Venho
partilhar convosco este meu trabalho escrito durante o ano de 2003.
Este é um tema que sempre me interessou e continua a interessar.
Espero que gostem e possam aproveitar algo!
“Eu
que gastei o meu tempo sem ter conta, quero hoje fazer conta e
falta-me tempo. Se os que contam com o seu tempo, fizessem desse
tempo alguma coisa, não chorariam como eu agora por não ter tempo.”
Poeta
Drummond de Andrade
“Fazer
terapia não é resolver problemas ou corrigir erros, mas mergulhar
no mistério das famílias e do encontro.” de Ausloos
in
Competências
das Famílias (1996)
Prefácio
Desde
que me conheço que a minha preocupação e o meu interesse são os
seres humanos. Desde criança que ajudo os outros e ponho-os em
primeiro lugar em detrimento da minha pessoa. A minha família foi o
berço de toda esta minha actividade.
Na
adolescência, quando dei por mim, estava a trabalhar para toda a
gente. Toda a gente queria aproveitar-se de mim "Faz! Fica sempre tão bem feito!" e por outro lado,
tinham uma grande raiva de precisarem de mim e detestavam-me por
isso. Eu incomodava-lhes a consciência, mas não me deixavam viver a
minha vida porque sabiam que, comigo longe, a vida seria muito mais
difícil. Então eu revoltei-me porque sempre os tinha ajudado de
toda a maneira e era grande a falta de amor deles por mim. Tudo isto
se passava dentro de casa e também fora, com os colegas.
Hoje
compreendo que, apesar de perceber que este ou aquele vai mal, decide
mal, faz mal; pois que faça o seu caminho. Bata com a cabeça na
parede as vezes que quiser e precisar. Não é problema meu! A única
coisa que devo fazer é dar o alerta e deixar. Afinal eu também
tenho dificuldades e encontro bastantes problemas e obstáculos na
minha vida e não há outra solução senão enfrentá-los e fazer
caminho. A cada um o seu livre arbítrio. Só que esta peregrinação,
meu percurso de vida deu-me muita dor de cabeça, muita preocupação,
muito sofrimento, muita carência afectiva.
Desde
os primeiros anos de estudos que tenho frequentado a biblioteca de
Lagos. Primeiro a Biblioteca Calouste Gulbenkian; depois da revolução
do 25 de Abril, a Biblioteca de Lagos no mesmo lugar e depois a
Biblioteca Júlio Dantas na Rua Júlio Dantas. Lia todos os contos
infantis e hoje acho interessante a semelhança entre os dons que as
fadas boas ou más davam aos príncipes e princesas com os Dons do
Espírito que Deus nos vai entregando ao longo da nossa vida.
Adolescente
li todos os livros de Psicologia, Sociologia, Filosofia que a
biblioteca tinha. Gostava tanto!
Mais
tarde, tanto no curso de Economia como em Recursos Humanos e no
secundário voltei a estudar estes assuntos e agora estou a elaborar
este trabalho sobre Terapia
Familiar.
Tudo isto me é interessante. Tudo o que se relaciona com o ser do
ser humano sempre me fascinou! Lagos, Abril de 2003
PARTE I
1. Introdução ao tema
Freud
considerava que é na linguagem que o inconsciente em pessoa
se manifesta. Através das associações livres e das interpretações,
o psicoterapeuta e o paciente vêem surgir progressivamente as linhas
de força da personalidade. Estas, na patologia, estão em conflito
com as realidades da vida consciente. A doença e os sintomas são
emanação deste conflito.
Se
o médico pode abordar os elementos da sua ciência permanecendo um
observador imparcial; o psicoterapeuta torna-se, a um certo nível, o
objecto da sua própria pesquisa com a qual interfere. Enquanto
indivíduo humano, inscreve-se num dado conjunto sociocultural, numa
determinada óptica filosófica e mesmo em traços patológicos
precisos que tornam, por vezes, difícil, frequentemente sem que ele
se aperceba, as virtudes de objectividade que a sua pesquisa reclama.
Numa
versão simples e esquemática a relação terapêutica é, no
início, uma colaboração entre duas pessoas que trazem dados
susceptíveis, pela sua ordem e complementaridade, de fornecer uma
solução ao problema posto pelo paciente.
No
início é essencial obter informação bastante completa e o mais
concreta possível sobre o problema posto, mas também sobre aquele
que põe o problema. Nenhum psicoterapeuta pode passar sem um
inventário detalhado dos comportamentos, um relatório preciso dos
traços de personalidade do paciente.
Antes
de falar sobre o caso ao paciente, o psicoterapeuta deve ajudar o
paciente propondo-lhe alguns temas
que sabe que, com alguma probabilidade, podem interferir na
perturbação daquele. Esta pesquisa a dois de correlações
possíveis com a perturbação e da sua actualização crítica
fornece, muito frequentemente, factos numerosos e precisos que
permitem ao terapeuta orientar rapidamente as suas questões de um
modo mais específico.
A
tarefa do psicoterapeuta é precisar progressivamente as
situações-problema através das informações dadas pelo paciente.
Ele sabe que o conflito familiar latente que o paciente descreve
banalizando-o pode ser mais destrutivo do que ele admite. Esta
descoberta de uma ligação causal entre os sintomas e os
acontecimentos do meio
é o ponto crucial do qual dependerão todas as etapas posteriores.
A
análise do problema nos seus diferentes aspectos e a organização
dos dados num modelo teórico terminariam finalmente numa táctica.
Quais os objectivos do terapeuta?
Resolver
um problema específico ao paciente?
Orientá-lo
para outra especialidade?
Dar
ao paciente a possibilidade de modificar os seus aspectos negativos?
As
respostas dadas às questões que antecedem a decisão de que táctica
utilizar são mesmo necessárias. A táctica ou plano de acção que
se estabelece deve ser tão preciso quanto possível. Só o
seguimento de um programa claro e detalhado permite uma reprodução
fiel da táctica em situações semelhantes e a partir daí uma
avaliação objectiva da eficácia da especificidade dos meios
utilizados. Só esta precisão é capaz de regular o difícil
problema das comparações entre terapeutas. O estudo comparado de
planos de acção de várias teorias permite uma aproximação
construtiva e um enriquecimento de técnicas.
2. Dimensão de grupalidade no indivíduo
“Meu
EU, quem és tu que tantas vezes não me reconheço?”
Bion
no seu livro Experiences
in groups (1969)
postula e caracteriza a existência no indivíduo de uma dimensão de
grupalidade. Esta entidade pretende denotar a parte da vida psíquica
da pessoa que é incessantemente estimulada e activada pela
experiência da interacção familiar. Trata-se de uma parte que, no
indivíduo, continua a ser o aspecto da sua identidade que o
determina a nível interno e como membro participante de uma dada
família. Numa situação de relativo isolamento, a grupalidade do
indivíduo permanece latente sem se manifestar ou afirmar; mas o
contexto familiar faz com que esses aspectos venham à superfície
como se revelassem no indivíduo a natureza da sua personalidade
enquanto membro de uma família.
Teoricamente
podemos distinguir três
níveis de operações inconscientes:
Eu
(da vida natural – corpo físico) ®
podemos estudar-nos através dos outros animais. São-nos
transmitidas características geneticamente tanto físicas como
psíquicas relacionadas com os instintos. A sobrevivência e
relacionada com ela a busca do alimento e a posse, a autodefesa, a
competição, a procriação e relacionada com ela a sedução, o
apelo e o desejo sexual, o abrigo, a protecção, o prazer, a relação
de domínio–sujeição, a manha. Esta vida tem a ver com as
sensações;
é táctil, existe à flor da pele. A vida tem a duração da vida do
corpo físico. Com a morte do corpo físico tudo desaparece.
Eu
(da alma com identidade única como o corpo natural) ®
este Eu é aquele das emoções.
É o corpo imaterial que coabita com o nosso corpo físico no
interior da pele. É o mundo dos afectos, dos sentimentos: o amor do
coração nas suas várias tonalidades e precisa do outro e de Deus
para se sentir inteiro; precisa da família, dos amigos para se
sentir feliz. A família realiza-o completamente ou destrói-o, se
não corresponde a relações de afectos, mas união de seres
egoístas usando-se uns aos outros. A felicidade é conceito da alma
e dos corpos celestes humanos.
Eu
(dons do espírito) ®
Estes podem chegar a ser sete e o indivíduo é um sobredotado. São
do mundo do espírito. Percorrem várias vidas e acumulam
conhecimentos. São a nossa criatividade,
a nossa capacidade de fazer, a nossa curiosidade, a nossa razão, ...
levam-nos à solidão porque nos levam ao isolamento para conhecer
mais e mais sem limites.
Assim
o indivíduo situa-se numa família numa relação de sinergia para
uma maior protecção, defesa e possibilidade de maior concretização
de objectivos e/ou para uma rede de relações de afectos.
Na
minha opinião de pessoa leiga nesta matéria, apesar de muito
interessada, penso que os especialistas e investigadores em doenças
mentais têm de estudar e investigar muito mais do que os efeitos dos
alimentos no indivíduo (apesar de estes contribuírem muito para as
doenças nas pessoas), mas as doenças mentais vão muito para além
disso. É já aceite que comportamentos do indivíduo em relação
aos outros e a Deus originam muitas doenças. Daí concluo que é
importantíssimo também essa área passar a ser estudada, analisada,
comparada e após, trabalhar na mudança de atitudes e comportamentos
para recuperar o que é possível recuperar.
Se
realmente se quer compreender melhor as doenças mentais e se quer
ajudar os indivíduos com estas doenças, temos de aceitar tudo isto
e também a humildade; pois nada é desvendado sem o consentimento de
Deus. É urgente investir no estudo de comportamentos, atitudes,
caracteres e relacioná-los com as doenças e com o outro que nos
rodeia e faz-nos adoecer por dentro, só porque existimos. Tudo passa
muito mais por aqui. É necessário mudar a maneira de ser e de estar
na vida e o relacionamento com Deus e a Sua Família e os outros para
que as doenças diminuam drasticamente e todos vivam muito mais
felizes. Assim o queiram!
Cada
um dos membros da família tem um determinado conceito de família
que concretiza no dia-a-dia com exigências, mas também com
prestações aos restantes membros da família. São nas alturas de
crise que o conceito de família de cada um vem ao-de-cima e também
as decepções em relação às expectativas de cada um que não
foram correspondidas. É bom ter uma família e quem não a tem,
aspira a tê-la. No entanto, quem tem uma família aspira a ser
família. Então estes dois conceitos “ter
uma família” e
“ser uma família”
são importantíssimos tanto no tratamento de doenças mentais como
de outras doenças que muitas vezes resultam de a família não
conseguir ser família para o subconsciente de cada um dos seus
membros ou para algum deles. Ser família implica relações de
amizade entre todos os membros da família e cada um deles e o amor é
amor, protecção, cooperação, compreensão, apoio, solidariedade,
compromisso,... Muitas pessoas constituem família, mas são egoístas
e cada um utiliza o outro em seu próprio benefício e aqueles que
querem ser família naquela família, a certa altura ficam esgotados,
revoltados, desiludidos, agressivos, ...
