CRÓNICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO
sobre “O Infante Dom Henrique e os Descobrimentos”
CHRONICA DO PRÍNCIPE DOM JOÃO escrita por Damião de Goes e dirigida ao rei Dom João III; 1724; PDF - pp. 21 – 116.
Capítulo
VI
Em que o autor faz um breve discurso sobre as
navegações que o Infante Dom Henrique mandou fazer para descobrir a viagem para
a Índia.
O
rei Dom João I, de nome, a que por
suas façanhas chamamos de Boa Memória,
ganhou a cidade de Ceuta aos mouros
no ano de 1415 e, pouco tempo
depois, o Infante Dom Henrique, seu
filho, começou a mandar descobrir mares e terras. (O
Infante Dom Henrique regressou de Ceuta para morar e ter residência na vila de
Lagos, pois já assim tinha ficado estabelecido antes de partirem para Ceuta, já
que foi na baía de Lagos que toda a frota se reuniu e daqui partiu para Ceuta
com Dom Nuno Álvares Pereira. Ao regressarem toda a vila de Lagos foi
reestruturada e adaptada segundo o plano
do Infante Dom Henrique à Era dos Descobrimentos que se iniciou em Lagos. Vide
meu trabalho “Século XV – LagosHenriquina e pós Henriquina”.)
A
admiração por estas navegações, na altura, foi tão grande que, só por causa
disso, vieram ao reino de Portugal muitos homens letrados e curiosos.
Uns vinham com intenção de ir ver estas terras, províncias e novos costumes dos
seus habitantes ou também para ajudarem a descobrir outras terras com esperança
do proveito que daí poderiam obter. Outros vinham somente para verem as coisas
que destas novas províncias portuguesas os nossos traziam ou para escreverem o
que ouviam daqueles que destas navegações regressavam e por sua capacidade e
estilo divulgavam, na altura, pelo mundo os casos e acontecimentos
espantosos que, cada dia, encontravam na nossa nação portuguesa.
Isto
eles faziam ou de sua própria vontade ou mandados por cidades, repúblicas e
príncipes desejosos de terem a certeza de tão grandes novidades. A estes
somente movia a glória de poderem, com trabalhos alheios, satisfazer os seus
desejos particulares e depois obtinham louvores reconhecidos e os
naturais dos reinos de Portugal que alcançaram de Deus a graça para poderem
escrever coisas tão memoráveis, têm maior obrigação de, com seu estudo e
estilo, divulgarem estes feitos. Por isto me decidi fazer uma breve digressão
nos dois capítulos seguintes do que pude saber do que foi feito por meio e
engenho do Infante Dom Henrique nestes
novos descobrimentos até ao nascimento do príncipe Dom João.
Isto me pareceu adequado fazer nesta crónica,
pois é de príncipe destes reinos de Portugal que depois foi rei se encontrar em
resumo aquilo que, muito por extenso, deveria ter sido escrito na terceira
parte da crónica do rei Dom João I,
depois da tomada de Ceuta até ao seu falecimento que foram cerca de dezoito
anos. Destes dezoito anos não vi coisa que Fernão
Lopes (que foi cronista e guarda da Torre
do Tombo e compôs de novo esta crónica do rei Dom João) escrevesse e a
terceira parte eu ousaria afirmar que ele fez, mas como este trabalho se lhe
roubou, não me atreveria a dizer por honra dos que depois dele escreveram e já
que Gomes Eanes de Zurara que lhe
sucedeu no ofício de cronista e guarda mor da Torre do Tombo nos dois livros
que escreveu sobre os feitos do conde de Vila Real, Dom Pedro de Menezes,
primeiro capitão de Ceuta (que acabou no ano de 1463, trinta anos depois do
falecimento do rei Dom João I) trato brevemente na segunda parte destes dois
livros, no capítulo 26, acerca do ano de 1430, algumas coisas que tocam os
assuntos do reino de Portugal.
Contudo
nestas novas navegações que já,
nesta altura, se tinham começado não fala nada, ainda menos na crónica do conde
de Viana, Dom Duarte, capitão de Alcácer que ele escreveu depois da crónica do
conde Dom Pedro de Menezes, seu pai; mas pode ser que o fizesse na história
da Guiné que ele diz que compôs e de que não há notícia e se não o fez
nesta história nem na história dos condes, creio que seria pelo Fernão Lopes o
ter feito na História Geral do Reino de
Portugal que muitas vezes Gomes Eanes de Zurara refere nestas crónicas dos
condes Dom Pedro e Dom Duarte. Fernão Lopes continuou esta História Geral até à
morte do Infante Dom Pedro e, desta altura por diante, se pode crer que Gome
Eanes de Zurara a tenha continuado porque viveu muitos anos depois do rei Dom
Afonso V ter tomado a vila de Alcácer aos mouros, onde o mesmo rei o mandou
para lá para escrever os feitos que este conde de Viana, Dom Duarte de Menezes
e os da sua companhia faziam em África e lhe escrevia cartas por sua própria
mão assaz bem escritas e copiosas por serem de rei, favor muito notável e para
os que têm ofício de escrever tomarem cuidado de o fazerem como a feitos de tão
humanos e esclarecidos reis convém.
Já
que o mesmo Gomes Eanes de Zurara, querendo dar a entender que compôs esta
terceira parte da Crónica do Rei Dom
João I ou a Crónica do Rei Dom
Duarte, seu filho, dizendo no penúltimo capítulo da História de Ceuta que poria neste livro (qualquer deles que fosse)
muitas coisas acerca das grandes virtudes deste rei se não tivesse escrito as
suas honradas exéquias com todas as outras cerimónias que pertencem à sua
sepultura (cuja história acabou de escrever em Silves, no Algarve, no ano de
1440, já na época do rei Dom Afonso V, já passados treze anos desse o início do
seu reinado). É importante que se diga que ele não compôs a terceira
parte da Crónica do dito rei Dom João nem a do rei Dom Duarte, mas quanto às
exéquias ele, de facto, escreveu-as porque o capitulo V da Crónica do rei Dom Duarte é seu e
também todos as exposições que na dita crónica estão escritas sobre a ida a
Tânger o que se conhece bem e vê no estilo e ordem costumada do mesmo Gomes Eanes de Zurara, já que algumas
palavras e termos antigos que ele usava no que escrevia com explicações
prolixas e cheias de metáforas ou
figuras de estilo que, no estilo histórico não têm lugar, estejam mudadas para
um modo mais moderno de falar.
Assim
que por faltarem os acontecimentos destas novas
navegações, me pareceu necessário prosseguir na minha intenção e declarar
nesta história aquilo que convinha ser escrito sobre as tais navegações
passadas - porque nas crónicas do rei Dom João e do rei Dom Duarte, seu filho,
- nenhuma coisa se trata no que toca a estes descobrimentos e na Crónica do Rei Dom Afonso V, seu neto,
num só capítulo, onde se escreve o falecimento do Infante Dom Henrique conta o
cronista brevemente algumas coisas das que se passaram até então. Esta
negligência e notável descuido me constrange com razão a escrever tudo o que
for necessário a feitos tão notáveis e tão dignos de serem celebrados.= p. 26
Capítulo
VII
Das coisas que moveram o
Infante Dom Henrique a querer descobrir terras e mares pela costa de África até
chegar à Índia e da certeza que teve para o mandar fazer.
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As Primeiras Caravelas do Infante Dom Henrique |
Quatro
anos
depois do rei Dom João I ter tomado Ceuta aos mouros, eles por ordem do rei
de Granada, chamado o Esquerdo, a vieram cercar no mês de Agosto com grande
poder. A este cerco, o rei Dom João I mandou muita e muito nobre gente do seu
reino e por capitão foi o Infante Dom Henrique, seu filho.
Além
dele ser um cavaleiro muito corajoso também era muito dado ao estudo das letras
principalmente da Astronomia e Cosmografia e para melhor exercitar tão virtuosas artes, depois que
regressou do cerco de Ceuta, escolheu para sua morada e residência uma parte do
Algarve, (a vila de Lagos e para
lugar de estudo prático, o promontório no cabo de São Vicente), chamado pelos antigos históricos Sacrum Promontorium que no nosso português vulgar quer dizer Cabo Sagrado donde derivou o corrupto
nome de Sagres, que para mais verdadeira imitação da língua latina, donde a
nossa língua traz a sua origem, se deve chamar, mudando o G em C, Sacres. (Acontece
que a toponímia tem muito mais a ver com a linguagem oral do que com a escrita
principalmente naquele tempo em que as populações eram analfabetas e as
palavras eram transmitidas oralmente como lhes soava e certamente soava-lhes
muito mais a Sagres do que a Sacres). Neste
sítio de Sagres fundou o Infante Dom Henrique (as instalações para as
aulas práticas sobre Astronomia e Cosmografia da sua Escola de Estudos Superiores com aulas teóricas nas instalações de
Lagos, na então rua Direita e prédios de que era proprietário Dom Nuno Álvares
Pereira, onde era também a residência do Infante Dom Henrique e com professores
catedráticos da Universidade de Lisboa com quem o Infante Dom Henrique
estabeleceu protocolo. As cozinhas nas instalações do promontório eram
essenciais, pois o céu estuda-se principalmente à noite e é necessário muito
tempo. Deslocavam-se em cavalos de Lagos para o promontório e vice-versa.) a que chamou Terça Nabal e dali
determinou mandar navios ao longo da costa de África com intenção de chegar ao
fim de seus pensamentos que era descobrir destas partes ocidentais a
navegação para a Índia Oriental que sabia por certo que fora já em outros
tempos achada. Foi com esta certeza que assim alcançou com o trabalho do seu
estudo que o fez empreender tão grande empresa e não por inspiração divina como
algumas pessoas dizem e não sei com que motivos o afirmam porque se fora
inspiração divina por ventura que sem tantos trabalhos como teve em sua vida
alcançara o Infante o que tanto desejava. Destes trabalhos estas navegações
nunca careceram tanto em vida do Infante como depois até de todo serem
descobertas.
Assim
é mais de crer que a certeza deste empreendimento alcançou o Infante Dom
Henrique dos verdadeiros autores que continuamente estudava, acreditando no que
escreviam como coisas escritas por homens e assim acreditava e duvidava como se
deve fazer a todas as coisas que dos homens e de seus juízos procedem, nas
quais com certeza está sempre a dúvida.
Com
esta certeza, o Infante Dom Henrique, a partir da vila de Lagos, começou a
mandar descobrir com naus armadas à sua custa porque sabia, do que tinha lido,
como depois do cerco de Troia, segundo conta Aristonico, que Menelaio,
saindo pela boca do Estreito de Gibraltar navegara tanto pelo mar oceano
até chegar ao mar Vermelho que,
segundo alguns cosmógrafos antigos dizem, contém em si os mares Arábico e
Pérsico com toda a costa que entre ambos há e a que passa adiante do mar
Pérsico até chegar à Índia. Por este mar Vermelho, Menelaio fez o seu caminho
até chegar à Índia e também o Infante Dom Henrique sabia que Enone, capitão dos cartaginenses,
navegara tanto pela costa de África até chegar quase abaixo da linha
equinocial. Do discurso que deixou escrito do seu caminho e sinais que deu do
que vira se mostra claramente que passou além da serra a que agora chamam Leoa
e também tinha por certo o que Heródoto,
gravíssimo autor a que Cícero chama “Pai da História” escreveu da navegação que
Necto, rei do Egipto, mandou fazer
por certos fenícios, homens experimentados nas coisas do mar que, partindo do
mar Vermelho, navegaram tanto até chegarem ao mar austral e daí vieram ter ao
Estreito de Gibraltar, donde tomaram seu caminho para o Egipto, onde chegaram
passados já dois anos do tempo que havia que partiram do Mar Vermelho.
Além
deste grande testemunho, o Infante Dom
Henrique tinha outro do mesmo autor de como, por mandado do rei Xerxes navegara Sataspes do Mar Mediterrâneo até pelo
oceano chegar ao promontório ou cabo de
África e que, irritado da prolixidade do caminho e falta de mantimentos,
regressara ao Egipto. Nem menos ficou por ler ao Infante em Estrabo de como no mar da Arábia,
estando ali César, filho de Augusto, se acharam pedaços de naus espanholas que,
com tormenta, o mar lançara à costa nem o que o mesmo Estrabo, Plínio, Cornélio
Nepos e Pompónio Mela escrevem de Eudoxo
acerca destas navegações.
Com o oráculo destes testemunhos e de outros
mais que o Infante Dom Henrique teria sabido por muitas informações que cada
dia tomava de mouros alarves e azenegues, práticos nas coisas de África,
determinou mandar descobrir de novo estas navegações de que a memória era já
entre os homens perdida.= p. 30
Capítulo
VIII
Em que sumariamente se
trata das navegações que, por mandado do Infante Dom Henrique se fizeram e
terras que se descobriram até ao nascimento do príncipe Dom João.
Regressado
o Infante Dom Henrique do cerco de Ceuta, logo no mesmo ano, que foi 1419,
mandou, a partir da vila de Lagos, por duas vezes navios a descobrir que
passaram 60 léguas além do cabo Não
que era o extremo e o mais longe que então se navegava da Europa pela costa de
África.
