PRIMEIRA PARTE DA CRÓNICA
sobre “João da Nova e a sua viagem até à Índia em 1501-02”
CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes; 1749; PDF
- pp. 95 –97
Capítulo
LXIII
De como o rei mandou João
da Nova à Índia por capitão de quatro naus e do que se passou até regressar ao
reino de Portugal.
Com
a informação que Dom Vasco da Gama deu ao rei das coisas da Índia e da Etiópia,
modo e relacionamento da gente destas províncias, decidiu mandar regularmente
cada ano uma armada àquelas partes e porque a que fora por capitão Pedro
Álvares Cabral lhe pareceu suficiente para as coisas de Calecut se apacificarem
e reforçarem as amizades com os reis da terra, não quis mandar no ano de 1501
mais do que treze naus e uma caravela grande de que deu a capitania a João da Nova, galego de nascimento, bom
cavalheiro, em África tinha feito muitos serviços ao reino de Portugal e servia
então como alcaide de Lisboa, ofício que, naquele tempo, não se confiava
senão a homens fidalgos de boa consciência, por ser um dos principais da cidade
que então servia um só homem (o rei) e não tantos como agora o fazem.
Os
outros capitães eram Diogo Barbosa,
criado de Dom Álvaro, irmão de Dom Fernando, duque de Bragança, Francisco de Novais, criado do rei e,
da caravela, Fernão Vinet, florentino
de nascimento e criado de Bartolomeu Marchione de Florentim, senhorio da
caravela, mercador muito rico, residente na cidade de Lisboa.
Partiu
esta armada do porto de Belém no dia 05
de Março de 1501. Nesta viagem, estando já no hemisfério sul, acharam uma
ilha a que puseram o nome de Conceição
e sem mais nada acontecer de relevo, chegaram a Moçambique no início de Agosto
e dali foram ter a Quíloa onde
encontraram António Fernandes, degredado, carpinteiro de naus que deu
uma carta a João da Nova de Pedro Álvares Cabral, em que contava o mesmo que
Pedro de Ataíde deixara escrito numa carta que acharam metida num sambarco (=
faixa larga), pendurado numa árvore na aguada de São Brás, que relatava os
negócios de Calecut.
De
Quíloa navegou a Melinde, onde o rei
lhe deu muita informação sobre todo o negócio de Pedro Álvares Cabral e partiu
logo para a Índia e, com bom tempo,
chegou à ilha de Anchediva, no mês de Novembro e depois de fazer aguada se foi
a Cananor para se encontrar com o rei
que lhe fez muito bom acolhimento e pôs à sua disposição carga para as naus se a
quisesse comprar e empréstimo de dinheiro se dele precisasse, mostrando ser
muito amigo do rei Dom Manuel. De tudo João da Nova lhe agradeceu, afirmando
que não podia fazer nada sem primeiro ir a Cochim. No caminho tomou à força uma
nau de Calecut que, depois de despejada, mandou queimar. Antes que João da Nova
partisse de Cananor, o rei de Calecut
mandou-lhe recado por um português de nome Gonçalo Peixoto.
“No dia em que mataram
Aires Correia, eu próprio me salvei em casa de Cojebequi. Peço desculpa do que
aconteceu a Pedro Álvares Cabral, mas não tenho culpa do que então se passou. Peço-lhe
que venha encontrar-se comigo como amigo e tome carga no meu porto, onde achará
tudo o que lhe for necessário.”
Por
Gonçalo Peixoto, Cojebequi mandou
dizer a João da Nova:
“Não se fie no rei de
Calecut. Tudo são falsidades para o ter próximo e o matar e tomar as suas naus.”
João
da Nova não quis responder a nenhum dos recados e Gonçalo Peixoto não quis
regressar a Calecut. A chegada de João da Nova a Cochim foi para os nossos ressuscitar e voltar de novo ao mundo
porque ainda que o rei de Cananor os favorecesse muito e os mandasse de noite e
de dia guardar pelos seus naires, andavam tão atemorizados por causa dos mouros
da terra que lhes parecia que não podiam escapar de serem mortos e não mais
verem pessoa do reino de Portugal.
O
rei de Cochim fez muita honra e acolhimento a João da Nova, mandando-lhe logo
dar toda a carga que lhe fosse necessária para as naus, emprestando-lhe
dinheiro e todas as coisas que dele, do seu reino e vassalos viesse a precisar.