Uma
vez assisti a um casamento em que o bispo colocou a mão direita dele
sobre a mão direita dela e a sua por cima das duas e disse:
“ –
Construam-se um ao outro!”
Achei
lindo e muito verdadeiro e necessário para ser família. Talvez
fosse necessário o psicoterapeuta dizer à família:
-
Construam-se uns aos outros!
É
este o objectivo primeiro e fundamental de qualquer família em que
cada um dos seus membros é único e diferente de todos os outros e
com expectativas e aspirações completamente diferentes, mas todos
estão unidos pelos fortes vínculos do Amor e da Amizade e o
Amor-Comunhão vai moldando-os de maneira a que todos se enriqueçam
e sejam burilados de modo a ficarem cada vez mais humanos e, portanto
mais adequados à sua condição de seres humanos perdoando e
perdoando e chamando a atenção, tentando-se corrigir para que o ser
família se mantenha sempre até à eternidade. Não há nenhum
indivíduo que não aspire a isto, pois isto é a sua essência.
Construam-se uns aos outros!
Eis
a divisa a ensinar aos outros e a nós próprios, pois cada um de nós
tem uma família a construir.
3. Dinâmica familiar
A
comunicação no seio da família faz-se através de um permanente
jogo de interacção recíproca tendente a um equilíbrio. É
sobretudo a partir dos anos quarenta do século passado que diversos
autores começam a utilizar a dinâmica familiar com fins
terapêuticos. Se há famílias que têm tendência a resolver no seu
seio as dificuldades do dia-a-dia, outras existem que recorrem a
pessoas, fora do agregado familiar, para as conseguir resolver.
A
partir de certa altura, os terapeutas não só começaram a sentir-se
mais à vontade para convidarem determinadas pessoas a virem à
terapia na sua qualidade de família, como se tornaram mais
conscientes de que o paciente passara a ser a própria unidade
familiar. Em si própria, a família pode ser considerada como ponto
de encontro dos modos de funcionamento individual, grupal e
institucional. A família, à semelhança de uma instituição, tem
uma vitalidade própria que precede e ultrapassa o período de
duração da terapia. Na família enquanto grupo, a dinâmica
específica da interacção dos seus membros constitui o centro de
interesse do terapeuta
A
família é a primeira comunidade, comunidade nuclear e contém em si
todas as regras de bom funcionamento para qualquer comunidade ou
instituição e, apesar de pequena, muitas vezes é um foco de
problemas superiores aos de comunidades maiores porque cada vez mais
é uma comunidade de afectos e cada elemento manifesta e sente de
maneira diferente e aceita ou rejeita as projecções que lhe querem
incutir. São relações de domínio e sujeição em mudança para
relações de cooperação e libertação; são relações de
formador – formando em mudança para relações em que todos são
formandos; são relações de protecção paternal em mudança para
relações de protecção de Deus e a Sua Família a toda a família.
Esta mudança constante é muito difícil de ser aceite pelos membros
da comunidade familiar que lutam constantemente pela manutenção do
status quo
ou contra ele. Isto traz como consequência muitas vezes, a
necessidade de apoio exterior ao indivíduo mais afectado e à
família que não se consegue consciencializar da origem e verdadeira
causa do problema. Por outro lado, se o problema é de um dos membros
da família e as causas são exteriores à família podendo vir do
próprio indivíduo ou a causa ser exterior ao indivíduo e à
família; a família toma sempre a causa como sua e o problema como
seu duplicando-lhe o problema que este seu membro lhe traz.
É
devido ao facto de o indivíduo crescer numa família e de esse
acontecimento criar e recriar a família que as relações familiares
constituem a experiência central da continuidade da vida, da
infância à adolescência e idade adulta, mas na idade adulta é
possível reexperienciar os mesmos acontecimentos numa perspectiva
inversa: cada filho constrói a sua própria família criando os seus
filhos e assim um novo núcleo familiar se inicia.
O
ponto central na compreensão da dinâmica da interacção familiar é
a noção de um conflito intrapsíquico que se desloca para a relação
entre os membros da comunidade familiar. A identificação
projectiva
é uma operação inconsciente por meio da qual uma parte do mundo
interno de um indivíduo se desliga dele próprio e, através da
projecção, vai localizar-se noutro membro da família. Como
consequência, o indivíduo fica privado dessa parte de si que sempre
sonhou e não conseguiu realizar e experiencia no outro membro da
família tudo aquilo que gostaria ele próprio de ter experienciado.
Isto pode-se verificar a nível do cônjuge ou da relação paterna
para um dos filhos ou outro elemento familiar. De um ponto de vista
operacional o indivíduo interage com a parte de si próprio que foi
projectada no outro do mesmo modo que agiria se essa parte fizesse
parte de si próprio. Assim há todo um esforço do indivíduo no
seio da família para que o receptor da projecção se torne cúmplice
da operação e se conforme e aceite esse papel. Quando esta situação
não se coaduna com o receptor e finalmente o receptor toma
consciência da situação e rejeita-a; dá-se uma enorme surpresa no
indivíduo-emissor e a relação afectiva-positiva passa a ser uma
relação de conflito e o objecto da projecção passa de
competentíssimo a falhado, desastrado, sem personalidade.
Desequilibra-se o equilíbrio familiar e os restantes membros da
família não conseguem perceber nem restabelecer o equilíbrio
familiar.
Para
dar ao indivíduo a sua liberdade como ser e restabelecer o
equilíbrio familiar surge o terapeuta que vai observar as
interacções familiares em vista à descoberta de uma rede oculta de
identificações projectivas. Dada a natureza deste trabalho o
terapeuta coloca-se na mesma situação em que se encontra qualquer
um dos membros da família. Está presente para se deixar impregnar
pelas identificações projectivas.
Por
fim todos os processos se somam chegando ao ponto em que o terapeuta
passa a ter completamente a confiança da família. Neste ponto o
terapeuta, para além de reconhecer o que as pessoas daquela família
estão a fazer umas às outras, deve esclarecer em particular o
aspecto projectivo, isto é, o que a família está a fazer com ele e
a ansiedade que a move. Trata-se de um aspecto extremamente difícil
do trabalho, uma vez que o terapeuta entra na situação como alguém
estranho e inexperiente perante um hábil grupo de fiéis de longa
data – a família do paciente identificado.
O
terapeuta poderá sentir a tentação de devolver a incomodidade da
situação à família, a um dos seus membros ou sentir-se inclinado
a apresentar as suas interpretações de modo a bombardeá-los no
mesmo sentido em que ele próprio está a ser bombardeado pela
família. No entanto, se for capaz de aguentar e de conter-se, terá
a possibilidade de transformar o seu mal-estar em qualquer coisa
potencialmente significativa e útil à interacção daquela família
em particular.
4. Terapia familiar de orientação psicanalítica
Uma
terapia familiar de orientação psicanalítica deve identificar qual
o modo de dependência que se encontra em acção no padrão da
interacção familiar. Esta última poderá definir-se por relações
de dependência que, uma vez elaboradas, conduzirão à
individualização dos seus membros e ao estabelecimento por estes de
novas famílias nucleares. No entanto, a interacção pode também
estar organizada de modo a negar a existência de necessidades de
dependência, de forma a negar a necessidade de se estabelecerem
relações interdependentes e de maneira a que a dependência seja
usada como meio de controlo e de apropriação do outro.
Os
padrões interactivos manifestar-se-ão na transferência e tenderão
a impugnar as relações próprias do campo terapêutico. O terapeuta
poderá ser sentido como (ou ser encurralado na posição de) líder
dependente,
destinado a fornecer todos os tipos de solução omnipotente. O
terapeuta é quem tem a palavra, quem representa o conhecimento a ser
seguido. Por outro lado, o terapeuta pode ser sentido como o provedor
cuja oferta deverá ser recusada por levar à tomada de consciência
e ao contacto com as necessidades e carências das partes em
conflito que a família se esforça por não reconhecer.
Este
esforço por ignorar a dependência é um elemento que tece tanto no
indivíduo como no grupo familiar, isto é, tem tanto uma dimensão
social como psicológica.
Se
considerarmos que a família que chega à terapia está geralmente
organizada em maior ou menor grau, será mais fácil compreender
porque o terapeuta tem tanta dificuldade em se fazer participante na
família e com isso provoca sempre um alto nível de turbulência.
Isto deve-se ao facto de as intervenções do terapeuta se dirigirem
a um campo emocional saturado por um alto grau de defesas psicóticas.
Uma vez abordadas estas defesas libertarão imediatamente quantidades
consideráveis de ansiedade psicótica criando um tipo psicótico de
transferência.
4.1 – A personalidade narcísica
Segundo
Rosenfeld
(1971) a organização psíquica da personalidade narcísica pode ser
extrapolada para o terreno da terapia familiar a fim de nos facilitar
a compreensão do campo emocional que caracteriza certos tipos de
interacção familiar. Os trabalhos de Rosenfeld mostram que o
narcisismo destrutivo destes pacientes parece muitas vezes altamente
organizado como se estivéssemos a lidar com um gang
poderoso dominado por um líder que controla todos os membros do
grupo a fim de se certificar de que estes se auxiliam mutuamente
tornando o trabalho destrutivo ainda mais eficiente. O narcisismo tem
um objectivo defensivo que é o de se conservar no poder e conservar
o status quo visando
manter o grupo afastado da necessidade de investigar a sua realidade
psíquica.
Há um controlo mútuo visando impedir que qualquer membro proceda a
contribuições diferentes dos que alimentam o fundo comum. Todos os
participantes devem estar em uníssono com o líder e a sua maneira
de ser família que orienta todas as suas acções.
A
percepção da existência de obstáculos que poderiam pôr em perigo
a realização da tarefa e levar o grupo à necessidade de receber
uma ou outra forma de ajuda, é sentida pelos participantes do grupo
como uma ameaça à sua autoestima. Em tais circunstâncias, a
atitude científica é substituída pelo modo de proceder mágico.
Este último nega a ameaça permitindo assim ao grupo manter a sua
autoimagem idealizada. Os membros familiares continuam a tratar-se
uns aos outros não como pessoas completas, mas como exteriorizações
parciais do(a) líder. Os membros da família esforçam-se por manter
o sentimento de unidade a fim de defenderem o status
quo
simbiótico. Qualquer iniciativa de um dos membros para modificar a
situação ou qualquer contributo estranho ao fundo comum da
organização ou qualquer tentativa de um dos membros de se separar
da família para recuperar a sua liberdade é vivida como ataque à
família enquanto grupo e também como traição aos princípios
familiares.