Regressados
estes navios, João Gonçalves, Zarco
de alcunha e Tristão Vaz Teixeira pela vontade que viam no
Infante Dom Henrique que eram da sua Casa, Casa Henriquina sediada na vila de
Lagos, pediram-lhe que fosse sua mercê servir-se deles em tal empreendimento.
O
Infante Dom Henrique com prazer agradeceu-lhes muito, mandando logo armar um
navio a que deu a capitania a João Gonçalves Zarco por ser mais velho
do que Tristão Vaz Teixeira. Estes, com um temporal que apanharam, sem chegarem
à costa de África navegaram tanto ao pego que, acabada a tormenta, se
encontraram à vista de uma ilha pequena e deserta que logo foram explorar e,
pela mercê que Deus lhes fizera, além de os salvar de tamanha tempestade, em
lhes deparar tal ilha lhe puseram o nome de Porto Santo como se chama
agora e com esta notícia regressaram ao Infante Dom Henrique, a quem logo Bartolomeu Perestrelo, da sua Casa,
pediu a sua capitania, desta ilha,
que em companhia destes João Gonçalves e Tristão Vaz a foi povoar por ser ilha
de bons ares e boas águas de fontes. Pouco tempo depois, andando Bartolomeu
Perestrelo no reino, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira acordaram de,
em barcos, irem procurar uma sombra de nuvens que muitas vezes viam não muito
longe daquela ilha onde estavam. Partiram em tão boa hora que, com pouca
dificuldade, lhes quis Deus deparar outra ilha também deserta muito maior do
que a ilha do Porto Santo, à qual, por ser cheia de bosques, lhe puseram o nome
de Madeira.
Com
este tão próspero sucesso, vieram à vila de Lagos encontrar-se com o Infante Dom Henrique, a quem aprouve em
galardão de tão boas novas lhes fazer a ambos mercê dela, dando a capitania do
lado do Funchal a João Gonçalves Zarco e a do lado de Machico a Tristão Vaz
Teixeira. Estes por si e com suas valias e bens começaram a povoar esta nobre e
rica ilha da Madeira no ano de 1420.
Aos seus moradores e aos moradores de Porto Santo e de outras ilhas deu o rei
Dom Afonso V privilégio por autoridade do Infante Dom Pedro, seu tutor e
governador, concedido no ano de 1444, para de tudo o que delas trouxessem a
estes reinos não pagassem dízima nem portagem.
Do
ano de 1420 até ao ano de 1433, ano em que faleceu seu pai, o rei Dom João I,
não achei coisa que toque a estas navegações. (Certamente
porque o seu pai ficou doente, estava-se a fazer o povoamento da Madeira e
Porto Santo e o Infante Dom Henrique queria acompanhar o seu pai nestes últimos
tempos da sua vida e foi viver para Lisboa, junto de seu pai. Certamente tinham
mutos motivos de conversa sobre os descobrimentos. Após o falecimento de seu pai, o rei Dom João I, o
Infante Dom Henrique regressou à vila de Lagos e logo foi armado um navio e
nesse mesmo ano) 1433, foi o ano em que Gil Eanes, natural de Lagos,
Algarve, da Casa do Infante Dom Henrique, descobriu o cabo Bojador e logo no ano seguinte, 1434, o Infante Dom Henrique mandou Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro, a descobrir mais adiante e
em sua capitania com o mesmo Gil Eanes passaram além deste cabo Bojador
até onde agora se chama a Angra dos
Ruivos, nome que lhe puseram pela grande multidão deles que ali encontraram
e deste lugar, por já lhes faltarem mantimentos regressaram ao reino de
Portugal sem encontrarem gente com quem pudessem comunicar, salvo que, naquele
lugar de Angra dos Ruivos, encontraram rasto de camelos e caminhos trilhados
que davam sinal de seguida de cáfilas ou recovas.
Logo
no ano seguinte, 1435, o Infante Dom Henrique voltou a mandá-los
descobrir terras e passaram desta Angra
dos Ruivos a uma enseada, onde mandaram a terra dois rapazes da Casa do
Infante, um de nome Diogo Lopes de
Almeida e o outro de nome Heitor
Homem para, em dois cavalos, irem explorar a terra. Eles encontraram 19
homens baços com quem pelejaram, mas os nativos afastaram-nos muito bem com
muitas azagaias e dardos de arremesso, ferindo um deles num pé e assim se
recolheram à praia e dali ao navio e com estas novas regressaram ao reino de
Portugal, dando a esta terra o nome de Angra
dos Cavaleiros.
Deste
ano de 1435 até 1440, tanto pelo falecimento do rei Dom Duarte seu
irmão, que foi no ano de 1438, como
pelo assunto do cativeiro do Infante Dom Fernando e tutorias do rei Dom Afonso
V, o Infante suspendeu mandar mais navios a esta conquista o que também teve
por causa ter nova certa que se achava gente armada e destra em peleja. Assim
para este empreendimento se requeriam mais navios e mais gente. Segundo se pode
crer, o Infante Dom Henrique decidiu poupar estes cinco anos por dantes ter
feito muitas despesas nestas navegações e para, dali por diante, prosseguir
mais à sua vontade nos seus elevados e reais empreendimentos.
Logo
no ano de 1441, o Infante mandou Antão Gonçalves e Nuno Tristão, da sua Casa, em dois navios. Nuno Tristão descobriu
até ao Cabo Branco, nome que ele deu
a esta terra por ser alva e arenosa. Antão Gonçalves descobriu terras até ao
Cabo a que deu o nome de Cabo Cavaleiro
porque neste lugar, pelejando como cavaleiro, aprisionou alguns negros que
foram os primeiros que vieram (à vila de Lagos), ao reino de Portugal.
Destes
lugares, estes dois capitães regressaram, cada qual com sua rota. O Infante Dom
Henrique ficou muito alegre com a sua vinda por causa da presa que Antão Gonçalves trazia consigo por já
começar a recolher fruto de seus trabalhos e despesas e ver aquelas almas
dantes perdidas, ganhas à fé do nosso Salvador Jesus Cristo que receberam logo
o baptismo.
Sabido
como estes dois capitães descobriram terra, onde encontraram gente com que se
podia comunicar ou por via da paz ou por via da guerra, o Infante Dom Henrique,
que dantes com vários juízos de diversas pessoas era por muitos repreendido por
fazer tamanhos e tão elevadas despesas sem ter recolhido proveito algum que se
igualasse a tão grandes custos, começou desde então a ser por todos muito
louvado, dizendo-se que de um tal príncipe e tão prudente se não podia esperar
coisa senão de que os reinos houvessem de receber proveito.
Esta
notícia foi tão divulgada que logo alguns aventureiros portugueses, a maior
parte do Algarve, naturais de Tavira,
se ofereceram para, às suas custas, o irem servir e buscar suas aventuras e da
boa fortuna que Deus lhes desse lhe pagarem seus direitos como senhor a quem aquelas conquistas
pertenciam.
Passado
um ano sobre o descobrimento que fizeram Antão Gonçalves e Nuno Tristão, em 1442, o Infante Dom Henrique acabou de
armar seis caravelas em Lagos que tiveram por capitão um
cavaleiro da Casa do Infante Dom Henrique de nome Lançarote de Freitas. O capitão Lançarote de Freitas, seguindo sua
viagem, chegou com toda a frota na véspera da festa do Corpo de Deus do
ano de 1443 à Ilha das Garças onde tomaram muitas delas para seu refresco e daí
foram ter à Ilha de Nar, donde e de
outras vizinhas trouxeram à vila de Lagos uma grande presa de negros.
No
ano seguinte, 1444, o Infante Dom
Henrique mandou por capitão Vicente Dias de
Lagos a descobrir e na sua companhia foi um fidalgo veneziano de nome Luís de Cadamosto, muito curioso por
ver o mundo; Vicente de Lagos navegou até ao Rio de Gambra.
Neste
mesmo ano, 1444, Gonçalo de Cintra, capitão de
uma nau do Infante foi ter às Ilhas de
Arguim onde o mataram e mais alguns da sua companhia. Luís de Cadamosto
escreve num Itinerário que fez que
já neste tempo o Infante Dom Henrique mandava fazer o castelo de Arguim
e que, seguindo sua viagem, encontraram no dito lugar muitos oficiais que
trabalhavam naquela construção. Isto é bem ao contrário do que dizem algumas
pessoas que sobre estas navegações escreveram.
(Damião de Goes esquece que os navios partiam da vila de Lagos, onde residia o
Infante Dom Henrique e a sua Casa (Henriquina) e, após o falecimento do rei Dom
João I, também partiam de Lisboa e havia uma certa rivalidade entre Lagos e
Lisboa e Lisboa estava com dificuldade em se afirmar, sendo a capital.) Afirmavam que, no ano de 1461, alguns meses
após o falecimento do Infante Dom Henrique, o rei Dom Afonso V mandou fazer
este castelo por Soeiro Mendes, fidalgo
da Casa deste rei, morador em Évora, partindo de Lisboa a descobrir terras, mas parece que seria mais acabá-lo e não
começar de novo, pois o Infante Dom Henrique foi o autor desta obra.
Luís
de Cadamosto afirma que, naquela altura, os nossos tinham navegado até ao rio do Senegal, a que os da terra
chamam Sonedech e que havia já um
ano que Cabo Verde estava
descoberto, 1460. Cabo Verde foi
primeiramente descoberto no ano de 1445,
por Dinis Fernandes, escudeiro do
rei Dom João I, partindo de Lisboa e
que nesta paragem tomou numa almádia alguns negros que consigo trouxe e que
foram os primeiros que vieram a Lisboa, Portugal.
Neste
ano de 1444, Vicente de Lagos com
quem ia Luís de Cadamosto, partiram da vila de Lagos e navegando para o rio de
Gambra, encontrou um fidalgo genovês de nome Antonieto de Nolle que, com licença do Infante Dom Henrique, ia
também a descobrir e ambos os navios juntos chegaram ao rio de Gambra e dali sem passarem adiante, regressaram à vila de
Lagos, ao reino de Portugal.
No
ano seguinte, 1445, estes mesmos com
licença do Infante Dom Henrique
voltaram a fazer a viagem numa nau que o Infante Dom Henrique lhes
mandou armar em Lagos, Algarve e
desta vez estes fidalgos, Vicente Dias de
Lagos, Luís de Cadamosto e Antonieto de Nolle, descobriram as Ilhas de Cabo Verde, dezasseis dias
após a partida de Lagos e puseram à primeira que viram o nome de Boavista e à outra Santiago e São Filipe por chegarem a ela no primeiro dia de Maio, dia dedicado a estes santos. À terceira a que
foram puseram o nome de Maio para
lembrar o mês e o dia em que as descobriram (03 de Maio). O rei Dom Afonso V fez doação das Ilhas de
Cabo Verde e das Terceiras ao Infante Dom Fernando, seu irmão. Destas ilhas,
eles foram ter ao rio Rá a que nós chamamos de Rio de Caramansa nome
que lhe deram porque o senhor daquela terra se chamava assim. Daí navegaram até
Cabo Vermelho e daí regressaram à
vila de Lagos, ao reino de Portugal. Estas ilhas foram doadas pelo rei Dom João
II, no ano de 1489, a Dom Manuel, duque de Beja e de Viseu
que depois foi rei muito próspero e
feliz no reino de Portugal e chamam-se por ordem, a primeira Santiago e as
outras Maio, São Cristóvão do Sal, Ilha Brava, São Nicolau, São Vicente, Rasa
Branca, Santa Luzia e Santo António.
Voltando
às nossas navegações, neste mesmo ano de 1445,
Antão Gonçalves descobriu, num navio
do Infante Dom Henrique, um rio a
que chamam do Ouro. Também em 1445, partiram 14 caravelas
juntas a descobrir. O Infante Dom Henrique deu a capitania desta armada ao
capitão Lançarote de Freitas, da
vila de Lagos que com toda a sua companhia passou vários casos e fortunas antes
de chegar a Cabo Verde e por isso
algumas das caravelas regressaram a Lagos
sem poderem seguir viagem e ele com duas caravelas só alcançou a Ilha de Tider onde tomou 59 negros e
regressou à vila de Lagos.
No
ano de 1446, Nuno Tristão chegou até ao Rio
Grande que é 60 léguas além de Cabo Verde e dali passou a 20 léguas mais
adiante e entrou noutro rio aonde vieram atacá-lo os da terra em 13 almádias
com muitos dardos e flechas com veneno com que o mataram e mais dezoito
homens da sua companhia. Os que ficaram no navio regressaram à vila de Lagos e
por respeito àquele infortúnio se chama àquele rio o Rio de Tristão.
Também
no ano de 1446, Álvaro Fernandes, sobrinho do capitão do Funchal, descobriu o Cabo dos Mastos e passou cem léguas
além de Cabo Verde. Nesta paragem houve em terra vitória sobre o senhor dela
que o matou com suas próprias mãos e desta paragem foi ter à foz do Rio de Tabite que fica além do rio de
Tristão 22 léguas e dali regressou à vila de Lagos.