Carregadas as naus com as especiarias que o feitor Gonçalo Gil Barbosa tinha prontas e outras que se compraram depois,
João da Nova despediu-se do rei de Cochim e dos portugueses que ficavam na
cidade para ir a Cananor comprar o que lhe faltava para a carga das naus ficar
completa.
Quando
já estava prestes a partir, no dia 16 de
Dezembro, apareceram, do mar, mais de oitenta paraus que o rei de Cananor
mandou dizer a João da Nova que eram do rei de Calecut e que o vinham acometer.
O seu conselho era se chegarem bem a terra para ele, se necessário fosse, o mandar
socorrer porque com quatro velas que tinha, seria impossível defender-se de
tantas e de tanta gente que nelas vinha.
João
da Nova ficou muito agradecido e mandou-lhe dizer que esperava no Senhor Deus
ter deles vitória sem outra ajuda. No dia seguinte, pela manhã, amanheceu a
terra de Cananor cercada destes paraus e de outras naus que, ao todo, eram mais
de cem. João da Nova, vendo que o porto e passo por onde havia de sair lhe
estava tomado, veio colocar-se no meio da baía de tal maneira que tanto ele
como os outros capitães se podiam ajudar com a artilharia, mandando que
jogassem com ela sem cessar de modo que os inimigos não os abalroassem porque
nisto estava toda a sua salvação. Isto se fez com tanta ordem que, apesar de as
naus e paraus de Calecut trabalharem muito para os abalroar não o conseguiram
fazer. Nisto se passou todo o dia até quase ao sol-posto e, nesta altura, já
havia, dos indianos, quatrocentos e dezassete mortos como depois se soube e
muitos feridos, algumas das naus e paraus foram metidos ao fundo. Então levantaram
os inimigos uma bandeira de paz que pareceu mais manha do que vontade ou desejo
de paz. João da Nova mandou levantar o seu guião, sem a artilharia cessar. Os inimigos
não quiseram retirar a bandeira da paz, mas antes, capeando, davam a entender
que queriam falar ao capitão. João da Nova mandou hastear outra bandeira,
dando-lhes sinal de paz. Veio logo à nau-capitã
um mouro pedir tréguas a João da Nova até ao outro dia. João da Nova
concedeu-lhe a condição desde que saíssem logo da baía e deixassem o passo
livre para a sua armada sair quando ele quisesse. Eles assim fizeram e indo
eles adiante e a nossa frota na sua alçada, saíram todos da baía já era de
noite, com pouca distância uma frota da outra.
Apesar
da trégua ainda durar, nem por isso os inimigos deixaram de mandar a nado
alguns dos seus para cortarem as amarras às nossas naus e atrás deles almádias com
gente para, assim que as amarras fossem cortadas, lançarem fogo para dentro das
naus. O que fariam se não fossem pressentidos, tendo logo como resposta tiros
de espingarda e de bombardas com que os fizeram afastar. Nisto se passou toda
aquela noite até ao alvor do dia em que os nossos verificaram que toda a frota
dos inimigos se ia recolhendo para Calecut. Os nossos agradeceram muito a Deus
por os livrar de um tamanho perigo.
Dali
partiu João da Nova sem regressar a Cananor por já se ter despedido do rei e
dos portugueses que ficavam na cidade. Seguindo assim a sua viagem para diante
até ao monte Deli, tomou uma nau de
Calecut que, depois de saqueada, mandou queimar e dali veio ter a Melinde e de
Melinde a Moçambique e, passado o cabo da Boa Esperança, veio ter a uma ilha a
que pôs o nome de Santa Helena, onde
fez aguada. Era uma ilha de muito bons ares, apesar de pequena. É muito
proveitosa a todas as nossas naus que a ela vão ter pela boa água, frutas e
carnes que nela encontram.
Seguindo
viagem, chegou a Lisboa com a sua frota junta no dia 11 de Setembro de 1502 e foi recebido pelo rei e por todos da
cidade com muito prazer pela boa viagem que fizera e ilhas que
descobrira.= p. 97
Transcrita
para o português actual por Maria Carmelita de Portugal
Lagos,
24 de Abril de 2017