A
observação do padrão da interacção familiar revela que o tipo de
conflito entre
narcisismo e dependência
descrito por Rosenfeld, ao nível do indivíduo, poderá estar também
presente ao nível da organização familiar. As oscilações deste
conflito e a natureza da sua resolução determinam o padrão final
adoptado pela família e o resultado da tarefa que os seus membros se
impuseram.
Uma
das tarefas da família é reconhecer e prover às necessidades dos
seus membros dependentes. O modo como estes recebem cuidados e o modo
pelo qual lhes é prestada assistência desempenham um papel
importante na determinação da capacidade que esses membros virão a
ter de criarem, no devido tempo, as suas próprias famílias
nucleares. É portanto de esperar que as relações de dependência
no interior da família contenham, no modo por que se estruturam, as
próprias sementes da futura independência que germina a partir de
tais sementes e que sejam de um tipo capaz de reconhecer e lidar
tanto com as necessidades e sentimentos dependentes do sujeito como
com os daquele sobre quem recai a sua projecção ou domínio.
Se
a capacidade de tolerar a dependência for predominante, os membros
da família organizarão um padrão de interacções que permitirá a
existência de um espaço disponível para o estabelecimento das
relações entre o sujeito e as suas projecções. Trata-se de um
espaço onde estes se podem encontrar e separar, isto é, onde a
reciprocidade das relações objectais é reconhecida pelos
diferentes participantes do vínculo. Neste tipo de organização,
cada uma das partes na família reconhece a presença, a
individualidade e a singularidade da outra parte. Por outro lado, o
reconhecimento e a aceitação da importância das relações na
família, das suas próprias necessidades dependentes são
facilitadas pela atitude do provedor que exprime e transmite a
iniciativa de auxílio enquanto elemento de uma relação
interdependente.
Quando
a forma de organização
narcísica
predomina na família, o
padrão das interacções resultantes estruturar-se-á de tal modo
que se assemelhará ao funcionamento do pressuposto fundamental,
tendo os seguintes objectivos:
- negar as necessidades dependentes e/ou escolher um dos membros da família para agir essas necessidades clivadas, afastadas e projectadas no membro em questão;
- roubar ao objecto os seus atributos que motivam necessidade, desejo e admiração (identificação narcísica);
3)
impedir o objecto de formar e conquistar a sua identidade (controlo
omnipotente).
O
objecto (elemento da família-alvo) torna-se o espaço de realização
do outro elemento (sujeito) proporcionando a este satisfação às
suas necessidades narcísicas (projectadas). No entanto, a interacção
familiar poderá organizar-se de modo a negar a existência de
qualquer necessidade de dependência no seu interior. O funcionamento
global das interacções visa a preservação da crença dos seus
participantes, segundo a qual tudo o que tiver sido alcançado na
família resulta exclusivamente da sua própria criatividade,
tendo-se formado sem a menor ajuda por parte do terapeuta. O simples
reconhecimento da sua ajuda já é considerado uma derrota por parte
da família. Neste tipo de organização familiar, a dependência não
é considerada um meio de crescimento e desenvolvimento. Pelo
contrário, vê-se associada à privação e à submissão. Deste
modo, a interacção deverá funcionar como uma reafirmação
constante da autossuficiência dos membros da família. São contidas
as manifestações de sentimentos dependentes tendendo estes a serem
clivados e projectados quer num outro grupo (que a família tratará
com um desprezo triunfante) quer num dos membros da própria família.
Este último irá tornar-se então a expressão viva, a incarnação
em pessoa do fracasso temido. O mesmo membro da família (o paciente
identificado) funcionará também como o espaço do fundo dos
contributos que todos os outros membros querem afastar de si
próprios.
O
comportamento aparente
destes membros da família, quando abordados na terapia, revela-se
uma expressão de falsas identidades que desenvolveram no intuito de
encobrirem a existência em si próprios de necessidades infantis
profundamente enraizadas e de uma intensa rivalidade infantil. O
trabalho terapêutico poderá determinar uma tomada de consciência
de que existe na interacção um modelo defensivo de comportamento
organizado pelas partes com mais fortes laços familiares. Esta
tomada de consciência poderá dar origem entretanto a angústias
persecutórias ligadas ao medo de que a descoberta dos sentimentos
rejeitados transforme os membros da família em figuras ridículas
tornando-os, uns perante os outros, fracos e impotentes.
Quando
a interacção familiar se encontra impregnada de exigências
narcísicas cedendo às pressões das mesmas, o terapeuta perde a
capacidade de realizar uma das suas principais tarefas: a
de funcionar como elemento correctivo que possa confrontar a família
e os seus laços familiares com as suas próprias limitações
indicando também, entre estas, as que a realidade e a necessidade
determinam. Tal
atitude poderá incitar os membros da família a comportarem-se entre
si de modo a provocarem invejas
recíprocas. Uma vez
que a inveja geralmente causa ansiedade, a família unir-se-á em
termos defensivos formando um grupo compacto em torno de um líder.
As atitudes deste último destinam-se a preservar a ilusão de que a
família já conquistou tudo e de que são alvo de inveja e de que
são os seus próprios membros da família o objecto invejável.
Trata-se de um tipo de família que, em geral, procura a terapia por
causa de uma crise, geralmente provocada por um adolescente que,
tentando desesperadamente afirmar a sua própria identidade, se
revoltou contra as normas familiares. Nestas famílias, a abordagem
que o terapeuta faz do sistema rígido de defesas não só faz com
que os seus membros se sintam perseguidos como também considerem o
terapeuta um aliado do paciente identificado. Os membros da família
confrontam-se na sessão com intervenções que visam elucidar o uso
que o líder faz da interacção de modo a conservar a imagem
idealizada da família. Assim a família tenta fixar o terapeuta na
posição do inimigo que inveja a bondade da família (idealizada).
A
interacção familiar poderá organizar-se no sentido de privar um
dos elementos da família de qualquer sentimento de realização. A
realização torna-se propriedade de qualquer outro elemento da
família. Por outro lado, a interacção estimula igualmente a vítima
a lutar pela sua própria realização, já que o resultado
representa uma fonte de satisfação narcísica para todos os membros
da família acabando estes por incorporar o contributo
correspondente. O crescimento e o desenvolvimento concretos do visado
nunca chegam a ser verdadeiramente reconhecidos, uma vez que o
reconhecimento acabaria por provocar no visado uma tomada de
consciência das suas próprias potencialidades de independência.
Habitualmente o visado é mantido na situação de dependência por
meio de ameaças de abandono. Estas ameaças procuram instilar no
visado o sentimento de estar permanentemente em dívida para com a
família. Trata-se de um padrão que pode ser descoberto em famílias
que procuram a terapia porque os filhos não vão bem nos estudos ou
porque decidiram abandonar a família.
4.2 – A família em terapia
Por
muito diferentes que possam ser as famílias encaminhadas para a
terapia familiar, todas elas parecem trazer consigo um padrão
interactivo que se centra no pressuposto de que alguma coisa de mal
se passa com o paciente identificado. Neste sentido, o pedido que é
feito à família de comparecer como família, apesar de inesperado,
é aceite através da antecipação de que o objectivo do terapeuta
será corrigir o que está mal, localizando-se isso numa dada pessoa.
A família tenderá a considerar que não vem realmente para uma
terapia, mas apenas trazer/acompanhar à terapia o paciente
identificado e em tratamento.
A
tomada de consciência por parte dos membros da família terá em
grande medida origem no modo como o terapeuta trata o material
trazido pela família. O
terapeuta empenhar-se-á em retirar o foco da atenção do paciente
identificado deslocando-o no sentido da interacção familiar
de modo a abranger todos os membros da família. O terapeuta sente a
necessidade de forçar nos membros da família a compreensão de que
a família tanto como o paciente identificado se encontram em
terapia. Por vezes passam-se alguns meses até a família reconhecer
isto.
Virgínia
Satir (1967) escreve
que deseja “... fazer
com que a família se dê conta de que estão a trabalhar com um
sistema familiar para o qual cada elemento traz a sua contribuição.”
Tecnicamente o terapeuta tentará abordar todas as contribuições
sem fixar uma hierarquia no que se refere à origem da contribuição.
Assim o material fornecido pelo paciente identificado a respeito dos
outros membros da família e a observação da interacção entre
estes passam a ser o foco de interesse principal. Esta perspectiva
tenderá a aliviar a pressão exercida sobre o paciente identificado
e equilibrará o valor das informações que a este se referem. Don
Jackson
(1967) diz-se disposto a afirmar durante a sessão: “Não
vou acreditar necessariamente no que for dito contra si (paciente
identificado).
Se os seus pais não o compreendem e vice-versa, talvez a culpa não
seja só sua.” Com
esta atitude e outras Don Jackson tenta pôr todos ao mesmo nível.
Karl
Whitaker (1967)
considera que o problema é de ordem estratégica. Dada a necessidade
de um enfoque diferente desviando a atenção do paciente
identificado na direcção da família como um todo, a terapia
familiar está destinada a fazer surgir o confronto. O terapeuta
sente a necessidade de impor regras e condições para a terapia
fixando, por exemplo, quem deve estar presente e quais os requisitos
obrigatórios para a realização da sessão. Usa o seu poder não só
para controlar os membros da família, mas também para os motivar a
aceitarem os encontros na sessão como meio de tratamento de todo o
grupo familiar. Tecnicamente o terapeuta entra em relação primeiro
com um dos membros, depois com outro. Procede por pares e nos termos
das qualidades interactivas recíprocas desta ... Em seguida dessas
díades passa ao todo ... Insiste em manter sempre o todo como alvo
... o modo como aborda o todo verifica-se através deste movimento de
um membro da família para outro ...
A
maior parte das terapias familiares começa por uma longa lista de
queixas a respeito do paciente identificado; queixas, em geral,
apresentadas pelos pais. Deste modo, é difícil para o terapeuta
iniciar o diálogo com a família sem o centrar numa ou noutra das
acusações que lhe são transmitidas (ainda que pretenda apenas
esclarecer a natureza destas.) Frank
Pitman III e
colaboradores (1967) reconhecem este problema e preferem não começar
pelo paciente identificado porque isso iria colocá-lo, logo de
início, na posição de ser ele o problema. Pitman actua de forma a
compensar a pressão que a família exerce no sentido de se
concentrar apenas no paciente identificado. Primeiro,
devemos focar a atenção na pessoa que pareça menos disposta a
reconhecer a sua implicação.