Deste
tempo ao ano de 1455, ano em que o rei Dom João nasceu, não encontrei nada
escrito nem por memória de qualidade para a mencionar, salvo que já em 1455, estavam descobertas as ilhas dos Açores; o que se pode afirmar
por testemunho que disso dá um privilégio que o rei Dom Afonso V deu aos
moradores da ilha de São Miguel
porque lhes concedeu que não pagassem dízima de tudo o que trouxessem ao reino
de Portugal. Era senhor desta ilha o
Infante Dom Pedro irmão do Infante Dom Henrique e o privilégio foi
concedido no ano de 1447, dois anos
antes da sua morte.
Assim
por todas as mais coisas que até este tempo passaram nestas navegações serem de
pouca substância como também o são algumas que aqui pus mais por representarem
a antigüidade delas do que por ornamento que possam trazer à nossa história,
fica este assunto concluído.= p.
41
Capítulo
IX
Em que o autor trata de
algumas particularidades das ilhas dos Açores e de uma antigualha que nelas se
achou.
Constrange
tanto o testemunho das coisas antigas aos escritores que por delas o fazerem se
não o fazem muito a propósito do que tratam, são forçados a saírem um tanto
fora da ordem do que escrevem para assim iluminarem o descuido e esquecimento
em que a antigüidade dos tempos as pôs. E porque eu a esta lei e obrigação tão
honesta não posso fugir, é necessário escrever algumas particularidades das
ilhas dos Açores, já que foram descobertas antes do nascimento do rei Dom João,
para descobrir uma antigualha bastante antiga que se achou numa destas ilhas
nos nossos dias.
Estas
ilhas chamam-se dos Açores pela
muita criação de açores que havia nelas quando foram descobertas e ainda há,
mas não tantos como costumava o que causam mal às povoações que nelas se foram
formando e por isso os açores são mais alvos para abate do que os da Irlanda,
mas não são melhores porque os açores da Irlanda são mais ligeiros e de muito
melhor ralé. Estas ilhas situam-se a leste – oeste da rocha de Cintra e estão perto da nona ilha, a saber São Miguel que foi a primeira que se
encontrou e após esta, foi descoberta a ilha de Santa Maria e depois a
ilha Terceira que se chama de Jesus
Cristo e logo São Jorge, Graciosa, Faial, Pico, Flores e Corvo. Estas ilhas são muito temperadas de inverno e verão e muito
viçosas por fontes e ribeiras de muito boas águas e frutas em especial de
espinho de toda a sorte. São tão abundantes de pão que muitas vezes os lavradores recolhem de um alqueire
de sementes 20 e 30 alqueires que se mandam para o continente e outras
partes. Faz-se nelas muito pastel que se leva para a Flandres, Inglaterra e
outras províncias. São muito abastadas de carne, peixe e criação de gado. Há
nelas muitas matas de cedros, loureiros e faias e um pau vermelho a que chamam
“sanguinho” que se escolhe muito para obras marchetadas.
Destas
ilhas a que mais está ao norte é a ilha do Corvo
que tem uma légua de terra. Os mareantes chamam-lhe a ilha do Marco porque ela tem uma serra alta se demarca quando vêm
para qualquer das outras ilhas. No cume desta serra, da parte do noroeste,
encontrou-se uma estátua de pedra
posta sobre uma laje que era um homem em cima de um cavalo em osso e o homem
tinha uma capa como bedém, sem barrete com uma mão na coma do cavalo e o braço
direito estendido e os dedos da mão encolhidos, excepto o segundo dedo a que os
latinos chamam índex com que apontava contra o ponente. Esta imagem que saía
toda maciça da mesma laje mandou o rei Dom Manuel tirar pelo natural por um
homem da sua Casa de profissão desenhador por nome Duarte de Armas e depois que viu o desenho, mandou um homem
engenhoso, natural da cidade do Porto que andara muito em França e Itália que
fosse a esta ilha para com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha. Este,
quando regressou da ilha, disse ao rei que a encontrara desfeita devido a uma
tempestade que acontecera no inverno anterior.
A
verdade é que a quebraram por mau manuseamento e trouxeram pedaços dela: a
cabeça do homem e o braço direito com a mão e uma perna, a cabeça do cavalo e
uma mão que estava dobrada e levantada e um pedaço de uma perna. Tudo esteve no
guarda-roupa do rei alguns dias, mas o que se fez depois com estas coisas ou
onde se puseram, eu não o pude saber.
Esta
ilha do Corvo e a ilha de Santo Antão pertenciam a João da Fonseca, escrivão dos bens do
rei Dom Manuel e dele as herdou seu filho, Pero
da Fonseca, escrivão da chancelaria do mesmo rei, Dom Manuel e de Dom João
III, seu filho. No ano de 1529, Pero
da Fonseca foi vê-las e soube pelos moradores que na rocha abaixo daquela onde
estivera a estátua, estavam entalhadas na mesma pedra da rocha umas letras e,
por o lugar ser perigoso para se poder ir aonde o letreiro está, fez descer
alguns homens por cordas bem atadas e estes imprimiram as letras que ainda a
antigüidade não tinha feito desaparecer, em cera que para isso levaram. Contudo
as que trouxeram impressas na cera já estavam muito gastas e quase sem forma
assim que ou por não conhecerem ou por na companhia não haver pessoa que
conhecesse para lá da língua latina e a este facto nenhum dos presentes soube
dar razão nem do que as letras diziam nem ainda puderam conhecer que letras
fossem.
Espanta-nos
tanto esta antiqüissima antigualha por se encontrar no lugar em que se achou
que se pode com razão dizer o que diz Salomão fizeram o que nós agora fazemos”.
Se se acredita nas opiniões de alguns “não haver coisa que já não tivesse sido
criada e que houve outros que já filósofos ou se aos históricos gentios, nesta
parte, se deve dar algum crédito facilmente se poderia cair em muitos erros se
deles não nos desenganara a Sagrada Escritura, dos quais se não pode escusar
Pompónio Mela, gravíssimo escritor latino no seu primeiro livro, falando da
antigüidade dos egípcios, onde escreve que tinham histórias certas de mais de
treze mil anos e o mesmo faz Heródoto no segundo livro da sua história que
escreveu em grego muito antes de Pompónio e ambos dizem que depois que os
egípcios começaram a ter nome e a ser conhecidos que o percurso do céu se
mudara quatro vezes, pondo-se o sol duas vezes no lugar onde agora nasce.
Estrabo, que há bem mil e quinhentos anos escreveu em língua grega, não se pode
escusar de outro tal erro como foi dizer no Terceiro Livro da sua Geografia
que os turdetanos ou tordolos, que é toda a terra da Andaluzia, Algarve e
Portugal, começando pelos montes de Gibraltar até ao rio Lima, que foi sempre a
gente de Espanha que mais soube e mais usou leis e continuou estudos e que
estes tinham histórias certíssimas de há seis mil anos.
Não
deixarei de escrever acerca desta antigualha a opinião que disso tenho. Esta
gente que veio ter a esta ilha do Corvo e nela deixou esta memória poderia ser
da Noruega, Gótia, Suécia ou Islândia porque nos tempos passados e muito antes
que os habitantes destas províncias fossem cristãos, havia entre eles muitos
corsários e tão poderosos que aos males que faziam pelo mar, oceano e da
Alemanha se podia muito dificilmente resistir do que dão testemunho Saxo
Gramático, antigo escritor e Joanes Magnus Gotos, arcebispo de Uppsala no reino
da Suécia, homem com quem naquelas partes eu tive estreita amizade e depois em
Itália de cuja vida e infortúnios trato na deploração que em língua latina
compus da gente e província lapiana, da Lapónia. Estes escritores ambos nas crónicas que
escreveram sobre as coisas aquilonares tratam assaz bem destes corsários e o
maior argumento que se pode ter desta opinião é que todas estas nações
costumavam fazer entalhar e esculpir todos os seus feitos, acontecimentos e
façanhas em rochas de pedra viva para maior lembrança e perpetuidade dos casos
que lhes aconteciam como naquelas províncias todas, hoje em dia, se vê e acham
em muitas partes imagens delas e histórias entalhadas, abertas, esculpidas e
escritas em rochedos e outras pedras altas e de grandeza maravilhosa.
E
esta antigüidade desta ilha do Corvo e do toque destas outras, pode-se
acreditar que algum destes corsários tivesse vindo ter desgarrado da fortuna do
mar a estas ilhas e por as encontrar desertas e desabitadas quisesse deixar de
si aquela memória. Isto facilmente se tiraria a limpo se a esta ilha fosse ter
alguma pessoa ou a mandassem que soubesse as línguas destas terras o que se
faria com pouca dificuldade se os príncipes e senhores que possuem as
províncias fossem tão curiosos em saber com o são de haver e
lograr os bens e rendas que delas lhes resultam.= p.47
Capítulo
X
Do apercebimento que o
rei Dom Afonso V fez para passar em África a tomar a vila de Alcácer e perseguir
os mouros.
Foi
o Papa Calisto III, homem zeloso do
bem e desejoso de, por seu intermédio, se restituir a Terra Santa à fé em Jesus
Cristo, sobre este assunto mandou legados a todos os reis cristãos,
concedendo-lhes para isso Cruzada.
Entre estes legados veio ao rei Dom Afonso V o bispo de Silves, homem de muita
autoridade na Corte de Roma, de cujas mãos, em nome do Papa, o rei aceitou a
Cruzada, desejoso de nisso servir a Deus.
Dom Afonso V logo fez grandes preparações de naus
e navios com doze mil homens portugueses de guerra além da marinhagem e gente
de serviço para ele em pessoa também ir neste empreendimento. E porque ou por
inconvenientes do tempo ou pela pouca vontade que os outros reis cristãos para
isso tiveram este assunto não se concretizou. Como Dom Afonso V era
naturalmente inclinado para a guerra contra os mouros determinou com esta
armada e companhia dobrada passar a África e tomar alguma vila aos infiéis.
Tendo conselho sobre isso, determinou ir sobre Alcácer Ceguer e, porque a armada era grande e naquele tempo Lisboa
tinha uma epidemia de peste, o rei Dom Afonso V embarcou em Setúbal e o Infante Dom Henrique embarcou em Lagos, Algarve e o marquês
de Valença foi fazer na cidade do Porto
o mais desta armada.
Quando
a armada do rei estava pronta partiu de Setúbal
a um sábado, último dia de Setembro de
1458, levando consigo o Infante Dom
Fernando, seu irmão e Dom Pedro,
filho do Infante Dom Pedro, que o veio servir com gente muito nobre e bem
preparada para os feitos de guerra e logo na terça-feira seguinte, dia 03 de Outubro, dobraram o Cabo de São Vicente e vieram ter a Sagres, onde o Infante Dom Henrique o
estava esperando numa caravela e dali o rei e todos foram para Lagos, onde o rei esteve oito dias até que o marquês de Valença
veio com a sua armada do Porto. Assim que ele chegou e outra fustalha que
faltava, o rei embarcou em Lagos,
numa quinta-feira, dia 17 de Outubro,
levando consigo 26 mil homens
portugueses de peleja e duzentas e
oitenta naus, galés e outros navios de carga e serviço e com tempo feito
partiu, seguindo sua viagem para vir concretizar os seus elevados pensamentos,
intenção boa e católica.
Neste
ano de 1458, no dia dois de Maio nasceu Dona Leonor, filha do Infante Dom Fernando,
irmão de Dom Afonso V e da Infanta Dona
Beatriz, que depois foi rainha de Portugal.=
p. 50
Capítulo
XI
Da antigüidade e sítio da vila de Alcácer e do conselho que
o rei teve antes de a cercar.
Mansor, rei e pontífice de Marrocos como o
contam os historiadores árabes, foi rei muito guerreiro e quase todos os anos
passava de África a Granada, Espanha para daí com seus exércitos fazer entradas nas terras dos cristãos
e porque no caminho de Ceuta, onde costumava vir embarcar havia muitos
estreitos dificultosos e ásperos por onde o seu exército e gente não podiam
passar sem terem muito trabalho, determinou edificar de novo a vila de Alcácer Ceguer a que os mouros chamam
Casar Ezzaghir que quer dizer passo pequeno e a causa de a edificar
naquele sítio foi por ter lugar bem assentado a três léguas de Espanha e a
melhor passagem que há no Estreito mais perto e com bom porto próprio para ali
formar as suas armadas e embarcar a sua gente com muito menos trabalho do que
em Ceuta. A vila de Alcácer, pelo bom sítio que tinha, logo se povoou de gente
do mar, mercadores e outra gente de que a maior parte se sustentava de tecer e
fazer panos de linho muito bons e por sempre haver nela gente do guerra,
principalmente nos negócios de mar, nos quais eram muito experientes e
acostumados a fazer mal e dano aos cristãos da Espanha e a outros que navegavam
para aquele estreito. O rei Dom Afonso V decidiu ir atacá-la mais por aquele
motivo do que nenhum outro.
