas do
trabalho
Não me importa
Ainda bem
Mas ai de quem
Não tem coragem
De sujar um dia
as mãos.
Mãos sujas do
suor
Mãos negras do
trabalho
Penhor de gente
humilde
E do melhor
brasão.
São quem
desbrava a terra
Quem semeia o
pão.
Mãos que um dia
Em França
Olhando a
Pátria-Mãe
Pegaram no
cornetim
Tocando unir
fileiras.
Andar arranhado
Nas terras de
ninguém
Ao alto das
fileiras
Levantaram
austeros
As suas mãos.
Ter as mãos
sujas do
trabalho
É ser alguém o
que só
Pode acontecer
aos homens
sãos.=
------------------------------------
A Canção do Mar
Fui bailar
No meu batel
Além no mar
cruel
E o mar
bramindo
Diz que eu fui
roubar
A luz sem par
do teu olhar
tão lindo.
Vem saber
se o mar terá
razão
Vem cá ver
bailar meu
coração.
Se eu bailar
no meu batel
Não vou ao mar
cruel.
E nem lhe digo
aonde eu fui
cantar
Sorrir, bailar,
Viver, sonhar contigo.=
---------------------------------
CARTAS DE AMOR
Cartas de amor
Quem as não
tem?
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentida de
alguém.
Cartas banais
São andorinhas
Num vaivém.
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentida de alguém.=
-----------------------------
onde estão teus olhos negros?
Onde estão teus
olhos negros?
Onde estão teus
olhos negros?
Que de noite
quando me deito estão juntos.
Que de noite
quando me deito estão juntos.
Quando me
levanto estão longe.
Quando me
levanto estão longe.
Quando me
levanto estão longe.
Onde estão teus
olhos negros?=
---------------------------------------
Povo que lavas no rio
Povo que lavas
no rio
Que talhas com
teu machado
As tábuas do
teu caixão
Há-de haver
quem te defenda
Quem compre o
teu chão sagrado
Mas a tua vida
não.
Fui ter à mesa
redonda
Beber em malga
que esconda
O beijo de mão
em mão
Era o ninho que
me deste
Água pura,
fruto agreste
Mas a tua vida
não.
Aromas de urze
e de lama
Dormi com eles
na cama
Tive a mesma
condição
Povo, povo, eu
te pertenço
Deste-me
alturas de incenso
Mas a tua vida
não.=
--------------------------------------------
Entre as letras
das canções/fados que o meu pai ia escrevendo, encontrei estes poemas que não
me parece tenham sido cantados. Parecem-me mais poemas escritos pelo meu pai
para a minha mãe celebrando o seu amor. Era uma relação muito bonita e com
muito amor. Contudo parece-me recordar-me que o meu pai tenha passado à minha
mãe o bloco de apontamentos quando o escreveu para que a minha mãe o lesse, mas
tudo se passou sem alarido, sem uma palavra. No silêncio e com muita
cumplicidade que sempre existiu entre os dois. Acredito que estes poemas vêm
dos seus tempos de namoro.
No teu vidro da
janela
Eu escrevi
“quero-te bem”
Tu para mim és
uma estrela
Não sonho com
mais ninguém.
És uma estrela
diferente
daquelas que há
no céu
O sol nascente
e o poente
do que somos tu
e eu.
Temos o mesmo
olhar
as mesmas mãos
inquietas
Acertamos sem
falar
pensamentos como setas.
Há tanto na
nossa alma
que o corpo não
descobriu
Há tanto nada
se há calma
e não
me cessa o brio.=
--------------------------------------------------------------
Vamos acordar
cedinho.
Amor, anda
beber devagar
Nas fontes do
ar
Como fora
vinho.
Os dois pela
estrada fora
Como sendo
um só
sem espaço nem
hora
E sem temor
Qual réstia de
pó.
Amor, anda ver
O sol a nascer
Sobre o
horizonte.
Amor, anda ver
A água a correr
Debaixo da
ponte.
Dar-te-ei a
flor
Da mais linda
cor
Que por lá
houver.
E o sol como em
sonho
Vestirá risonho
A flor que
prefere.
Tu vais de
certeza
Do solo à
cabeça
Respirando vida
E no tronco
forte
Da árvore mais
alta
Gravado em
corte
“Amor” exalta.=
mailto:mcfpcid.portugal@outlook.com
https://medium.com/@mcfpcid.portugal
Os meus filmes
1.º – As Amendoeiras em Flor e o Corridinho Algarvio.wmv http://www.youtube.com/watch?v=NtaRei5qj9M&feature=youtu.be
2.º – O Cemitério de Lagos
3.º – Lagos e a sua Costa Dourada
4.º – Natal de 2012
Os meus
blogues
http://www.psd.pt/ - “Povo
Livre” - arquivo - PDF
Sem comentários:
Enviar um comentário