Esta parece ser a maneira mais proveitosa de abalar o quadro que os
membros da família apresentam. A
mudança de foco da atenção
é o passo decisivo no que se refere à caracterização e à
organização da terapia familiar. Espera-se que a mudança de
enfoque crie um movimento orientado para a observação da interacção
familiar tanto por parte do terapeuta como por parte dos próprios
membros da família. Esta mudança está destinada a gerar um
confronto entre a família e o terapeuta.
Num
quadro de referência psicanalítico, o conflito poderá tornar-se
uma rica fonte de esclarecimento e de inteligibilidade quanto à
natureza dos dois aspectos das relações familiares – como objecto
e como estrutura. Isto implica examinar os mecanismos de defesa
inconscientes que actuam na organização da interacção e este
exame representa uma pressão no sentido da mudança que fará com
que a família viva o confronto terapêutico como um ataque e uma
perseguição. Todas as atitudes defensivas inconscientes dos membros
da família ordenam-se de modo a manter o paciente identificado na
qualidade de único campo emocional para o qual o terapeuta deveria
dirigir naturalmente as suas intervenções. A ameaça que o
deslocamento do enfoque representa, intensifica-se pela importância
que o terapeuta dá à interacção. Isto causa uma certa estranheza
às famílias porque estas nunca se puseram em causa enquanto
famílias; não é a
preocupação da família consigo própria, enquanto família, que a
faz comparecer às sessões. A pouco e pouco os membros da família
compreendem que esta significação não é evidente por si mesma e
que terá de ser descoberta. A seguir, começam a tomar certa
consciência de que existe um dado padrão nas suas relações
familiares. Esta descoberta dos vários aspectos da interacção e do
modo como esses aspectos se ligam às diferentes partes das relações
familiares dá origem a toda a espécie de emoções perturbadoras e
de sentimentos dolorosos, mas o movimento global poderá, apesar de
tudo, progredir de tal modo que estimule a tomada de consciência de
que constituem um grupo. Apercebem-se de que possuem uma identidade
enquanto membros de uma família e que esta não pode ser dissociada
do modo como a interacção se foi desenvolvendo. Todos estes
factores se somam fazendo com que a família se sinta cada vez mais
ameaçada. O seu campo emocional fica impregnado de uma ansiedade
persecutória a que a família reage defensivamente. Então os
membros da família irão renovar o pedido de terapia individual
tentando quebrar a terapia familiar. Tentarão negar as descobertas
realizadas acerca do modo como se relacionam entre si visando evitar
qualquer modificação das características da interacção a que se
habituaram. Esforçam-se por manter o paciente identificado como
único alvo da terapia. A interpretação destas defesas poderá
esclarecer, perante os membros da família, os aspectos interactivos
e as relações familiares entre si que estão a evitar ter em conta.
Isso poderá pô-los em contacto com as ansiedades dolorosas que
levaram à formação das referidas defesas. Tal contacto, por seu
lado, poderá levar à organização de novo padrão defensivo: à
escolha de outros membros da família como paciente identificado. A
interpretação do sentido desta nova organização expõe de novo os
membros da família à ansiedade que queriam evitar e faz com que,
uma vez mais, se sintam perseguidos. Este sentimento de perseguição
é exacerbado pela consciência de que os membros da família estão
a tomar o papel que desempenham na manutenção da posição fixa do
paciente identificado. Uma vez implicados na terapia, os membros da
família descobrem também a sua responsabilidade psicológica, além
da responsabilidade social, relativamente ao paciente e começam a
dar-se conta de que toda a família está mergulhada até ao pescoço
numa situação que foram eles próprios a construir em conjunto.
Assim o facto de iniciar a terapia torna a família consciente de
certo número de elementos inesperados que actuam na sua interacção.
Estes elementos provocam emoções poderosas e, como reacção, a
família sente que tais elementos devem ser mantidos fora do campo
terapêutico, resguardados, sem serem postos em causa, formando
fortalezas, aspectos clivados em torno dos quais e para defesa dos
quais se edificam defesas alargadas. A aceitação e o reconhecimento
destes elementos poderá representar no entanto, o primeiro passo no
sentido da tomada de consciência da existência do tipo de relações
familiares existentes nesta família. Este reconhecimento poderá dar
depois lugar à percepção dos modos de funcionamento destas
relações e à necessidade de alguma transformação nas relações
familiares existentes e isto é doloroso e constitui uma fonte de
ansiedade.
Portanto
o início de uma terapia familiar de orientação psicanalítica
torna-se um acontecimento doloroso e dramático. Trata-se talvez do
momento mais difícil e perigoso porque é a altura em que a maior
parte das famílias abandona o tratamento, enquanto o terapeuta
tenderá a deixar de lado o quadro psicanalítico de referências,
comprometendo-se com uma forma de comportamento determinada. Nesta
altura, a família terá já obtido um maior conhecimento da terapia
enquanto processo. Todos estes factores funcionarão como salvaguarda
susceptível de conter as crises eminentes.
Durante
todo o primeiro tempo o terapeuta trabalhará no sentido de conter a
ansiedade crescente recebendo/absorvendo e funcionando como esponja e
não no sentido de desviar. O terapeuta deve saber que a sua presença
está na raiz do processo persecutório e que a sua técnica será
alvo de críticas de toda a espécie. Tentará digerir os conteúdos
nele projectados e interpretar na transparência os determinantes
emocionais da interacção. Há uma enorme pressão no sentido de
fazer o terapeuta agir, de o fazer controlar a interacção, em vez
de se limitar a orientar os conteúdos apresentados. A família quer
que ele resolva os conflitos que a atormentam, em vez de promover a
intraanálise de cada um sobre a natureza dos mesmos. Os membros da
família sentem que a proposta de perspectivas alternativas de exame
do modo de ser que é o seu constitui uma ameaça à hierarquia dos
valores que foram construindo ao longo do seu desenvolvimento. É
difícil para a família confiar no terapeuta porque isso implicaria
também a aceitação das descobertas por ele proporcionadas. A falta
de confiança gera ansiedades persecutórias e sentimentos
paranóides. A capacidade do terapeuta de conter as projecções de
tais sentimentos poderá levar a família a reagir na direcção
oposta, empenhando-se numa idealização excessiva do terapeuta e da
terapia. Este tipo de defesa faz com que a família se torne
extremamente dependente e regressiva e, neste caso, qualquer
experiência de frustração renovará os sentimentos persecutórios.
O campo emocional organizado pela presença e pela actividade
analítica do terapeuta representa um meio de reduzir o bloqueamento,
de estabelecer a mobilização, de atenuar as cisões e de
intensificar a integração.
As
comunicações feitas durante a sessão – a interacção familiar e
a interpretação do terapeuta – são operadas publicamente na
presença de todos os participantes. Este facto pode ser vivido como
uma exposição, uma quebra de sigilo, o que pode causar uma
turbulência emocional correspondente. Com o progresso da privacidade
foi traçada uma linha de demarcação nítida entre as esferas
pública e privada que originou uma mudança evidente nas relações
entre a família e a continuidade circundante e a família actual
reflecte essa transformação e representa-a nas suas formas de
interacção. Tal não significa que a função de utilidade da
família tenha mudado. Ainda se espera que a família desempenhe a
função fundamental da vida humana em termos sociais:
A
função
sexual e reprodutiva
que promove a conservação da espécie;
- A função económica que promove a sua subsistência e progresso espiritual, social, cultural, biológico, grupal;
- A função educativa que preserva os valores, o progresso técnico e a criatividade;
- A função afectiva que é essência da família e que preserva o ser como ser humano.
A
importância da família nuclear deriva do facto de ela ser
actualmente a unidade social mínima responsável pela preservação
de um sistema de valores fundamentais da sociedade. Que sentido
assume a terapia familiar de orientação psicanalítica no quadro de
um sistema de valores em que a privacidade conquistou tamanha
importância?
Há
dois aspectos a ter em consideração:
1º - O terapeuta, um estranho,
invade a interacção familiar. Não é apenas a privacidade de um
grupo que está a ser invadida, mas a privacidade dentro da família
que foi criada entre os seus diferentes membros. A experiência da
terapia familiar pode pôr a descoberto alguns dos aspectos mais
complexos adquiridos pela privacidade dentro do padrão da interacção
familiar. No entanto, a privacidade tem vindo a ser utilizada para
reduzir o contacto entre os membros da família. Há algumas famílias
que declaram que a terapia foi a única oportunidade que tiveram de
se encontrar e estar juntos.
2º - É sabido que tende a
haver confronto entre a família e o terapeuta quando uma e outro se
encontram. Uma das razões do conflito liga-se ao facto de a situação
terapêutica pressionar de certo modo os membros da família no
sentido de intensificarem o seu contacto uns com os outros.
As
intervenções do terapeuta afectam a privacidade familiar nos seus
diferentes níveis:
- A sua privacidade enquanto grupo;
- A privacidade dos seus membros enquanto indivíduos dentro de um grupo;
- A privacidade da família perante a sociedade.
O
terapeuta pode ser considerado pela família como excessivamente
crítico cuja tarefa e interesse se orientam fundamentalmente para a
descoberta, na interacção familiar, das suas falhas e defeitos.
Na
terapia familiar de orientação psicanalítica, espera-se que o
terapeuta aborde a situação trabalhando sobre a transferência,
tentando conter e transformar os sentimentos paranóides e tentando
suportar os ataques que a família lhe dirige. O terapeuta tem ainda
de estar consciente da pressão exercida pela família que tenta
fazê-lo identificar-se com uma imagem idealizada projectada. A
terapia convida os membros da família a examinarem o modo como têm
vindo a usar a privacidade. O profissional assume o controlo da cisão
que está a operar tanto entre a vida pública e a vida privada da
família como no interior da interacção familiar. O terapeuta
desvia o foco do paciente identificado para a família; mas em
seguida aplaca a ansiedade despertada por meio do fornecimento de uma
série de regras, de instruções e tarefas cuja finalidade é
indicar à família como deve passar a ser a interacção e como deve
esta desenrolar-se. Esta negociação significa que o terapeuta terá
optado por actuar como fonte que põe em questão o tipo de relações
desenvolvidas pela família.
O
terapeuta que opta por um referencial teórico de orientação
psicanalítica decide-se por um tipo diverso de intervenção. O seu
objectivo não será a modificação do comportamento. A tarefa que
se propõe é a instalação de um quadro que torne possível a
revelação e o desdobramento das características das partes das
relações recíprocas na família.