No
sábado seguinte da quinta-feira da partida de Lagos, se encontrou antemanhã com
a sua armada diante da barra de Tânger
e porque para ir para Alcácer o tempo não servia por ser escasso, esteve ali
esperando aquele dia por alguns navios que faltavam da sua frota e no domingo
seguinte, como os pensamentos do rei eram elevados vista a grandeza e nobreza
da cidade de Tânger, decidiu combatê-la se nos Infantes e nos do seu Conselho
achasse a mesma vontade. Reuniram-se logo na nau real e Dom Afonso V falou-lhes desta maneira:
-
Não vos pareça mudança de conselho o motivo que vos fiz aqui vir, senão o
desejo de adquirir mais honra e glória para vós e para mim. Por isso vos quero
descobrir a minha intenção que é, se assim vos parecer, de atacar esta cidade
de Tânger porque, além do ganho que nisso fazemos, tomarmos vingança do dano e
desbarato que os nossos nela receberam como muito bem todos sabeis. Por esta
vingança ser necessária à nossa honra e eu ter por muito certo que os moradores
de Alcácer assim que souberem que Tânger está por nós tomada, de sua vontade
nos virão apresentar a vila de Alcácer. Por isto, decidi dar-vos disto conta.
Contudo porque não sei se me cega o desejo de tamanha vitória, para confirmar a
minha intenção, vos peço e rogo que sem nenhum pejo, saiba de vós as vossas
razões porque a vossos pareceres e conselho me submeterei de todo o meu juízo, como
a pessoas em quem tanto confio e devo por boas razões confiar.
Acabando
o rei a sua fala, o Infante Dom Henrique
como mais velho ( com 64 anos, nasceu a 04/03/1394) e em quem, mais do que nos
outros, cabia a resposta como seu tio e muito experiente nas coisas da guerra e
especialista nos casos de Tânger em que estivera presente lhe disse:
-
Senhor, vossas razões dão sinal do vosso invencível ânimo e eu não duvido que
onde Vós estais possa haver coisa difícil para se poder combater e ganhar. Da
fortaleza de Tânger e dificuldades que há em lá quererdes entrar, não falo nem
trato nada, senão em Vos lembrar que, já que sois rei e bom capitão isso não
basta para poderdes pôr em prática o que quereis fazer porque para a execução
da Vossa vontade, mesmo que não vos falte poder que aqui tendes com muito boa
gente de guerra, vos faltará por ventura a vontade dessa mesma gente sem a qual,
mesmo que tantas campanhas tivésseis como o rei Xerxes trouxe consigo quando
passou a Grécia, pouco vos aproveitaria, visto que os casos da guerra consistem
mais na força da vontade que na dos
corpos e porque esta vossa gente toda partiu de Portugal para vos servir no
feito de Alcácer que é a vila que lhes destes a entender que queríeis atacar e
para isso estão todos prontos, com as vontades tão fixas e tão prontas que não
há na vossa companhia soldado por de pouca estima que seja, por de sua vontade,
não se tenha persuadido ser Alcácer já ganho por vós. Se agora souberem que
tomais outro conselho, havei por certo que além de se lhes mudarem as vontades
para o combate desta cidade, cuidando nos casos adversos que aos vossos aqui
tem acontecido que de todo desmaiaram e o que fizerem será mais com vergonha do
que por vontade. Disto vos poderá causar partirdes daqui com desonra porque não
tomareis Tânger como cuidais e de a combaterdes e não ganhardes vos ficará a
gente tão cansada e destroçada que, em lugar de irdes atacar Alcácer vos será
forçado, sem fazerdes feito de que possais haver louvor, tornardes para vossos
reinos com grande plasmo de terdes feitas tantas despesas e gastos sem deles
tirardes fruto que de louvar seja. Por isso peço-vos, senhor, em nome de todo
este vosso exército, que vossa mercê seja prosseguir na sua primeira intenção
porque para isso achareis o vosso exército todo muito pronto.
Isto
ouvido pelo rei, este disse ao Infante Dom Henrique e a todos os que presentes
estavam que em nome de Deus fosse, que se preparasse logo a armada e seguisse a
via de Alcácer, pois a sua intenção era de a irem combater.= p. 55
Capítulo
XII
Do primeiro combate que
deram à vila de Alcácer e do que se passou nele.
Ficou
decidido que não se fizesse mudança no assunto de Alcácer que o rei e toda a
sua armada se fez à vela e na segunda-feira, chegou diante da vila de Alcácer, mandou armar os batéis para
logo a ir combater no que houve algum impasse por a fustalha ser muita e assim
a gente que havia de sair em terra, como pelo Infante Dom Henrique não poder
chegar tão facilmente onde o rei estava por causa das correntes que o fizeram
ancorar bem duas léguas afastado da nau do rei com quarenta navios da frota. Ao
chegar, embora fosse já tarde, o rei fez logo remar para terra e como os que
iam nos batéis cada um desejasse para si a honra de ser o primeiro a
desembarcar foi a vaga feita com tanta pressa que quase todos juntos chegaram à
praia de modo que nunca se pôde saber na verdade qual fora o primeiro que
chegara nem a primeira pessoa que desembarcara. Não acharam o desembarcadouro
tão fácil como cuidavam porque na praia estavam mais de quinhentos
mouros a cavalo e muitos a pé. Contudo como os nossos levavam vontade de
pelejar assim como saíram dos batéis os atacaram de maneira que com perda de
alguns dos seus que ali morreram se começaram a recolher uns para a vila e
outros para a serra.
Dos
nossos ao desembarcarem foram muitos feridos, dos quais morreram Rui Gonçalves de Marchena, capitão de homens a pé e Rui Barreto, comendador da Ordem de
Cristo, homens nobres e bons cavaleiros e na fuga dos mouros por os perseguirem
até muito perto da vila João Fernandes
de Arca, homem nobre e bom cortesão deram-lhe uma pedrada de que logo caiu
morto.
Isto
acabado anoitecia e o rei mandou tirar da frota todos os apetrechos necessários
para o ataque à vila porque já estava certo, pelo recontro passado e modo que
via nos mouros que só com gente, sem outros instrumentos de guerra a não
poderia tomar tão cedo como tinha imaginado e lho tinham dado a entender.
Tudo
estava preparado para no dia seguinte, que era terça-feira, se dar o combate. Os mouros conheceram bem que as suas
vidas, pessoas e vila estavam em maior perigo do que cuidavam e para solução
faziam novos consertos, defesas e as obras fortificavam o melhor que podiam com
muita diligência. Contudo o rei não lhes deu tanto tempo nem lugar quanto eles
precisavam porque como todas as coisas pertencentes ao combate foram postas em
ordem e as estâncias repartidas e distribuídos os lugares de combate, mandou
logo tocar as trombetas e enfrentar as tranqueiras da vila que foram acometidas
tão bravamente que ainda que os mouros se defendessem com muitas panelas de
fogo e tiros de artilharia como esforçados homens, não podendo suster o peso da
peleja, recolheram-se para a vila.
Os
nossos vendo fugir os inimigos, subindo por elas (tranqueiras) alguns e outros entrando por buracos que
nelas fizeram, iam no seu alcance. Sabendo isto os homens a cavalo da companhia
do Infante Dom Henrique quebraram as
portas destas tranqueiras e entrando de tropel por elas foram acometer as da
vila que por serem barradas de grossas chapas e lâminas de ferro não conseguiram
quebrar por muito que se esforçassem. Além deste inconveniente tinham outro
maior que era a grande resistência que os do muro faziam com tiros de arremesso
e materiais de fogo que, de cima, lançavam. Por isso com muito dano foram
constrangidos a se afastar, deixando o combate até que se pusessem as mantas ao
muro e outros engenhos para com menos perigo entrarem na vila. Este combate
durou até ao sol posto e dos nossos ficaram muitos feridos, mas nenhum
morto.= p. 58
Capítulo
XIII
Do segundo combate que o
rei Dom Afonso V mandou dar à vila de Alcácer Ceguer e de como foi tomada a
partido.
O
rei, irritado com a resistência que
achava nos mouros da vila, mandou chegar as mantas e outros engenhos de guerra
ao muro. Isto ordenado, andando sempre em sua companhia o Infante Dom Fernando, o rei foi para a parte da vila onde o Infante Dom Henrique estava dando
combate com escadas que já tinha postas nos muros pelo que mandou logo tocar as
trombetas e com o som destas quase de novo se começou de todas as partes uma
áspera peleja ao que não faltava o grande ânimo do rei que correndo todas as
estâncias acompanhado da sua guarda dava ordem ao que se havia de fazer. Tudo
era muito necessário porque os mouros se defendiam como bons guerreiros,
resistindo ao combate e lançando das escadas abaixo os que queriam subir por
elas e isto durou até à meia-noite em que, de ambas as partes, houve alguns
mortos e feridos. O Infante Dom Henrique, como bom soldado e prático nas coisas
da guerra, determinou tomar outro caminho para com menos perda e trabalho
ganhar a vila, mandando colocar uma bombarda grossa onde lhe pareceu que o tiro
faria maior dano. Mandou ao bombardeiro que carregasse bem, prometendo que lhe
faria mercê se com ela fizesse entrada no muro o que ele fez muito à vontade do
Infante Dom Henrique. Do primeiro tiro derrubou um bom lanço de muro e
continuando a sua obra viram os mouros que contra a fúria daquela bombarda não
havia resistência. Assim que, com o trabalho que já tinha passado e pouca
esperança de breve socorro e sobretudo os prantos, lágrimas e choro das
mulheres que os forçavam a terem mais em conta suas vidas, delas e de seus
filhos, do que com suas próprias honras, fizeram logo de cima do muro sinal de paz pelo que o Infante Dom
Henrique mandou para o combate cessar o ruído da gente para saber o que
queriam. Disseram-lhe que confiados na bondade e misericórdia do rei, lhe
queriam entregar a vila assim que fosse dia na condição de os deixarem sair da
vila livremente sem receberem dano, levando consigo suas mulheres, filhos,
familiares e bens.
O
Infante Dom Henrique respondeu-lhes:
-
O rei, meu senhor, não veio cá buscar haveres nem tesouros, mas sim servir a
Deus. Da sua parte, lhes dou lugar para saírem do modo que pedem, contanto que
deixem na vila todos os prisioneiros
cristãos que nela haja e que para isso dêem logo reféns.
(Acredito
que o Infante Dom Henrique tinha muita esperança de assim salvar o seu irmão, Infante
Dom Fernando do cativeiro.) Estes vendo
que tinham impetrado do Infante Dom Henrique o que requeriam, pediram-lhe que
fosse sua mercê mandar que o combate cessasse para ficarem prontos e deixarem
na vila os prisioneiros.
O
Infante Dom Henrique respondeu-lhes:
-
Tal não farei sem ter primeiro os reféns no arraial.
Então
pediram-lhe uma só hora para lhos mandarem. Esta hora de tréguas, como prudente
e sábio cavaleiro, negou-lhes o Infante Dom Henrique dizendo que por força os
entrava. Que de pessoa alguma se tomaria a vida, de qualquer qualidade que
fosse.
Destes
arranjos, logo o rei que andava com o Infante Dom Fernando, visitando as
estâncias do arraial, foi avisado pelo Infante Dom Henrique a quem lhe
respondeu que nisso fizesse o que bem lhe parecesse.
Vendo
os mouros a determinação do Infante Dom Henrique tomaram o conselho que lhes
era mais proveitoso que foi mandarem logo os reféns por segurança da paz. O
Infante Dom Henrique mandou logo levar os reféns à tenda do rei e assim se pôs
fim ao combate com bastante perda e dano de uma e outra parte.
No
dia seguinte pela manhã, que era quarta-feira, dia 23 de Outubro de 1458,
despejaram os mouros a vila, levando consigo as suas mulheres, filhos e bens
sem dos nossos receberem nenhum agravo. O Infante Dom Fernando tomou a cargo a
sua segurança e pôs-se do lado do sertão com a sua gente para defender que não
lhes fosse feito qualquer dano e também para pôr vigias que não levassem
consigo nenhum cristão ou cristã prisioneiro para o que mandava visitar todos
para não se cometer engano.
Como
a vila foi despejada por volta do meio-dia, o rei entrou nela a pé e foi em
procissão até à mesquita e a fez consagrar e dedicar a Nossa Senhora da Conceição onde já encontrou um altar posto em
ordem para diante dele poder fazer oração como fez com os que aí com ele
estavam, agradecendo muito a Deus pela grande mercê que lhe tinha feito.
Isto
foi no ano da Egezira de 863, conta que os árabes e os mouros têm do tempo de
Maomé, seguido por muita gente por causa da sua religião e se retirou à vila de
Medina Thenebi que quer dizer cidade do profeta situada quatro jornadas do mar
da Arábia, onde o dito Maomé está sepultado. Esta conta dos árabes começa
variamente porque fazem os anos de doze luas inteiras.= p.62
O que neste reino sucedeu foi o cerco que no mesmo ano de 1458, pelo espaço de 53 dias, o rei de Fez pôs à vila de Alcácer Ceguer do qual, constrangido pelos nossos se partiu a 02 de Janeiro de 1459. Neste mesmo ano, tendo já Dom Duarte de Menezes uma couraça acabada que o rei Dom Afonso V lhe mandara fazer em Alcácer Ceguer, voltou o dito rei de Fez, no princípio de Julho, com grande quantidade de gente a cercar a vila de Alcácer e teve-a cercada outros 53 dias, mas desesperado por não a poder recuperar, mandou, com muita afronta sua e repreensões que muitos dos seus lhe davam, levantar o cerco.
Capítulo
XIV
Do que o rei fez no tempo
que esteve em Alcácer Ceguer e como se passou dali a Ceuta.
Depois
que o rei tomou Alcácer, a primeira coisa que fez foi mandar fortalecer as
partes dos muros e fossos que lhe pareceu terem disso necessidade e da
artilharia que consigo trazia mandou colocar alguma nos lugares em que melhor
podia servir e nisto se trabalhou os dias que aí esteve que foram quarta,
quinta, sexta, sábado e domingo. E porque o ofício que o rei, em todo o tempo
da sua vida, com maior cuidado teve, foi fazer mercês e galardoar os
serviços que lhe faziam no meio destes trabalhos, além de armar muitos cavaleiros daqueles que o bem mereciam e
lhes fazer muitas mercês de sua própria e liberal vontade, deu a capitania e
governança daquela vila de Alcácer a Dom
Duarte de Menezes, filho de Dom Pedro de Menezes, conde de Vila Real, primeiro
capitão que foi da cidade de Ceuta, negando-a a muitos que, por si
ou por meio dos infantes e outras pessoas influentes, lha requeriam. O rei
lembrado dos grandes e leais serviços de Dom Duarte de Menezes e das promessas
que, de palavra e por seus papéis assinados, lhe tinha feito, lhe deu este
honroso cargo e publicamente afirmou que comparando os seus merecimentos com a
mercê ficava-lhe ainda muito em dívida pela obrigação em que lhe estava, mas
esperava em Deus lhe galardoar e satisfazer com o passar do tempo.
Com
estas palavras tão próprias à obrigação do Estado e pessoa real e à mercê de
tanta confiança houve grandes invejas entre os nobres que ali estavam com
murmurações costumadas em casos onde a mesma inveja tem maior lugar. Assim como
os feitos da honra sempre cometem o mais alto dos pensamentos dos homens assim
ela (inveja) como chama de fogo ardente com o fumo que de si lança, busca o
mais alto de todas as coisas a que pode chegar até se consumir a si mesma e
apagar sem a outrem estorvar senão a quem a si mesmo gera e cria.
Voltando
à nossa história, depois que o rei acabou de ordenar todas as coisas que com
parecer dos Infantes e dos do seu Conselho decidiu serem necessárias para
guarda e defesa da vila e tomar a Dom Duarte de Menezes homenagem do cargo e
ofício de capitão e governador de Alcácer se partiu na segunda-feira para
Ceuta.= p. 64
Capítulo
XV
Do sítio, nobreza e
antigüidade da cidade de Ceuta.
Não
parece razoável passar pela antigüidade e nobreza de Ceuta do modo que o fez Gomes Eanes de Zurara na história que
escreveu de como ao rei Dom João o primeiro de Boa Memória a tomou aos mouros,
da qual segundo afirmam os escritores árabes, o princípio e nobreza procede dos
romanos, já que foi fundada por um neto de Noé,
230 anos depois do dilúvio, segundo afirma Abilabez,
escritor de muita autoridade entre os mouros de quem o dito Gomes Eanes de Zurara, no princípio da mesma história da tomada de Ceuta,
cidade em tempos dos romanos, segundo dizem os mesmos escritores árabes que se
chamava Civitas Romanorum que quer dizer “cidade dos romanos” e a causa porque em
tempo dele era tão freqüentada e povoada foi porque o lugar onde está situada
que é na boca do Estreito de Gibraltar,
a légua e meia da serra de Ximeira,
a que os antigos chamam Abila, lhes
servia muito para, com menos trabalho, poderem passar da Espanha a África e
terem naquele lugar certa e segura desembarcação para as suas armadas tanto por
o porto ser bom como pela passagem ser dali a Gibraltar cerca de cinco léguas.
Neste
tempo que era dos romanos, Ceuta cresceu tanto em grandeza, riqueza e nobreza
dos cidadãos que veio a ser a mais
importante de toda a província da Mauritânia. Estando assim nesta
prosperidade foi ganha pelos godos
no tempo que passaram a África, ficando sempre em sua honra e posse com os
governadores que ali os reis dos godos punham e nesta dignidade continuou até
ao tempo em que os árabes e seguidores da religião muçulmana ganharam e
adquiriram para si toda a Mauritânia. Em seu poder foi muito mais próspera que
dantes. Assim da nobreza de cavaleiros, mercadores e artesãos, pois as coisas
que se lavravam nela de ouro, prata, cobre, latão e outros metais eram tão
perfeitas que em artifício e bondade tinham vantagem sobre todo o género de
obra lavrada em Damasco; de maneira que as desta qualidade e de panos de lã,
linho e de seda, tapetes e outras coisas deste tipo toda a Europa e a maior
parte de África se abastecia daquela cidade por mercadores que nela negociavam.
Estando
Ceuta muito próspera no tempo que,
por erros do rei Dom Rodrigo e
pecados seus e de seus súbditos foi quase toda a Espanha ganha pelos mouros,
seguidores da religião de Maomé, era governador de Ceuta Dom Julião, conde de Espartaria ou de Mancha, que dizem agora Monte
Aragão. Este conde era da geração dos Césares e não dos godos como alguns o
escrevem, a quem o rei Dom Rodrigo dera a governança desta cidade e de outras
na mesma província.
O
rei possuiu ardilosamente uma filha do mesmo conde que se chamava Cava ou segundo alguns dizem a condessa
Dona Fandina, sua esposa, que era
filha do rei Beriza e irmã do bispo
Dom Opas. O conde, afrontado na sua honra de tamanha injúria, levou a condessa
a Ceuta, tirando-a dissimuladamente da corte onde ela residia com esperanças
falsas que o rei lhe dava de casar com sua filha Cava.
Depois,
fingindo estar a condessa, sua esposa, muito doente, alcançou licença para a
mesma sua filha a ir visitar. Como o conde estava em Ceuta deu logo conta da
injúria que lhe era feita por um mouro, bom cavalheiro por nome Muza Abenazair que, segundo o escrevem os árabes, em nome do pontífice Abulet
ou Elgualid, filho de Abdulmalit, naquele tempo, governava a
parte da África que então era dos mouros da Mauritânia, prometendo-lhe, para se
vingar do rei Dom Rodrigo, dar maneira de como seguramente entrasse em Espanha.
Isto
ouvido por Muza, logo disso avisou por
suas cartas o pontífice Elgualid que,
na altura, residia em Damasco do que a resposta foi que ele, em pessoa, não
passasse a Espanha, mas que desse toda a ajuda e favor ao conde Julião que este lhe pedisse. Ele assim fez, donde se seguiram
tantos males, mortes e abominações da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo quantas
das histórias que disso tratam a todos são notórias.
Isto
aconteceu no ano do Senhor de 719 e no
que corria a Egezira e conta dos árabes no ano de 91. Neste ano, os mouros apoderaram-se desta cidade de Ceuta, ficando ela em sua prosperidade
em que (ainda que por duas vezes fosse ganha à força das armas uma do pontífice
e rei Mumen e outra do rei de
Granada) esteve até ao ano de Egezira de 818 que é o ano do Senhor de 1415, em que a ganhou o rei Dom João I de
Portugal, sendo dela capitão e governador em nome de Abuçaide, rei de Fez, um homem muito valoroso e bom cavalheiro por
nome Calabencala.
Escrevem
os mouros que Ceuta, além de muita
riqueza, poder e exercício de letras que nela havia, está em sítio com bons
ares e frescura da terra, a mais útil à vida humana que todas as outras terras
daquela província de África. Por este motivo mutas pessoas de outras partes
vinham ali viver. Fora dela, há um vale contra a parte de Alcácer muito fértil
em que na altura havia tantas quintas e segundas casas que, ao longe, parecia
ser tudo uma grande vila romana, cuja frescura, segundo se escreve, espantava a
vista de quantos o viam. Neste vale havia muitas vinhas e parreiras que, pela
quantidade ser tanta lhe chamavam vinhões.
Contudo as outras partes do sertão são ásperas e de terra não muito fértil nem
proveitosa.
Entre
outros louvores desta cidade pode-se pôr este: está situada de maneira que, de
dentro e de fora, se vê toda a ribeira de Granada, coisa que acrescenta muito
em seu louvor por ser aprazível aos que nela vivem.
Pode
causar espanto uma tal cidade e importante ao reino de Fez não ser logo
socorrida como a razão o requeria, parece-me que é adequado escrever as coisas
donde procedeu tanto descuido. No tempo em que o rei Dom João o primeiro de
nome ganhou esta cidade aos mouros, reinava em Fez Abuçaide, homem dado a vícios e maus costumes. Naquela altura, em
que lhe deram a notícia de que Ceuta
tinha sido tomada por cristãos, o rei estava em Fez, fazendo festas e banquetes
e nestes continuou sem fazer conta de tamanha perda nem mandar socorro para ver
se poderia recuperar coisa tão nobre que tinha perdido.
A sua vida foi sempre assim, segundo escrevem
os históricos árabes que, por muitos erros que cada dia, os seus pecados
induziam, permitiu Deus que, naquela altura, o matasse um seu vizir, que é
justiça mor, também era seu secretário por nome Abubaba, homem poderoso no reino a quem o dito rei tinha feito
muitas mercês. Contudo ele matou-o às punhaladas porque ele violara sua esposa.
Não o matou somente, mas também a seis filhos seus.
Isto
aconteceu no ano da Egezira de 824.
Deste assunto se seguiram grandes divisões e desconcertos no reino de Fez,
ficando oito anos sem rei. Tempo em que o rei Mulei Buçaide, homem principal no reino se levantou contra o seu
próprio irmão por nome Mulei Aco que
se queria fazer rei e tiveram entre si tanta guerra e dissensões que nunca se
pôde concretizar virem os do reino de Fez cercar a cidade de Ceuta, já que o rei de Granada (muçulmano) chamado Rei Esquerdo, homem muito valoroso
e de grande coração, a viesse cercar por mar com grande companhia de mouros de
Espanha.
No
fim destes oito anos que o reino de Fez esteve sem rei, se descobriu um filho do
dito rei Abuçaide e de uma cristã
que fugira para Tunes com um filho, sendo ainda criança quando mataram o seu
pai que se chamou Habdulahed que,
depois de reinar algum tempo, por tirania e mau governo, morreu às mãos do povo
sem deixar filho e este foi o último da Casa dos verdadeiros Marins até àquela altura que era
geração real como em Espanha a dos godos, donde os reis de Espanha
descendem.= p.71
Capítulo
XVI
Do que o rei Dom Afonso V
fez enquanto esteve em Ceuta e de como regressou ao reino de Portugal.
Estando
o rei em Ceuta e vendo o sítio e grandeza
que representava a sua antigüidade, reconheceu tão grande feito que o rei Dom
João I, seu avô, fizera em ganhar uma tal cidade e tão necessária para bem e
segurança não tão somente de seus reinos e dos de Castela, mas ainda de toda a
cristandade. Quanto nisto mais pensava tanto o seu grande e invencível ânimo o atormentava
mais com lhe pôr no pensamento que em comparação com tão grande vitória, tinha
feito pouco em ter tomado uma tão pequena vila como era Alcácer; revolvendo em seu coração que, por sua honra, não devia
regressar ao reino de Portugal sem primeiro tomar Tânger.
Andando
nestes pensamentos e provendo algumas coisas da cidade em que, por estar
presente, era necessário que atendesse, soube por certo que Molei Abdehac, rei de Fez que era o mesmo que reinava quando os Infantes
Dom Henrique e Dom Fernando, irmãos do rei Dom Duarte, foram sobre Tânger,
vinha com trinta mil homens a cavalo e muita gente a pé cercar Alcácer e com ele,
além de outros senhores Molei Aboacim,
Benautuz, grande seu amigo e
grande senhor naquele reino por cujo parecer e conselho se governava e que eram
já chegados a Tânger do que também
foi avisado por cartas de Dom Duarte, a quem logo respondeu e mandou socorro de
gente e mantimentos.
Além
do pensamento de tomar Tânger o seu
desejo era ficar em Ceuta para dali,
como fronteira, fazer guerra aos mouros. Teve sobre isso Conselho, onde houve vários pareceres, mas a resolução foi que a
sua ida para o reino de Portugal parecia mais necessária do que ficar do modo
que queria. Contudo porque a sua partida havia de ser súbita por causa da
grande armada que ali tinha e que não podia aguentar por muitos dias tanto por
causa dos mantimentos que já lhe começavam a faltar como pelas grandes e insuportáveis
despesas com salários e fretes a que já as suas rendas e as ajudas de seus povos não
podiam corresponder; que seria bem, para os mouros não dizerem que fugia com
medo do rei de Fez, mandá-lo desafiar para uma batalha campal o que seguramente podia fazer, pois consigo tinha
bastante gente e assim podia partir com honra e louvor cada vez que quisesse.