A
terapia familiar é uma prática peculiar e perturbadora que estimula
no terapeuta sentimentos muito contraditórios. Perante cada
acontecimento, o terapeuta vê-se atraído nas mais diversas
direcções em resultado das características das relações
recíprocas dentro da família em análise e dos conceitos-padrões
que o terapeuta não pode deixar de não ter. A sua margem de acção
é muito limitada. A menos que saiba bem no que está a implicar-se,
o terapeuta poderá achar-se perdido no meio da turbulência da
situação e actuar de modo selvagem e indiscriminado.
PARTE
II
”A
terapia familiar descobriu que é imperioso juntar dois irmãos
solidariamente, até à data muitas vezes desavindos: o saber-fazer
e o saber-pensar.
Além disso, é urgente também pedir a ajuda e orientação do
terceiro irmão – o saber-dialogar.
Este é o caminho para alcançar a maturidade que deseja que nunca
venha a ser completamente alcançada ... para não cair na tentação
de se acomodar e acreditar que já sabe tudo.”
Ana
Paula Relvas
in Por
detrás do espelho
5. A História da Terapia Familiar
A
terapia familiar desenvolve-se nos Estados Unidos a partir dos anos
cinquenta do século passado num contexto de mudança de paradigma
do pensamento analítico ao pensamento sistémico, inerente à
complexidade (Morin, 1988). Como modelo de acesso à compreensão da
complexidade e ao conhecimento do real como um todo, tem como
corolário que é
preciso reunir para compreender.
É então inevitável a colocação do acento tónico no estudo das
relações e interacções, pelo que a causalidade linear perde
sentido sendo substituída pela causalidade circular. Em
consequência, é impossível isolar o indivíduo do seu meio: ambos
evoluem simultaneamente e mudam reciprocamente. Assim a importância
do contexto torna-se mais clara; a noção de coevolução é
determinante. (Bateson, 1987)
No
estudo da interacção, toma forma a teoria ecossistémica da
comunicação. Dá-se a migração de conceitos de outras áreas do
conhecimento para a psicologia e psiquiatria, (Gameiro, 1992)
concretamente da teoria geral dos sistemas, (L. von Bertalanffy) da
cibernética (N. Wiener, H. von Foerster) e da teoria da comunicação
humana (vertente pragmática, G. Bateson e Grupo de Palo Alto, EUA).
Na integração desses conceitos encontra-se a primeira matriz
unificadora do movimento científicoclínico denominado terapia
familiar, o qual se assumia como representante do novo paradigma.
A
outra matriz unificadora desse movimento é a importância atribuída
à família como micromeio primário natural do indivíduo. As
teorias da psicologia individual, particularmente a psicanálise,
começam a considerar esse aspecto. Em síntese, a terapia familiar
constitui-se reunindo estas duas matrizes. A família é o seu
objecto. Vai buscar à teoria geral dos sistemas a sua noção
básica, isto é, a noção de sistema que aplica tanto à
compreensão da família como ao próprio processo terapêutico. Da
cibernética retira os conceitos explicativos da regulação,
funcionamento e evolução do sistema familiar (mecanismos de
homeostase/feedback
negativo e de morfogénese/feedback
positivo) tanto no sentido da explicação da normalidade como da
patologia. Isto implica que não haja diferença qualitativa entre
normal e patológico. Finalmente às teorias da comunicação,
nomeadamente à vertente pragmática ecossistémica, vai buscar a
grelha de análise para a compreensão e intervenção sobre o que se
passa na família em termos de interacção, ou seja, nas relações
entre os membros do sistema e deste com a sociedade.
Os
pioneiros da terapia familiar foram:
Milton Erickson
(1901-1980) – psiquiatra americano com importante carreira
universitária, desenvolveu a hipnose clínica e terapia assente numa
invulgar intuição terapêutica.
Gregory Bateson
(1904-1980) – inglês com formação tradicional académica em
biologia, especializou-se em antropologia e etnologia. Desenvolveu um
interesse especial pela cibernética, especializando-se em sistemas e
mecanismos de retroacção. Em 1959, iniciou as investigações sobre
metacomunicação e dedicou-se à etologia.
Grupo
de Palo Alto nos EUA
– Jay Haley, John Weakland, Bateson, Don Jackson, Virginia Satir,
Paul Watzlawick. Podemos encontrar três orientações básicas na
investigação conduzida por este grupo:
1. A partir de 1949 - estudo da
comunicação humana centrado nos trabalhos e autores referidos;
2. Em 1959 - Don Jackson funda
Mental Research
Institute
(MRI) consagrado à
investigação, formação de terapeutas e prática do trabalho
clínico com famílias;
3. Em 1967 - é criado por R.
Fish, J. Weakland e P. Watzlawick o Brief
Therapy Center
para investigação das ideias estratégicas ericksonianas. Em 1962,
Bateson abandona Palo Alto e em 1968, Jackson morre e o grupo foi
perdendo o seu dinamismo.
Salvador
Minuchin apresenta a
obra de Celia Falicov
com a seguinte parábola
sobre o nascimento e primeira infância da terapia familiar:
A
Terapia Familiar nasceu nos fins da década de 1950. Como todo o
nascimento humano foi produto da união de duas famílias. Famílias
muito distintas na verdade: diferiam geograficamente assim como nas
suas tradições, rituais, linguagens, mitos e estilos cognitivos.
Uma
delas – a materna? – tinha velhas raízes no Nordeste. Era uma
família numerosa com muitas tias, tios e primos quase todos eles
vinculados ao meio universitário e indubitavelmente ao
establishment.
Os seus nomes formavam uma legião: Ackerman,
Bowen, Whitaker, Wynne, Fleck, Bell, Auerswald, Minuchin.
As crenças desta família constituíam uma continuação dos
sistemas de crenças psicodinâmicos, é claro que com modificações,
conflitos e desafios; mas o diálogo e a sua linhagem não davam
lugar a dúvidas: a influência do passado sobre o presente; a
importância de dominar certas experiências em determinadas etapas
para alcançar um domínio conseguido e harmonioso das seguintes ...
Poder-se-ia dizer que os conceitos evolutivos influenciavam o
pensamento e crenças de todos os seus membros por intermédio de
Freud, Sullivan,
Erickson ou mesmo
Piaget,
tios-avós cujos retratos se podiam ver ainda nos seus gabinetes.
Este ramo da família acreditava, de resto, na importância das
emoções, dos processos inconscientes ou involuntários e em
acontecimentos cataclísmicos como o nascimento, a morte, a cólera
assassina, o sexo e o incesto, a razão e a sem razão. Às vezes
todas estas crenças misturavam-se de formas estranhas e
desconcertantes.
Além
disto, tinham um modo de pensar minucioso: centravam a atenção nos
detalhes explicando sempre a raíz e a causa dos factos; buscavam
geralmente as suas causas no passado. Era certo sentirem-se esmagados
por todas estas crenças e indagações minuciosas e estavam
dispostos a acolher novas ideias, novas linguagens e novos mitos. Na
realidade, iniciaram a sua própria busca, mas os velhos sistemas de
crença permaneceram ali submersos, mas influentes; umas vezes
apareciam à luz do dia e outras vezes conservavam-se como parte da
bagagem guardada na despensa.
A
família da costa Oeste era diferente. Era constituída por rebeldes
e revolucionários. Antes de mais, rejeitavam a sua linhagem e
declaravam ter nascido já completos do ventre de Bertalanffy,
Weiner, Bertrand Russell
... Seleccionaram para pais linguistas, teóricos da comunicação,
místicos e filósofos enquanto apedrejavam psicólogos e psiquiatras
antiquados e queimavam os seus templos como castigo pelos seus velhos
pecados.
O
primeiro a incorporar-se por eleição absoluta foi Bateson,
o avô e líder do bando de jovens turcos. Com ele vieram os outros
membros da família mais chegada: Jay
Haley, Weakland, Jackson, Virginia Satir.
Outros se lhes juntaram:
Watzlawick, Fish,...
Tinham a vantagem de viver todos juntos num grande castelo em Palo
Alto. A partir daí empreenderam o seu bem sucedido ataque contra a
verdade estabelecida, proclamaram a relatividade de toda a verdade e
iniciaram a construção de um novo sistema de crenças que teria a
vantagem de não estar enraizado em questões sociais.
Elaborou-se
uma linguagem diferente: homeostase, entropia, mudança de primeira e
de segunda ordem, laço de realimentação recursiva, duplo vínculo.
Com ela escreveram-se novos conceitos. Entusiasmada com o som desta
nova linguagem, a família desejava que a família humana se
organizasse, adaptando-se às suas harmonias.
Assim
nasceu a Terapia
Familiar. No momento
do seu nascimento, os membros de ambas as famílias sorriram – como
fazem todas as famílias nestas ocasiões – e formularam votos de
que a recém-nascida fosse um motivo de orgulho para eles. É claro
que, quando nasce o primeiro neto, sempre há rivalidades e
competição entre as famílias. Jay Haley convidou Milton para o
baptismo; era um convidado bastante estranho que pertencia a ambas as
famílias sem, no entanto, pertencer a nenhuma. Milton sorriu com ar
de mistério.
A
Terapia Familiar mamou de ambos os peitos e cresceu dividida. À
medida que se foi desenvolvendo coligou-se por vezes com a família
da costa Oeste e outras com a família da costa Nordeste como
costumam fazer as crianças. Com cada coligação adquiria maior
competência nalguns campos e, em igual proporção, tornava-se mais
incompetente noutros. Além disso, começou a conhecer e a
diferenciar tias e tios e descobriu que esse grupo, que ao princípio
lhe havia parecido uma família homogénea, era na realidade um
conglomerado, um fundo alegre e turbulento de parentes estreitamente
unidos e, algumas vezes, renitentes nas suas opiniões. (...) Em
ambos os ramos abundam alianças, coligações e paradoxos ... como
em qualquer família.
Quando
a Terapia Familiar começou a ir à escola, algumas vezes utilizava a
linguagem da costa Oeste tão rica em termos universais e outras
vezes a linguagem da costa Nordeste, tão enraizada em termos
particulares. Claro que muitas vezes se gerava confusão. Umas vezes
quando dizia neutralidade
parecia significar algo diferente; tal como quando a tia Mara diz aos
pais para irem ao cinema juntos, mas para não contarem aos filhos o
conteúdo do filme. E quando a Terapia Familiar se divertia a repetir
o termo provocazione,
uma palavra frequentemente usada pelo primo Maurizio (que vive em
Itália, mas não em Milão) por vezes queria dizer simplesmente
provocação enquadrada num campo de aceitação, o que parecia
significar a mesma coisa que neutralidade, mas talvez fosse diferente
em Milão. E a Terapia Familiar foi aprendendo cada vez mais palavras
e cada vez ficava mais entusiasmada com a sua sonoridade.