Ao
rei pareceu bem, pelo que logo decidiu mandar a Tânger Martim de Távora e Lopo de Almeida com uma carta de
desafio para o rei de Fez, anotada com toda a cortesia que a reis convém e com
eles mandou um rei de armas para desafiar o rei, mas o assunto não se
concretizou. Sabendo ele ao que vinham, em lugar de os ouvir, mandou atirar
bombardadas aos navios, de maneira que lhes foi necessário afastarem-se da
praia.
Martim
de Távora, vendo a intenção do rei de Fez, se foi para Alcácer desejoso de ganhar honra no cerco que já começavam; o que também fizeram alguns outros fidalgos
e cavaleiros dos que estavam em Ceuta, onde Lopo de Almeida regressou com as
notícias do recebimento que, em Tânger, lhe fizeram. Sabido isto pelo rei Dom
Afonso V, este embarcou e com toda a sua armada veio lançar âncora diante da
vila de Alcácer que estava já cercada
pelo lado do mar e da terra, de modo que teve por escusado estar ali mais tempo.
vendo que não podia lançar gente na vila nem dar-lhes mais mantimentos dos que já
tinham dentro que davam para cerca de três meses.
Isto
decidido, partiu logo para o reino e com bonança chegou a Faro, no Algarve, donde se foi para Évora com intenção de pessoalmente voltar a socorrer Alcácer. Isto não pôde fazer porque
outros assuntos que lhe sucederam no reino o impediram. Contudo mandava dos
seus e da sua Casa todos os dias até que soube por certo ter a vila descercada.
Voltando
às navegações, é bom que se saiba que neste ano de 1458, o rei Dom Afonso V confirmou uma lei e ordenação que o
Infante Dom Henrique fez em que declarava que as pessoas que tratassem do Cabo Não por diante, de quaisquer
mercadorias e escravos que trouxessem ao reino de Portugal pagassem a vintena.
Também diz a carta que naquele tempo eram já descobertas trezentas léguas de
costa para lá deste Cabo Não.
No mesmo ano, o rei fez doação ao conde Dom Pedro de Menezes da vila de Almeida
com seus termos e rendas.= p. 75
Capítulo
XVII
De algumas coisas que da
altura da chegada do rei Dom Afonso V de Ceuta até à tomada de Arzila se
passaram no reino de Portugal.
O que neste reino sucedeu foi o cerco que no mesmo ano de 1458, pelo espaço de 53 dias, o rei de Fez pôs à vila de Alcácer Ceguer do qual, constrangido pelos nossos se partiu a 02 de Janeiro de 1459. Neste mesmo ano, tendo já Dom Duarte de Menezes uma couraça acabada que o rei Dom Afonso V lhe mandara fazer em Alcácer Ceguer, voltou o dito rei de Fez, no princípio de Julho, com grande quantidade de gente a cercar a vila de Alcácer e teve-a cercada outros 53 dias, mas desesperado por não a poder recuperar, mandou, com muita afronta sua e repreensões que muitos dos seus lhe davam, levantar o cerco.
Neste
ano de 1459, deu o rei Dom Afonso V o governo do Algarve a Dom Sancho, conde de Mira com título de
Adiantado e sobre este assunto os
nobres e Conselhos do Algarve se agravaram ao rei e também à cidade de Lisboa
que, logo no mesmo ano, o rei por suas cartas patentes lhes prometeu não dar
mais poder ao dito conde do que lhe tinha dado e que por sua morte não poria
mais regedor no Algarve. (Vivia em Lagos e era seu senhor o
Infante Dom Henrique).
No
ano seguinte, 1460, Dom Duarte de Menezes com permissão do
rei veio ao reino de Portugal, deixando por capitão de Alcácer Dom Afonso
Teles, seu sobrinho. O rei Dom Afonso V, em galardão dos bons serviços
prestados atribuiu a Dom Duarte de Menezes o título de conde de Viana e de
Caminha.
Neste
ano, no mês de Agosto, faleceu de
febres, em Tomar, Dom Afonso, marquês de Valença, filho primogénito de Dom
Afonso, duque de Bragança, sem ter casado nem deixado mais do que um filho
natural, por nome Dom Afonso que foi bispo de Évora e também era filho de Dona
Beatriz, filha de Martim Afonso de Sousa.
Deste
Dom Afonso, bispo de Évora, ficaram dois filhos, a saber, Dom Francisco, primeiro conde do Vimioso, a quem com razão podemos
chamar outro Catão Censorino no saber e prudência porque tal o foi ele vivendo
assim nas coisas da paz como nas da guerra, como no Conselho dos Reis que serviu Dom Manuel e Dom João III, seu filho,
de quem foi Veador da Fazenda (ministro das Finanças). É seu filho herdeiro
mais velho Dom Afonso que actualmente vive também com o título de conde do
Vimioso e ministro das Finanças.
O
segundo filho, Dom Martinho, arcebispo do Funchal, homem de altos pensamentos e
grande cortesão na Corte de Roma, onde durante muitos anos residiu em serviço
do reino de Portugal com muita honra e grande família.
No
mês de Setembro, o rei Dom Afonso V
confirmou ao Infante Dom Fernando,
seu irmão, as ilhas de Jesus Cristo (Terceira) e Graciosa que o Infante Dom Henrique, seu
tio, como a filho adoptivo lhe deu, por carta dada na vila de Lagos, a vila de Lagos – vila do Infante – a 02 de Agosto de 1460.
No
dia 13 de Novembro deste ano, 1460, às onze horas da noite faleceu
perto de Sagres, Raposeira, este ínclito príncipe Infante Dom Henrique magnânimo, virtuoso, de
gloriosa memória com a idade de 67 anos. Todo o reino teve grande sentimento
pela sua morte. O seu corpo foi logo enterrado na igreja (de Santa Maria da
Graça mandada construir por ele), em
Lagos. No ano seguinte, o Infante Dom Fernando, seu filho adoptivo, levou o seu
corpo para o Mosteiro da Batalha, onde o rei Dom Afonso V o estava esperando.
Mandou pô-lo na capela do rei Dom João I, seu pai, numa sepultura própria e
separada com muita honra e solenidade por cujo falecimento, por carta dada a 03
de Dezembro, o rei fez doação ao Infante Dom Fernando, seu irmão, para ele e
para seu filho das ilhas da Madeira, Porto Santo, Deserta, São Luís, São Dinis,
São Jorge, Santo Tomás, Santa Iria, de Jesus Cristo, Graciosa, São Miguel,
Santa Maria, São Tiago, São Filipe, das Maias, São Cristóvão e Alana e no dia 28 de Novembro, depois do falecimento
do dito senhor Infante, o rei decidiu que Alvor ficasse por termo de Silves.
Nos tempos passados houve entre o reino de Portugal e os duques da Bretanha grandes diferenças e ocasiões de guerra por respeito de se fazerem, de uma e da outra parte, grandes danos e represálias entre os sujeitos e vassalos. O rei Dom Afonso V como era valoroso e de ânimo invencível, não podendo sofrer as queixas que os seus lhe faziam dos danos que receberam dos bretões, pôs nisso tal ordem que o duque da Bretanha que então vivia, vendo os seus sujeitos tão maltratados pelos portugueses, tomou a decisão de mandar pedir ao rei Dom Afonso V paz e amizade que lhe foi concedida neste ano de 1460 e deu licença e privilégios aos sujeitos do duque da Bretanha para poderem livremente vir por mar e por terra tratar dos seus negócios no reino de Portugal, o que dantes não ousavam fazer.
Nos tempos passados houve entre o reino de Portugal e os duques da Bretanha grandes diferenças e ocasiões de guerra por respeito de se fazerem, de uma e da outra parte, grandes danos e represálias entre os sujeitos e vassalos. O rei Dom Afonso V como era valoroso e de ânimo invencível, não podendo sofrer as queixas que os seus lhe faziam dos danos que receberam dos bretões, pôs nisso tal ordem que o duque da Bretanha que então vivia, vendo os seus sujeitos tão maltratados pelos portugueses, tomou a decisão de mandar pedir ao rei Dom Afonso V paz e amizade que lhe foi concedida neste ano de 1460 e deu licença e privilégios aos sujeitos do duque da Bretanha para poderem livremente vir por mar e por terra tratar dos seus negócios no reino de Portugal, o que dantes não ousavam fazer.
No
ano de 1461, o rei Dom Afonso V fez
doação (…) a Dom Fernando, marquês de Vila Viçosa, filho de Dom Afonso, duque
de Bragança, por falecimento de seu pai, da vila de Guimarães por carta dada a
06 de Dezembro e a Dom Fernando, seu filho, fez mercê de Fronteiro mor de entre Douro e Minho e Trás os Montes do modo que o
fora o duque de Bragança, seu avô, que faleceu neste mês e ano cujo corpo jaz
sepultado em Chaves e neste ano, o rei deu licença ao dito Dom Fernando, neto do duque, Dom Afonso, para o ir servir em Alcácer Ceguer, onde esteve os meses de
Abril, Maio e Junho com 200 homens a cavalo e mil a pé. Ganhou muita honra
tanto no muito que despendeu como nas entradas que fez por terra de mouros,
algumas vezes chegou até às portas de Tânger.
No
ano seguinte, 1462, Dom Afonso V deu
por carta a governança de Ceuta ao conde Dom
Pedro de Menezes, senhor de Almeida, com todos os direitos que rendem os 10
reais que para a dita cidade pagam os de entre Douro e Minho e Trás os Montes
declarados na doação onde lhe chama primo, capitão e governador de Ceuta com declaração que lhe dá o tal
cargo do modo que o tiveram o Infante Dom Henrique, seu tio e o Infante Dom
Fernando, seu irmão (do rei).
No
ano de 1463, o rei Dom Afonso V
passou a África, no mês de Dezembro, com intenção de tomar a cidade de Tânger aos mouros. Já no ano anterior,
tinha mandado dissimuladamente Dom Pedro de Menezes com esta agenda, mas
sucedeu ao contrário do que Dom Afonso V imaginava porque perdeu muita gente na
viagem devido a uma grande tormenta que passou no mar e também pelo combate que
se deu à cidade a 20 de Janeiro de 1464
e numa entrada que Dom Afonso V fez pelo sertão até à serra de Benacofu, onde os mouros mataram Dom
Duarte de Menezes, conde de Viana, capitão e governador de Alcácer Ceguer,
tendo já o Infante Dom Fernando, seu irmão, regressado ao reino e Dom Pedro,
filho do Infante Dom Pedro partido para Aragão por vontade e licença do rei em
duas galés de Barcelona que os Estados do reino de Aragão lhe mandaram
secretamente para sua embarcação, tendo-o entre si elegido para rei por
falecimento do rei Dom Afonso de Aragão e de Nápoles. (…)
No
ano de 1464, o rei Dom Afonso V regressou
ao reino de Portugal e se foi logo em romaria a Guadalupe. Neste mesmo ano, fez
doação do castelo e vila de Lagos ao
Infante Dom Fernando, seu irmão,
senhor de Lagos e a Dom Fernando, conde de Guimarães deu todos os padroados das
igrejas e mosteiros de Lagos.= p. 85
No
ano (…) de 1467, o rei Dom Afonso V
confirmou por carta a capitania e governança da cidade Ceuta a Dom Pedro de Menezes,
conde de Vila Real e mandou no mês de Agosto
a Alcácer Ceguer Gomes Eanes de Zurara
para se informar dos feitos e proezas do conde Dom Duarte e lhe fazer a sua
crónica como fez. Lá esteve um ano e a crónica veio acabá-la ao reino de
Portugal.
No
ano de 1468, o Infante Dom Fernando
passou a África com uma armada de dez mil homens de que os escritores árabes em
suas histórias fazem menção e foi sobre a vila de Ansa que nós chamamos Anasé,
que queimou e destruiu sem nenhuma resistência porque os mouros, sabendo da
armada e gente qualificada que o Infante levava, despejaram-na antes que
desembarcasse. O Infante Dom Fernando mandou
primeiro espiar por Estevão da Gama,
fidalgo da sua Casa.
Para maior dissimulação foi lá com um navio carregado de figo seco do Algarve como se fosse mercador e para melhor conhecer o sítio da vila, ele mesmo vestido de marinheiro, andava com as peças de figos e passas às costas, vendendo-as pela vila de Anasé para notar o que nela havia e a fortaleza que tinha e a gente que era necessária para a tomarem.
Para maior dissimulação foi lá com um navio carregado de figo seco do Algarve como se fosse mercador e para melhor conhecer o sítio da vila, ele mesmo vestido de marinheiro, andava com as peças de figos e passas às costas, vendendo-as pela vila de Anasé para notar o que nela havia e a fortaleza que tinha e a gente que era necessária para a tomarem.
Os
escritores árabes escrevem que o rei Dom Afonso V se decidiu a mandar destruir
esta vila de Anasé entre os mouros muito nomeada e celebrada por respeito das
entradas que muitas vezes os mouros faziam na costa de Castela e Portugal com
galés e fustas que tinham bem armadas de que estes dois reinos continuamente
recebiam muito dano. Da formosura e grandeza desta vila de Anasé dão testemunho
alguns edifícios que ainda hoje em dia se lá vêem.
No
ano de 1469, por o rei Dom Afonso V
ter mais despesa com a guerra de África do que com os descobrimentos nem
proveitos das coisas da Guiné arrendou por
cinco anos o negócio das terras descobertas a Fernando Gomes, cidadão de Lisboa por preço e quantia de cem mil reais brancos cada ano com a
condição de que ele fosse obrigado a descobrir neste período cem léguas cada ano para lá da Serra Leoa que era o extremo do que até
então os nossos tinham descoberto.
No
ano de 1470, o rei Dom Afonso V deu
por carta a governança de Alcácer Ceguer a Dom
Henrique de Menezes, conde de Valença, senhor de Caminha, filho de Dom
Duarte de Menezes, conde de Viana, capitão que fora da mesma vila de Alcácer,
com dois milhões e 2024 reais brancos para refeições de 400 homens assalariados
e cem meias refeições para mulheres, moços e outras pessoas de serviço que
ordenou para lá estarem em guarnição. Neste ano, no dia 18 de Setembro, faleceu o
Infante Dom Fernando em Setúbal com a idade de 37 anos. Estiveram presentes
o rei Dom Afonso V e a sua esposa, a Infanta Dona Beatriz. O corpo foi
enterrado no Mosteiro de São Francisco da Observância, situado junto da vila.
Depois os seus ossos foram com grande solenidade trasladados para o Mosteiro da
Conceição, em Beja. O Infante Dom Fernando teve de sua esposa seis filhos e
duas filhas, sendo o sexto Dom Manuel que veio a ser rei de Portugal e uma das
filhas, Dona Leonor, que veio a casar com Dom João II, rei de Portugal no dia 22 de Janeiro de 1421.= p. 93
Capítulo XVIII
A tormenta demorou tanto que não foi possível trazer o palanque a terra nem mais do que duas bombardas. Contudo o rei era apressado nos seus assuntos principalmente nos da guerra (na qual a diligência não só resiste à sorte, mas ainda a vence) mandou logo dar o combate e atirar à vila com duas bombardas com que derrubaram dois lanços do muro no espaço de três dias contínuos e, no dia seguinte, que era dia do apóstolo São Bartolomeu, dia 24 de Agosto, em amanhecendo, os da companhia de Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, que era a guarda da estância do lado do castelo, viram sobre as ameias de uma das torres posta uma bandeira que parecia de paz, pelo que o conde mandou fazer sinal aos de dentro para seguramente poderem sair e dizerem o que queriam. Assim se fez, dando-lhe da parte do alcaide recado para sobre seguro virem falar sobre o acordo de paz. Logo o conde mandou dizer ao rei que respondeu que desse ao alcaide todas as seguranças que lhe pedisse para se encontrar com ele. Andando eles nestes recados de uma e outra parte se teve por suspeita que alguns dos capitães e gente mais inclinada à vitória misturada com sangue do que à paz e concórdia, tendo-se por afrontados por o rei exigir a vila para o acordo, acometeram com tanta fúria pelas partes por onde o muro estava derrubado que subitamente entraram pelo alto do muro. Os mouros que estavam descuidados por causa do acordo que de ambas as partes se fazia, acudiram com muita pressa, defendendo tanto o muro quanta a sorte em caso tão súbito quis conceder. Os nossos como já tivessem pressuposto de antes morrer que regressar ao rei sem vitória que, sem seu mandado, determinaram naquele dia alcançar, fizeram recolher os mouros para dentro de maneira que, embora a entrada custasse a vida a muitos deles e a muitos mais o sangue, eles a fizeram segura aos que os seguiam de modo que a vila foi entrada antes de o rei saber. Depois de o saber, o rei pediu com grande pressa o capacete porque das outras peças necessárias andava sempre armado e fazendo o príncipe o mesmo se foram ao lugar por onde a vila fora acometida e porque as entradas que se fizeram no muro não eram tão grandes para que pudesse passar bem tanta gente quanta se requeria e a gritaria e brados eram tão grandes dentro da vila que o rei Dom Afonso V bem podia pensar ser muito necessário acudir aos seus. Então mandou pôr aos muros algumas escadas que já eram tiradas por terra porque subiu muita gente. Alguns acudiram às portas da vila e as abriram por onde o rei e o príncipe logo entraram. Com este socorro, não podendo os mouros resistir ao ímpeto dos nossos, uns recolheram-se à mesquita e outros ao castelo, lugar muito forte, onde depois posta boa guarda, o rei com os seus agradeceram muito a Deus por tão bom princípio de vitória, apesar de ser com perda e dano dos seus.= p. 116
Capítulo XVIII
De como o rei Dom Afonso
V determinou passar a África para tomar a cidade de Tânger e como, por conselho
e parecer dos seus, ordenou atacar a vila de Arzila.
O
rei Dom Afonso V determinou pôr em prática um pensamento que, sobre todos os
outros, trazia decidido no seu coração e que era passar a África e ir cercar
Tânger (talvez por tudo o que lá passou o seu tio Dom
Fernando, irmão do rei Dom Duarte). Sobre
isto, no ano anterior, tivera muitos conselhos, mas o parecer dos demais foi
“que por enquanto se devia deixar a ida a Tânger por ser cidade grande e forte
e assim por no reino (por causa das guerras passadas em África) não haver
dinheiro para se poder pagar as despesas que tão grande empreendimento requeria,
mas já que o grande desejo do rei era passar a África, os Conselhos do rei
pediram-lhe que já que assim era que fosse cercar Arzila e por enquanto
desistisse de querer tomar Tânger tanto pelos motivos já afirmados como por
aquela cidade estar em posse de haver vitória dos nossos, pelo que parecia bem
deixá-la em paz até que o tempo por si desse ocasião para se realizar tal
empreendimento de tanto peso e perigo.
O
rei concordou de boa vontade porque, de qualquer modo, a sua intenção era
passar a África. Assim com muita diligência mandou preparar por todo o reino e
fora dele todas as coisas necessárias para a sua passagem, mandando logo Pero de Alcáçova, seu escrivão dos seus
bens, pessoa em quem muito confiava e Vicente
Simões, homem muito experiente nas coisas do mar e nas daquela costa de
África que fossem, pelo modo mais dissimulado que pudessem, a Arzila, fingindo
serem mercadores e lhe espiassem as forças dela e lugares onde seria mais
prudente desembarcar e eles tudo isto fizeram conforme o estabelecido e, após
regressaram ao reino a relatar tudo ao rei.= p.95
Capítulo
XIX
De como o príncipe Dom
João alcançou do rei, seu pai, que o quisesse levar consigo e do modo que nisto
teve.
A
intenção do rei Dom Afonso V, quando determinou passar a África, foi deixar o
príncipe por governador do reino e com ele Dom Fernando, primeiro duque de
Bragança, mas como os pensamentos do príncipe em tudo passassem os limites da
sua idade propôs logo ter permissão do rei para o acompanhar num tão grande
empreendimento e nisto andou alguns dias cuidadoso por não se saber determinar
se ele em pessoa descobrisse a sua vontade ao rei ou lha mandasse dizer por outrem
e considerando que, por ser tão moço como era, poderia haver nele menos
autoridade do que a que convinha para si mesmo poder fazer o seu pedido,
determinou descobrir a sua intenção a Dom
Álvaro de Castro, conde de Monsanto, por ser pessoa em quem ele confiava
muito e saber que era muito bem aceite pelo rei. Assim que, confirmado neste
seu parecer, mandou dizer ao conde que o mais dissimuladamente que pudesse, se
encontrasse com ele, o príncipe, para lhe dar conta de algumas coisas que muito lhe importavam. O
conde assim fez e encontrou-se com o príncipe. Este disse-lhe:
-
Conde, a muita confiança que o rei, meu senhor, tem em vós dá-me a ousadia para
fazer o mesmo e vos dar de mim e das minhas coisas parte; à uma, para delas me
aconselhardes e à outra, para, se vos bem parecerem, me ajudardes no efeito
delas e por esta ser de tanto peso como logo ouvireis eu não a quis, por mim nem
por outrem pôr em prática, esperando que vós fosseis o orientador do meu pedido.
Se este vos parecer inadequado, sem nenhuma dificuldade mo tireis do pensamento
em que ando. Nem de noite nem de dia deixo de ser atormentado e para que não
estejais mais em suspenso no para que vos mandei chamar, sabei que eu me acho ofendido
pelo rei, meu senhor, não me querer honrar com a minha presença nesta viagem
que faz contra os infiéis porque a coisa que mais desejo é ganhar honra por
minha própria mão e porque vejo o tempo disposto e o empreendimento tão santo e
tão honroso vos digo que de todo estou determinado, por qualquer modo que seja,
seguir o rei, meu senhor e acompanhá-lo do que ele não deve ter desprazer e
porque eu receio por algumas dúvidas que terá por justas que me negue isto e
com razões mo queira estorvar, entre elas a minha pouca idade misturada com a
muita obediência que lhe tenho, não ousaria nem saberia replicar. Peço-vos e
rogo, Conde, que deis disto conta a Sua Alteza e façais tanto que dele me
tragais o consentimento porque se ele mo nega, sabede certo que, de duas coisas
se há-de seguir uma: ou de desprazer hei-de cair em alguma grave doença ou
depois de Sua Alteza ter partido o hei-de seguir e se não for como príncipe
será como um aventureiro soldado.
O
conde não menos aturdido das vivas razões do príncipe que alegre de ver nele
tão generoso ânimo disse-lhe:
-
Senhor, como a vontade do que me tendes dito não depende da minha, senão da do
rei, vosso pai, não tenho de vos responder nem razão que possa dar acerca do
que tendes determinado; mas isto vos peço que aquilo que por ventura o rei
poderia altercar comigo, contrariando o que pedis, vos praza que ambos o
pratiquemos porque ao longo das réplicas que tivermos me resolverei nas razões
que lhe hei-de dar, caso não se incline a aceitar o vosso requerimento. Vós,
Senhor, sois moço, único herdeiro deste reino de Portugal, casado há pouco que
são três pontos porque as leis divinas e humanas vos escusam de sairdes fora da
vossa casa a fazer guerra em terras estranhas. A estas três razões se junta a
quarta, que sobre todas se deve receber: com a ida do rei e a vossa fica o
reino de Portugal órfão de legítimo herdeiro. Se a sorte nesta viagem vos
respondesse ao contrário do que cuidais, ora seja assim: que a vossa ida possa,
por qualquer modo, vos parecer lícita e necessária e que dela se deva seguir
grande bem a este reino e a todos os que convosco forem. Quando isto fosse, não
poderia, por boa razão ser, senão ficando vosso pai no reino. O vosso pai, quando Deus ordenasse outra
coisa de vós, tem idade para se casar e haver fruto de bênção para o bem e
amparo para todos nós e desta vossa terra. Ele vai em pessoa e na sua ida não
pode haver estorvo. Eu teria por bom conselho que vós, Senhor, ficásseis em
companhia da princesa, vossa esposa, cuja nova idade e matrimónio e não terdes
ainda filho nem filha dela serão causa dela tomar desta vossa ida tanto
desprazer que facilmente de todo podereis ser causa e azo principal da sua
morte.
Ouvindo
o príncipe o discreto modo que o conde teve em replicar o seu propósito,
continuando no desejo que tinha, disse-lhe:
-
No que respeita aos desgostos da princesa, os homens nas coisas que muito lhe
cumprem se, de facto, são homens, não devem ter em nenhuma conta as intenções
nem desejos das esposas. Estas são sempre mais inclinadas a seus particulares
apetites e vontades do que a toda a boa razão e honra de seus maridos. Quanto a
eu ser jovem, nessa parte me parece que tenho melhor causa porque a arte da
guerra, na qual a experiência é a que mais se requer, não se pode aprender
senão na mocidade. No que toca à sucessão do reino, apesar de não ter filho,
saiba ao certo, que assim o podia dizer ao rei, seu senhor, que a tão honradas
heranças nunca faltaram tais herdeiros que a elas lhes convém porque em
tamanhos casos Deus, a cuja providência tudo é presente, sempre ordena o que é
mais seu serviço tanto para o bem do reino como dos reis dele por cuja infinita
bondade terá a cargo como até agora sempre o fez.
O
conde mais admirado do replicar do príncipe do que com o que antes propusera, disse-lhe:
-
A primeira coisa que vou fazer é dar conta ao rei do que Vossa Alteza me disse
e farei tudo o que me for possível para lhe trazer uma boa resposta ao seu
requerimento.
Assim
fez porque do recado que o conde deu ao rei e prática que com ele teve,
resultou o príncipe obter a permissão que tanto desejava.= p. 100
Capítulo
XXI
De como o rei Dom Afonso
V partiu de Lisboa e do que se passou até ancorar diante da vila de Arzila.