À
medida que se ia aproximando da adolescência começou a descobrir
que as duas famílias tinham aprendido uma com a outra, embora se
recusassem a admiti-lo. Por isso davam nomes diferentes a conceitos
que tinham aprendido com o outro ramo da família. As novas etiquetas
eram geralmente mais complexas do que os velhos conceitos, pois os
seus novos donos ainda não estavam familiarizados com eles como os
velhos. E a Terapia Familiar, tal como fazem os adolescentes mais
velhos e os jovens adultos, cansou-se desta disputa familiar, pois
sabia que as famílias fazem simplesmente aquilo que têm de fazer.
Também sabia que o processo de integração vai estar nas mãos dos
filhos que sabem que os avós são simpáticos, mas não compreendem
o mundo.
Já
adulta, a Terapia Familiar avaliou o seu património e descobriu que
era rica em teoria dos sistemas e na terminologia que não parava de
aumentar; também tinha um repertório muito rico de técnicas de
mudança das famílias, técnicas que estavam agora disponíveis para
todos os membros da família no Oeste e no Nordeste, Canadá, Europa,
Roma, Milão, América do Sul e mesmo Japão. Descobriu que o que a
apaixonava agora era observar os contextos familiares – o sistema
social, o hospital, o tribunal, o sistema de segurança social – e
compreendeu que sempre tinha querido dedicar-se à política.
Uma
coisa preocupava a Terapia Familiar. Apesar de ter todo este
conhecimento e todos estes sonhos, não conhecia realmente as
famílias. Ela própria se tinha desenvolvido numa família
entusiasmada com o novo e, neste processo, a trabalhosa exploração
detalhada das particularidades das famílias tinha-lhe escapado. E
assim, com a calma que caracteriza a maturidade, (...) as
diferentes visões do mundo são por ela bem recebidas na busca de um
objectivo comum que transcenda as escolas particulares.
(Minuchin
in Falicov, 1988)
Na
década de setenta do século passado, a terapia familiar é
introduzida em Portugal: em 1977, Pina
Prata promove o I
Encontro de Terapia Familiar e em 1979, é criada a Sociedade
Portuguesa de Terapia Familiar
com objectivos de formação, investigação e prática clínica.
Saliente-se
porém, que a expansão da terapia familiar não se limitou ao âmbito
geográfico. Verificou-se também no âmbito das temáticas de
investigação e intervenção, ultrapassando a focagem na família
para se interessar por outros sistemas sociais e suas inter-relações.
O estudo das relações família/escola e dos grandes sistemas ou
organizações numa perspectiva sistémica são exemplos do que se
acabou de afirmar.
Hoje
em dia, a terapia familiar pode ser caracterizada assim: “integra
uma epistemologia, um corpo teórico e uma abordagem terapêutica. A
epistemologia é circular, não causalista e sistémica. Estipula que
os problemas humanos não têm só um sentido, mas têm também uma
função no contexto mais alargado em que ocorrem. (...) Nesta
perspectiva, seria mais adequado falar de análise (nível teórico)
ou de terapia sistémica (nível terapêutico) do que de terapia
familiar, uma vez que a família é um sistema de sistemas (...) O
terapeuta pontua o sistema em que tem necessidade de intervir em
função do contexto em que o sintoma surge. Isto permite diferenciar
a terapia familiar sistémica de outras terapias familiares não
sistémicas.”
(Benoit e col.,1988:514)
6. Terapia familiar na abordagem sistémica
Com
o desenvolvimento da terapia familiar foram surgindo diversas escolas
e modelos de intervenção. Enraizando-se mais profundamente nos
contributos da teoria geral dos sistemas e nos conceitos a partir
dela desenvolvidos tais como as noções de sistema, finalidade do
sistema, hierarquia sistémica, regulação do sistema; a escola
estrutural de Salvador
Minuchin enfatiza a
ideia de organização estrutural do sistema familiar e sublinha a
necessidade de reestruturação do sistema através da realização
de operações de reestruturação da sua estrutura. A escola
estrutural chama claramente a nossa atenção para a importância de
considerarmos a etapa de desenvolvimento familiar na avaliação da
funcionalidade familiar (Minuchin, 1979; Minuchin e Fishman, 1988).
A
família é um sistema aberto e, portanto não pode ser estático.
São as ideias de Maturana
e Varela
que vão dar um contributo decisivo para a compreensão de como é
que os sistemas se transformam (mudam) mantendo, no entanto, a sua
identidade. A nova sistémica está a construir um diálogo diferente
sobre o indivíduo, sobre a relação entre os indivíduos e sobre os
processos mentais. É uma outra história (de entre várias
possíveis) aquela que a sistémica agora conta a propósito das
relações que se tecem entre os indivíduos, as famílias e os
outros sistemas. A realidade, passada ou presente, não existe
enquanto tal, não é uma sucessão de factos objectivamente
relatáveis, mas é sobretudo um conjunto de significados em
implícita interacção consigo próprio e com os outros, isto é,
com os significados deles. Assim o presente não é uma dedução
lógica do passado e outros significados e outras construções podem
ser realizadas. Esta é, sem dúvida, uma das funções do outro
na nossa vida: a de nos abrir a novos significados, a novas
construções. Só a diferença produz informação (Bateson, 1987),
isto é, só da diferença (relativa) surgem as flutuações que nos
podem conduzir a um novo significado, a uma nova história. São as
várias histórias, nossas e dos outros, que vão criando a nossa
História; como é ela também que nos permite criar as nossas. Na
sua intervenção, um terapeuta não pode então negar a dimensão
histórica do sistema que está a conhecer e com o qual vai trabalhar
seja a nível individual, familiar ou institucional, mas também não
pode olhar para a história do sistema como a explicação da sua
configuração actual, das suas competências e das suas dificuldades
porque esta é uma das histórias possíveis. Uma família
sintomática é uma família cuja História está congelada,
desvitalizada: a história oficial que esta família conta está
impedindo a evolução do sistema, o crescimento dos elementos da
família. O terapeuta não pode apropriar-se dessa história para
modificá-la. Tem apenas de ocupar um lugar a partir do qual possa
abrir espaços para a emergência de novas narrações a construir
pela família (Droeven e Najmanovich, 1997). A sua função não é,
pois descobrir-sintetizar-prescrever
(a mudança), mas antes investigar–sugerir–reorganizar–sugerir
de novo... até
que uma nova história apareça. Nem o terapeuta nem a família podem
vangloriar-se da autoria dessa emergência: ela produziu-se nos
interstícios que ambos conseguiram criar...
À
terapia familiar podem ser atribuídas as seguintes características:
- Uma posição observante que inclui o terapeuta e o seu contexto;
- Uma estrutura colaborativa e não uma estrutura hierárquica;
- Objectivos centrados na mudança de contextos mais do que em mudanças específicas comportamentais e estruturais;
- Limitações à instrumentalidade técnica do terapeuta;
- Uma compreensão circular do problema;
- Um ponto de vista sobre o problema que implica ausência de juízos de valor.
Pode-se
ainda e complementarmente, redefinir alguns conceitos (Baños et
al., s/d):
Resolver
vs. Situar. Na
terapia, em primeiro lugar, deve-se formular o problema, isto é,
situá-lo num quadro de referência. Para isso aceita-se como ponto
de partida a informação que o sistema oferece prosseguindo com a
sua transformação e redefinição sem procurar resolver o quer que
seja.
Instruir
vs. Conversar. Os
sistemas são máquinas não-triviais (von Foerster), pelo que não
faz sentido preparar estratégias ou instruções com objectivos, mas
sim estabelecer um diálogo ou conversação que será utilizado para
que o sistema se transforme a si mesmo. Não pode haver pressa ou
prazo na mudança.
Actuar
vs. Reflectir.
Reflectir é aceitar o que o sistema oferece para desenvolver
hipóteses que explicam diferenças e criam distinções através de
sucessivas perturbações (reflexibilidade).
Localizar
vs. Globalizar. A
avaliação dos sistemas deve estender-se das relações locais a
contextos mais amplos (sistema significante) no respeito pela
ecologia do problema.
Planear
vs. Potenciar.
Atendendo à imprevisibilidade da mudança é necessário definir uma
posição em que se potencializem as capacidades autocurativas do
sistema, (possibilidade de enfrentar qualquer alternativa) evitando
os desencadeamentos que, na opinião do terapeuta, possam ser
prejudiciais e promovendo os que podem vir a ser utilizados de modo
eficaz pelo sistema.
Morin
(1987) definiu organização
como a disposição de
relações entre indivíduos que produz uma unidade complexa ou
sistema, dotada de qualidades desconhecidas ao nível dos indivíduos,
isto é, a organização é o que garante solidez e durabilidade às
inter-relações dentro do sistema, apesar de todas as perturbações
aleatórias que o mesmo possa sofrer. A organização, ao criar uma
unidade (sistema) a partir da diversidade (elementos do sistema),
cria ordem onde há desordem; mas origina também rápidas desordens
(entropias), já que toda a organização supõe a desorganização
como correlativa e a sua reorganização (neguentropia). Para Morin o
todo não é mais do que a soma das partes, mas sim é, ao mesmo
tempo, mais e menos do que a soma das partes; pois toda a organização
implica o aparecimento de propriedades emergentes no todo e nas
partes (propriedades que não estão presentes em cada um dos
elementos considerados isoladamente), também ela obriga a
constrangimentos, a perdas no grau de liberdade das partes, à
inibição de certas potencialidades (pelo que a relação constrange
alguma propriedade de cada elemento).
Podemos
entender família
como um sistema
autoorganizado que aceita um conjunto finito de transformações
estruturais conservando sempre a sua organização.
As dificuldades das famílias face às crises e os pedidos de
intervenção surgem quando aquela sente ameaçada a sua organização.
As implicações práticas desta nova formulação são
extraordinárias, pois permitem compreender as razões pelas quais as
famílias não aceitam todas as propostas de transformação mesmo
que elas pareçam adequadas à sua própria evolução.
Assim
a família é um espaço privilegiado para a elaboração e
aprendizagem de dimensões significativas da interacção: os
contactos corporais, a linguagem, a comunicação, as relações
interpessoais. A família é ainda um espaço de vivência de
relações afectivas profundas: a filiação, a fraternidade, o amor,
a sexualidade ... numa trama de emoções e afectos positivos e
negativos que, na sua elaboração, vão dando corpo ao sentimento de
sermos quem somos e de pertencermos àquela e não a outra qualquer
família. A família é também um grupo institucionalizado,
relativamente estável e que constitui uma importante base da vida
social. Gameiro
(1992) afirma que “a
família é uma rede complexa de relações e emoções na qual se
passam sentimentos e comportamentos que não são possíveis de ser
pensados com os instrumentos criados pelo estudo dos indivíduos
isolados. Conceitos importantes como o de personalidade não são
aplicáveis ao estudo da família. A simples descrição dos
elementos de uma família não serve para transmitir a riqueza e a
complexidade relacional desta estrutura”.
A
família pode ser considerada como um sistema, pois tal como qualquer
outro também ela:
- é composta por objectos e respectivos atributos e relações;
- contém subsistemas e é contida por diversos outros sistemas ou suprassistemas, todos eles ligados de forma hierarquicamente organizada;
- possui limites ou fronteiras que a distinguem do seu meio.
O
que define (ou caracteriza) e delimita todos estes sistemas
(família(s), escola, trabalho dos pais, comunidade) e subsistemas
são os papéis e funções, as normas e os estatutos ocupados pelos
indivíduos. A clara delimitação destes limites interaccionais
permite a cada um, em cada momento e em cada espaço saber o que pode
ele esperar dos restantes e isto com a margem de variação que a
complexidade e a tolerância humanas permitem.
A
vida da família é algo mais do que a soma das vidas individuais dos
seus objectos, pelo que tem sentido observar a interacção e
equacionar o seu desenvolvimento como sistema total. Podemos aplicar
à família vários corolários:
- corolário da não-somatividade – não podemos reduzir a família à soma dos seus elementos nem das suas características;
- corolário da impossibilidade de estabelecimento de relações unilaterais – o comportamento de cada um dos seus membros é indissociável do comportamento dos restantes e aquilo que lhe acontece afecta a família no seu conjunto tanto ao nível dos indivíduos como das relações do sistema.
Dadas
as trocas que a família estabelece com o exterior, ela é um sistema
aberto: do exterior recebe um conjunto de influências ao mesmo tempo
que influencia o exterior. Na sua evolução, porém o sistema
familiar vai regulando esta abertura ao exterior ora fechando-se ora
abrindo-se de acordo com as suas necessidades e as suas
características. É importante compreender que, apesar do sistema
familiar ser autónomo, não despreza a relação que tem
relativamente aos restantes sistemas. Como diz Morin
(1992): “A noção
de autonomia humana é complexa, pois ela depende de condições
culturais e sociais. Para sermos nós próprios é necessário que
aprendamos uma língua, uma cultura, um saber e é necessário que
essa cultura seja variada para que possamos fazer uma escolha no
stock das ideias existentes e para que possamos reflectir de forma
autónoma. Esta autonomia alimenta-se, pois de dependência. A
inteligibilidade do sistema deve ser encontrada não apenas no
próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente
sendo que, esta relação não é uma simples dependência, mas é
constitutiva do próprio sistema”.
Também
no interior da família existem totalidades – os subsistemas –
elas próprias partes do todo familiar. É na medida em que cada
unidade sistémica é simultaneamente parte e todo que podemos
trabalhar sistemicamente apenas com uma pessoa e fazer terapia
familiar apenas com um dos seus elementos, tendo como objectivo
ajudar o próprio a compreender o que de si está no todo e o que do
todo está em si, bem como pensar com ele de que forma é que esse
circuito de interacções lhe permite ou não desenvolver-se de forma
gratificante e nutriente.
As
interacções que se desenvolvem entre os vários elementos de uma
família organizam-se em sequências repetitivas de trocas verbais e
não verbais que se vão construindo no dia-a-dia familiar como
resultado de adaptações recíprocas, implícitas e explícitas
entre os seus elementos.
Dois
sistemas de forças revelam-se importantes para a organização e
manutenção destas interacções:
- 1º sistema compreende as regras universais de organização da família (por exemplo: a hierarquia de poder e a autoridade pais-filhos, a complementaridade entre marido e esposa);
- 2º sistema compreende as expectativas específicas de cada sistema familiar cuja origem se perde em anos de negociações explícitas e implícitas, muitas vezes já esquecidas.
A
este modelo de relações Minuchin
(1979) designa por estrutura
e define-a como a rede
invisível de necessidades funcionais que organiza o modo como os
membros da família interagem.
A estrutura da família corresponde à imagem que podemos ter do
funcionamento deste grupo tendo em conta os seguintes parâmetros:
quem, com quem, para fazer o quê, como, quando e onde?
Como
os diferentes elementos do sistema familiar se organiza em
subsistemas, temos que o subsistema individual é composto pelo
indivíduo que, para além do seu estatuto e função familiares, tem
também funções e papéis noutros sistemas. Esta dupla pertença
cria-lhe um dinamismo que se repercute naturalmente no seu próprio
desenvolvimento e na forma como ele está em cada um desses
contextos. O facto de os subsistemas terem funções diferentes, mas
estreitamente relacionadas na família; de as mesmas pessoas poderem
pertencer simultaneamente a diferentes subsistemas e de a estrutura
familiar variar, de forma adaptativa, ao longo do ciclo de vida da
família; tudo isto torna necessariamente vital a definição clara
de limites e fronteiras. Os limites
permitem regular a passagem de informação entre a família e o meio
assim como entre os diversos subsistemas. Os limites visam proteger a
diferenciação do sistema e dos seus membros. Com efeito, o
desenvolvimento das competências interpessoais adquiridas nos
subsistemas depende do grau em que cada subsistema mantém a sua
autonomia, protegendo-se da ingerência dos restantes. Minuchin
(1979) distingue três tipos de limites:
- Limites claros – que delimitam o espaço e as funções de cada membro ou subsistema permitindo contudo a troca de influências entre os mesmos;
- Limites difusos – são marcados por uma enorme permeabilidade que faz perigar a diferenciação dos subsistemas;
- Limites rígidos – que dificultam a comunicação e a compreensão recíprocas.
Salvador
Minuchin coloca as
famílias num continuum
em cujos pólos opostos disfuncionais se encontram as famílias
emaranhadas
e desmembradas.
As
famílias emaranhadas
caracterizam-se por um movimento relacional centrípeto e um mito
familiar de unidade que tolera poucas diferenças na individuação.
Entende-se por mito
familiar segundo
Ferreira
um conjunto de crenças
bem sistematizadas e partilhadas por todos os membros da família
dizendo respeito aos papéis mútuos na família e à natureza da sua
relação. Os mitos
familiares contêm numerosas regras mascaradas da relação, regras
que se mantêm dissimuladas sob a ganga trivial das rotinas e
lugares-comuns (clichés) da família.(Ferreira in Benoit e col.,
1988:345)
Os
mitos existem em todas as famílias, mas nas disfuncionais tornam-se
mais evidentes e abafantes deixando aos indivíduos uma pequeníssima
margem de manobra para que aqueles sejam colocados em questão. Assim
nesta famílias parece que se vive pelos mitos e para os mitos. Outra
questão importante na patologia destas famílias: o conflito de
interesses e objectivos grupais e individuais. Também os papéis
familiares são rígidos e os sintomas podem ser muitas vezes de tipo
psicossomático. Frequentemente um dos pais está sempre
desautorizado pelo outro, as fronteiras entre gerações e indivíduos
são difusas, mal definidas por oposição à fronteira exterior,
normalmente rígida. Portanto são sistemas relativamente fechados e
isolados em relação ao meio.
As
famílias
desmembradas, ao
contrário, tendem a ser excessivamente abertas e apresentam um
movimento relacional centrífugo. Tendem a expulsar precocemente os
seus membros para a vida social sem os dotar de um modelo de
adaptação bem definido. Os papéis parentais são instáveis,
apesar da sua aparente rigidez. A entrada de crianças na vida
social, para além de precoce, é conflitual. Os sintomas são
frequentemente de carácter psicossocial (delinquência,
prostituição, gravidezes precoces,...), centrando muitas vezes
sobre si a atenção de múltiplos interventores sociais. Estes dois
extremos têm muito mais a ver com uma questão cultural em sentido
lato e de cultura organizacional da família, em particular e não
tanto a ver com questões socioeconómicas diferenciadas
associando-as aos níveis mais baixos da sociedade.
6.1. Autoorganização e mudanças
Partindo
dos seus estudos sobre a termodinâmica do não-equilíbrio,
Prigogine
mostrou que o equilíbrio das estruturas de sistemas abertos que
produzem entropia, mas que se autoorganizam; não é estático, mas
sim dinâmico estando constantemente exposto a flutuações internas
e externas. A família enquanto sistema autoorganizado está então
sujeita a flutuações permanentes que, ao atingirem determinada
amplitude, a conduzem a um ponto crítico para lá do qual ocorre uma
mudança de estado cuja direcção é, à priori, imprevisível. A
reestruturação do sistema é inevitável ainda que previamente
desconhecida na sua configuração. A mudança é descontínua e
entendida como uma ruptura processual imprevisível e irreversível.
Diferenças aparentemente pequenas podem então provocar resultados
qualitativamente diferentes, isto é, uma pequena variação num dos
parâmetros do sistema pode constituir, num determinado momento, uma
perturbação crítica suficiente para que o mesmo sistema se
rearranje de forma totalmente nova. Para que a mudança ocorra, o que
é importante é o acumular de dissonâncias que forcem o sistema no
seu todo a uma situação extrema, isto é, a um estado de crise.
Dell
(1982) com o seu conceito de interdependência através do qual todos
os aspectos de um sistema se complementam em termos de funcionamento
afirma-nos que o sistema familiar muda e transforma-se porque contém
em si mesmo essa capacidade e não porque o meio envolvente lhe
provoca uma mudança. Para Dell, o sistema não está separado do seu
meio, antes forma com ele outro sistema. Assim os inputs
do meio são internos ao funcionamento deste novo sistema pelo que
não é o meio que muda o sistema, mas é o sistema/meio que tem
flutuações próprias do domínio da sua coerência organizada.
Deste modo, se o observador considerar um paciente em terapia em
termos da sua coerência particular ele não considerará que o
paciente está a resistir à mudança, mas que está a ser
simplesmente ele próprio. Nem
o terapeuta nem o indivíduo ou a família podem controlar o que vai
acontecer. O
resultado da mudança dependerá do sentido da coerência que a mesma
tenha para o sistema familiar e da informação que recursivamente
nele circula. Desta forma, Dell fala-nos da coevolução das
coerências do indivíduo e dos sistemas mais amplos a que pertence
que se faz de forma complementar considerando que, para conseguir
despertar os comportamentos dos membros da família que mudam o
sistema, o terapeuta tem de usar comportamentos diferentes dos que já
são usados dentro do sistema. Toda a família está sujeita a dois
tipos de pressão:
- Pressão interna – que resulta das mudanças inerentes ao desenvolvimento dos seus membros e dos seus subsistemas;
- Pressão externa – que está relacionada com as exigências de adaptação dos mesmos às instituições sociais que sobre eles têm influência.
Qualquer
uma das situações vai solicitar ao sistema familiar uma
transformação dos seus padrões de interacção de forma a que o
próprio sistema evolua sem fazer perigar a sua identidade e
continuidade.