A
decisão que o rei tomou de levar o príncipe herdeiro consigo não foi tão fácil
que depois de lhe ter dado o consentimento ainda houve diferentes pareceres. Contudo
o príncipe teve tais modos e meios que a sua ida não pôde ser impedida. Assim decidido,
ficou a princesa Dona Leonor por
regente e o primeiro duque de Bragança
por primeiro-ministro. O rei mandou com muita brevidade preparar a sua armada
e, porque sabia que entre alguns senhores e outras pessoas qualificadas que com
ele iam, havia ódios e mal-entendidos, pelos quais andavam alguns deles
excomungados e lhes estavam por isso interditos os sacramentos da Igreja,
mandou que nenhum dos tais o acompanhasse sem primeiro se reconciliar com os
que tinha ódio ou desavenças. Todos assim o fizeram.
Nesta
viagem, o rei ordenou que só os condes levassem cavalos por não haver, naquela
altura, necessidade disso e por ter por escusada a despesa que com eles se
poderia fazer.
Da
armada que se fez na cidade do Porto,
o rei deu cargo de capitão da capitania a Dom
Fernando duque de Guimarães, filho do duque de Bragança, Dom Fernando. Chegado
com esta frota a Lisboa, partiu logo
toda a armada do Restelo no dia 15 de Agosto de 1471 e, dois dias
depois, chegou com bom tempo à vila de
Lagos, onde encontrou preparada a armada do Algarve com Dom Duarte, conde de Viana que veio de
Alcácer Ceguer a mando do rei e que os estava esperando.
Nesta
armada havia entre naus grandes, galeões, galés, fustas e outros navios de
carga trezentas e trinta e oito e gente de guerra nobre e soldados, não
contando com a marinhagem e outra gente de serviço, vinte e quatro mil homens. O
que toda esta armada de Lisboa fez de despesa foi cento e trinta e cinco mil dobras
de ouro, valor que encontrei nos memoriais feitos por Dom Vasco de Ataíde,
prior do Crato, que fez a armada que se ordenou em Lisboa e tomou as contas de
toda, tanto a ida como a vinda e a despesa que se fez com a tomada de Alcácer,
de que ele também tomou as contas, se despenderam cento e quinze mil dobras,
gasto tão moderado para o que não sei se bastaria agora um conto de réis de
ouro para cada uma destas armadas, segundo a desordem que cresceu em todas as
coisas e a cobiça nos oficiais dos reis.
Voltando
à viagem, assim que o rei chegou a Lagos,
sem mais esperar, partiu no dia seguinte depois de ouvir missa e pregação no
fim da qual disse publicamente que o lugar que ia pôr cerco era Arzila, onde chegou com toda a armada no
dia 20 de Agosto, já de noite.= p. 106
Capítulo
XXII
Do sítio e antigüidade da
vila de Arzila.
À
vila de Arzila, os mouros chamam Asela
e dizem (segundo o contam suas histórias) que foi fundada pelos romanos no
mesmo lugar onde agora está que é na costa do mar Oceano 17 léguas do Estreito
de Gibraltar.
Esta
vila esteve, nos tempos dos romanos, sujeita ao senhor de Ceuta que era
tributária aos mesmos romanos. Depois foi tomada pelos godos que nela tiveram
sempre seus capitães a cuja obediência esteve até ao ano de Egezira e conta dos
mouros e árabes de 94, que foi três
anos depois da perda de Espanha e de Ceuta ser tomada pelos mouros. Por isto se
vê quão forte e poderosa era esta vila que sendo Ceuta de mouros e Espanha
tomada por eles, a tiveram cristãos contra o poder de tanta mourisma, tão cheia
de vitórias do sangue cristão por tanto espaço de tempo.
Em
poder dos mouros esteve próspera tanto de armas como de letras e mercadorias
durante 220 anos até que por exortação dos reis de Espanha, descendentes da geração
dos godos, foi cercada por uma grande armada de ingleses e tomada com grande
dano e perda que de uma e de outra parte se fez e pela muita gente que no cerco
os ingleses perderam como é gente áspera nas coisas da guerra e que sofre mal
as perdas e afrontas que nela recebe a destruíram de todo e mataram a ferro e
fogo toda a gente que nela havia sem deixarem vivos e assim esteve destruída e
desabitada quase trinta anos.
Passado
este tempo e reinando na Mauritânia os senhores e pontífices de Córdova foi, de novo, por ele edificada
de melhores, mais fortes e magníficos edifícios do que antes tinha e cresceu em
riqueza e grandeza havendo nela muitos homens muito letrados e muitos mais de
guerra que continuamente faziam estragos por mar na Espanha que então era de
cristãos vizinhos ao mar e de quem os fronteiros de Ceuta e de Alcácer Ceguer
depois que foram ganhas pelos portugueses, recebiam muitos e contínuos danos.
Nesta
prosperidade esteve até que o rei Dom Afonso V a ganhou. A comarca desta vila é
muito fértil tanto que poucas daquela costa de África lhe têm vantagem tanto de
frutas como de sementeiras que é tão abastada que é notório aos portugueses fronteiros
que nela no nosso tempo estiveram e habitaram até ser ganha pelos mouros.
Na
altura em que o rei Dom Afonso V a foi cercar, reinava anda em Fez Eslerif Moley Abdelac, contra o qual se
levantou o senhor Saic Abra que o
veio cercar a Fez, mas Eslerif derrotou-o por conselho de um seu capitão e
conselheiro que era primo-irmão de Saic.
Depois
desta guerra, o rei Eslerif mandou aquele seu capitão e conselheiro a Temezara a pacificar aquela comarca que
se revoltara, Saic Abra voltou com oito mil árabes a cavalo e outra gente a pé
e cercou Fez a nova e depois de a ter cercada durante um ano, os cidadãos de
Fez, não podendo mais sofrer as conseqüências do cerco, secretamente aceitaram o
ocupante e entregaram-lhe a cidade e Eslerif se foi com toda a sua família para
Tunes.
Neste
ano em que Saic tinha cercada Fez a nova, veio o rei Dom Afonso V sobre Arzila e tomou-a e aprisionou duas
mulheres de Moley, xeque, grande senhor entre os mouros que, por causa de se revoltar
a província de Habar que era sua, vivia então em Arzila, de que era senhor.
Depois
que foi rei de Fez, onde, neste tempo, estava por causa da guerra
que Saic fazia a esta cidade-nação e
o rei Dom Afonso V aprisionou, de Moley, mais um seu filho, Maomé e uma filha, ambos de
idade de sete anos e os trouxe prisioneiros para Portugal, onde Maomé esteve
sete anos, a quem os mouros por ele saber muito bem a língua portuguesa lhe
chamavam Moley Maomé o Português. Este, sendo já rei, veio cercar duas ou três
vezes Arzila com grande poder e
desejo de a tomar como lugar do seu nascimento e numa destas vezes, reinando em
Portugal Dom Manuel, ganhou a vila e
os nossos recolheram-se ao castelo e, segundo contam os historiadores árabes,
fizeram acordo com o rei Maomé que, se dentro de dois dias não lhes viesse
socorro, lhe entregariam o castelo, salvas as vidas e os bens. Deus, por sua
misericórdia, não quis que coisa tão importante à cristandade voltasse para a
posse dos infiéis porque foi socorrida dentro destes dois dias pelos nossos e
também por castelhanos, cujo capitão era
Pedro Navarro, homem muito
esforçado e experiente nas coisas da guerra.= p. 111
Capítulo
XXIII
De como o rei Dom Afonso
V desembarcou com a sua gente e mandou logo cercar a vila de Arzila.
Na
mesma noite em que o rei Dom Afonso V chegou a Arzila com toda a sua armada,
teve Conselho sobre o modo da desembarcação e cerco que lhe queria pôr. Depois de
vários pareceres ficou concluído que, em amanhecendo, Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto e o conde de Marialva, Dom João Coutinho saíssem a terra com a
gente que para isso lhes foi ordenada e que assim que chegassem à praia,
abalasse o rei com toda a sua companhia e coisas necessárias para o cerco de
maneira que, no mesmo dia, o cerco ficasse instalado de modo que a vila não
pudesse ser socorrida nem dela pudesse sair pessoa alguma e como estes dois condes
eram pessoas de grande competência e muito desejosos do serviço ao rei,
ordenaram tudo tão bem que, ao romper da madrugada, com barcas, bergantins e
outros navios de remo chegaram à praia.
Como o desembarcadouro daquela vila era áspero
e tinha más entradas e perigosas e, nesta altura, com tormenta, o mar andasse
de levadio, os do remo não podiam tanto ajudar sem que as vagas não estorvassem.
Assim, apesar de ser antes do tempo estabelecido, o rei embarcou logo com o
príncipe nos navios que os estavam esperando, fazendo remar com tanta força que,
em breve espaço de tempo, chegou ao perigo em que os condes andavam, no qual
sem nenhum medo lhes quis ser igual companheiro. Visto pelos da armada, não
ficou pessoa que ou nos navios que eram de qualidade para poderem chegar à
praia ou em batéis não seguisse logo o rei Dom Afonso V e assim todos lutando
contra a fúria do mar e força dos ventos trabalharam tanto até que chegaram a
terra, mas isto não se fez sem grande perda porque se alagou uma galé e outros
navios e batéis em que se afogaram mais de duzentos homens de que oito eram
fidalgos, cujos nomes não achei escritos. Esta negligência é de repreender nos
cronistas daquele tempo porque nomes de tais pessoas se há-de fazer menção por
bem e honra das linhagens e famílias.
Voltando
ao rei, assim que desembarcou, não esperou o palanque que vinha na armada que,
por causa da tormenta não foi possível trazer logo e mandou instalar o seu
arraial e assegurá-lo com cava, bastiões e outras coisas que, para o tempo e
qualidade do lugar lhe pareceram necessárias. Tudo se fez sem os da vila
oferecerem nenhuma resistência, já que dentro havia muita e boa gente de guerra
com depois se viu.= p. 113
Capítulo
XXIV
De como se começou o
combate e a vila foi entrada sem o rei Dom Afonso V o saber.
A tormenta demorou tanto que não foi possível trazer o palanque a terra nem mais do que duas bombardas. Contudo o rei era apressado nos seus assuntos principalmente nos da guerra (na qual a diligência não só resiste à sorte, mas ainda a vence) mandou logo dar o combate e atirar à vila com duas bombardas com que derrubaram dois lanços do muro no espaço de três dias contínuos e, no dia seguinte, que era dia do apóstolo São Bartolomeu, dia 24 de Agosto, em amanhecendo, os da companhia de Dom Álvaro de Castro, conde de Monsanto, que era a guarda da estância do lado do castelo, viram sobre as ameias de uma das torres posta uma bandeira que parecia de paz, pelo que o conde mandou fazer sinal aos de dentro para seguramente poderem sair e dizerem o que queriam. Assim se fez, dando-lhe da parte do alcaide recado para sobre seguro virem falar sobre o acordo de paz. Logo o conde mandou dizer ao rei que respondeu que desse ao alcaide todas as seguranças que lhe pedisse para se encontrar com ele. Andando eles nestes recados de uma e outra parte se teve por suspeita que alguns dos capitães e gente mais inclinada à vitória misturada com sangue do que à paz e concórdia, tendo-se por afrontados por o rei exigir a vila para o acordo, acometeram com tanta fúria pelas partes por onde o muro estava derrubado que subitamente entraram pelo alto do muro. Os mouros que estavam descuidados por causa do acordo que de ambas as partes se fazia, acudiram com muita pressa, defendendo tanto o muro quanta a sorte em caso tão súbito quis conceder. Os nossos como já tivessem pressuposto de antes morrer que regressar ao rei sem vitória que, sem seu mandado, determinaram naquele dia alcançar, fizeram recolher os mouros para dentro de maneira que, embora a entrada custasse a vida a muitos deles e a muitos mais o sangue, eles a fizeram segura aos que os seguiam de modo que a vila foi entrada antes de o rei saber. Depois de o saber, o rei pediu com grande pressa o capacete porque das outras peças necessárias andava sempre armado e fazendo o príncipe o mesmo se foram ao lugar por onde a vila fora acometida e porque as entradas que se fizeram no muro não eram tão grandes para que pudesse passar bem tanta gente quanta se requeria e a gritaria e brados eram tão grandes dentro da vila que o rei Dom Afonso V bem podia pensar ser muito necessário acudir aos seus. Então mandou pôr aos muros algumas escadas que já eram tiradas por terra porque subiu muita gente. Alguns acudiram às portas da vila e as abriram por onde o rei e o príncipe logo entraram. Com este socorro, não podendo os mouros resistir ao ímpeto dos nossos, uns recolheram-se à mesquita e outros ao castelo, lugar muito forte, onde depois posta boa guarda, o rei com os seus agradeceram muito a Deus por tão bom princípio de vitória, apesar de ser com perda e dano dos seus.= p. 116
Transcrita
para o português actual por Maria Carmelita de Portugal e com notas da mesma.
Lagos,
10 de Julho de 2017