Na
vida de um sistema familiar podem ocorrer crises naturais e crises
acidentais. As crises
naturais são
esperadas e previsíveis e estão associadas às diferentes etapas do
seu ciclo vital. As crises
acidentais ocorrem
inesperadamente e por isso assumem normalmente um carácter mais
dramático. A crise surge porque o sistema se sente ameaçado pela
imprevisibilidade que a mudança comporta. Apesar de poder sentir, de
uma forma mais ou menos intensa, essa necessidade de transformação,
de alteração do seu padrão habitual de funcionamento, o sistema
teme o desconhecido e, por isso mesmo, tem tendência a ancorar-se no
padrão de relações que conhece, isto é, que desenvolveu até
então e a bloquear a amplificação das flutuações que lhe
permitirá a transformação. O sistema pode então optar por uma de
duas hipóteses: ou foge à mudança ameaçando a sua evolução e,
em última análise, o seu equilíbrio e a sua própria vida ou
transforma-se correndo o risco de crescer sem saber exactamente como.
Na
forma como se coloca face à crise, o sistema familiar tem de
compreender que aquilo que a crise solicita e exige é, com efeito, a
transformação do modelo relacional existente e não a reparação
de um ou outro aspecto menos satisfatório. É importante realçar
que a crise é sempre resolvida no presente. No entanto, para o
fazer, o sistema tem de equacionar simultaneamente elementos do
passado e elementos do futuro: a sua coerência exige essa
continuidade entre a estrutura passada e a que se encontra em vias de
elaboração. Muitas pessoas aterrorizam-se perante a necessidade de
mudança e querem impedi-la e por isso experimentam o estado de
crise. É importante neste processo que o meio, nomeadamente os
terapeutas ajudem o sistema familiar a enfrentar a crise e a
desenvolver as mudanças necessárias. É óbvio que os terapeutas
não podem dizer à família o que deve fazer, mas podem ajudá-la a
amplificar as suas flutuações de tal forma que a mudança se torne
irreversível e surja novo padrão relacional. Na resolução da
crise é extremamente importante o grau de flexibilidade com que o
sistema familiar a enfrenta.
A
crise põe em questão o equilíbrio alcançado pelo sistema. Quando
este é rompido ou questionado pela introdução de novos dados,
internos ou externos, o sistema tem de operar as transformações
necessárias à sua nova adaptação ou, se quisermos, ao seu novo
equilíbrio.
Sistemas
rígidos frenam a capacidade adaptativa e dificultam a evolução.
Nestes casos, a família mostra uma grande dificuldade em coevoluir
no processo iniciado pela mudança e transforma a crise numa avaria.
“curem-no para que
fique como dantes; para que possamos voltar a ser a família que
éramos.” Sem
menosprezar o sintoma apresentado, o trabalho do terapeuta sistémico
consistirá em procurar a crise escondida por detrás da avaria. Esta
é uma tarefa árdua quando o sistema inclui, para além da família,
os vizinhos e o sistema hospitalar.
No
entanto, a crise em si não é má, ela é a porta de entrada da
mudança. A crise permite que as mudanças se instalem de forma mais
profunda e mais eficiente devido ao necessário rearranjo das
relações familiares que impõe à família. A terapia familiar da
crise é então uma estratégia de intervenção que tem como
objectivo evitar a hospitalização, apoiando a família e ajudando-a
a ultrapassar o problema que motivou o contacto com o hospital ou o
serviço médico. Insistindo na responsabilidade de cada pessoa
relativamente às suas próprias acções, este tipo de intervenção
dá apoio emocional a cada uma delas e a alguns membros da família
são prescritas
tarefas específicas
destinadas a
introduzir novas estratégias de resolução de problemas no seio do
sistema familiar.
Por
outras palavras, o sintoma surge quando a família fica bloqueada no
seu processo evolutivo quando, perante as dificuldades, utiliza a
mudança 1 como tentativa de as ultrapassar, instalando-se um jogo
transaccional que tem como efeito a manutenção do problema. O
trabalho do terapeuta é então identificar o problema e fazer o seu
reenquadramento (1ª fase da terapia ou de análise do problema) para
depois provocar uma mudança 2 que quebre o jogo transaccional que o
mantém (2ª fase da terapia ou fase activa).
Para
que a mudança se processe, o terapeuta utiliza uma metodologia que
pressupõe algumas regras (procurar o como
do problema, virar as costas ao bom-senso,
romper o jogo transaccional) das quais derivam as técnicas a
aplicar. Neste sentido, há uma tendência para associar a terapia
estratégica às
técnicas paradoxais, afinal as que mais facilmente cumprem essas
regras para além de serem as mais consonantes com os aspectos
comunicacionais enfatizados e com objectivo específico de mudança.
As técnicas paradoxais são assim amplamente utilizadas não sendo,
porém exclusivas.
Com
a evolução conceptual para uma segunda fase, cibernética de
segunda ordem, o
sistema, para além
de ser entendido como globalidade que persegue uma finalidade através
do jogo de processos de feed-back
determinantes da sua estrutura, é
também visto como possuidor de autonomia e capacidade
autoorganizativa
(Maturana e Varela, 1980). A noção de capacidade autoorganizativa
dos sistemas (associada aos conceitos de autopoïesis
e estrutura
dissipativa)
refere-se à propriedade que estes têm de modificar espontaneamente
a sua estrutura quando as condições internas ou externas mudam.
Possuem assim uma organização que lhes confere uma certa
continuidade/estabilidade, uma individualidade e uma autonomia
resultantes da organização. Os sistemas têm então uma abertura
funcional e um fecho organizacional. Finalmente em termos de
funcionamento a noção de regulação/equilibração é substituída
pela de mudança. Para além de ser definido como um conjunto de
unidades em inter-relações mútuas (Bertalanffy,1973), o sistema
caracteriza-se por ser um todo activo e estruturado, definido ou
pontuado em função das suas finalidades específicas e das
diferenças em relação aos contextos com os quais interage. Em
síntese, relação e autoorganização associam-se a função e
estrutura como palavras-chave da noção de sistema.
6.2. A coconstrução da hipótese
Em
termos práticos, a família chega à terapia com uma versão própria
do seu funcionamento e uma atribuição/explicação para o próprio
sintoma. Reunindo a informação que a família colocou ao seu
dispor, o terapeuta selecciona outros pontos nodais no sentido da sua
reorganização e, seguindo a grelha de leitura que lhe é fornecida
pelo seu modelo teórico-clínico, coconstrói com a família outra
leitura, outra versão da situação e do problema. A este processo
dá-se o nome de reenquadramento:
a arte de encontrar um
novo quadro.
Lynn
Hoffman afirma que a
elaboração de
hipóteses implicava
um
- processo de avaliação,
- o interrogatório circular que é uma técnica de entrevista
- e a neutralidade que é a postura básica do terapeuta.
Ela
pega neste método e transforma-o, adaptando-o à terapia sistémica
de segunda ordem:
Substitui
neutralidade por curiosidade, no sentido de uma postura de aceitação
e interesse de todas as descrições por parte do terapeuta. A
curiosidade evita a confusão utilidade/verdade e a linearidade que
dá por findo o diálogo porque não se aceitam ou não se procuram
outras descrições da realidade.
A
terapia é reenquadrada:
- processo de avaliação,
- o interrogatório circular
- curiosidade
abandonado
o quadro das explicações verdadeiras ou falsas é instaurado o da
curiosidade que perturba o sistema porque faz emergir padrões
diferentes dos habitualmente perseguidos quando se busca a verdade
-
não poderá ser visto assim ...?
-
então assim ...?
A
hipotetização, associada ao questionamento circular, é a
metodologia ideal para manter a postura de curiosidade. As hipóteses
constroem-se a partir da metáfora do contador de histórias num
movimento coevolutivo entre família e terapeuta, seguindo um
processo centrífugo de expansão de círculos que fazem parte do
conjunto de informações e relações que compõem o problema e a
sua ecologia social. Esses círculos, que constituem o sistema
significante, desenham-se a vários níveis: dinâmica familiar,
contexto alargado, relação com o terapeuta, relação do terapeuta
com o supervisor. Assim começa-se por pedir uma descrição do
problema e do modo como se liga às várias pessoas da família.
Progressivamente vai-se elaborando uma descrição interpessoal e
relacional até se converter em algo que existe, pelo menos entre
duas pessoas. Em seguida, estabelecem-se conexões entre o núcleo
familiar e o contexto da família extensa até ao contexto social, à
instituição ou pessoa que envia para tratamento ou outros contextos
significativos. Enfim investiga-se como é que o sistema familiar se
liga ao sistema terapêutico alargando o contexto até ao supervisor
e até se encontrar uma explicação que satisfaça. “Não
se pode verdadeiramente limitar um sistema porque a decisão é
arbitrária. Logo que se tenham formulado todas estas hipóteses a
estes (...) níveis, estabelece-se uma ligação entre eles por uma
única explicação sensata.
É o que chamamos hipótese
sistémica.”(Boscolo
et al.,1989,123-4)
Na
construção da hipótese sistémica utilizam-se as hipóteses
familiares e as próprias hipóteses prévias do terapeuta. Estas
histórias são as guias para o avanço no questionamento circular,
última premissa para a manutenção da curiosidade que, por sua vez,
faz avançar na afinação da(s) hipótese(s) que não podem ter fim
porque não há uma definição de como é que a família deve
ser, pois a família
é o que é.
O
método inclui a orientação estética na multiplicidade de padrões
e histórias possíveis a partir das quais se busca o padrão que
liga, isto é, a hipótese geral, sistémica, que unifica as
descrições dos diferentes membros do sistema. Restaura-se o
respeito pelo indivíduo e pela lógica do sistema que não é boa
nem má; é simplesmente a sua e é operativa. A hipótese sistémica
é entendida como coconstrução porque facilita a transformação
dos dados em informação através do desenho de um novo mapa que se
constrói juntamente com a família. Não sendo o mapa da família
nem o do terapeuta, vai permitir que os indivíduos da família
possam alterar o modo como constróem os seus próprios mapas.
Peggy
Penn desenvolve as potencialidades do questionamento
circular. Enfatizando
a mudança coevolutiva (coevolutionary change) introduzida pelo
método, apresenta nove categorias de questionamento circular que
conduzem o sistema num movimento de ziguezague desenhando um arco
passado-presente relativo às experiências antes e depois do
problema. A última categoria relativa às questões explicativas ou
atribuições
-
Qual a sua explicação para ...? (o problema, as comparações, a
classificação, ...)
completa
os índices que permitem a elaboração/afinação da hipótese de
trabalho. Mais do que informar o terapeuta, questiona-se o sistema
sobre si próprio de modo a fazê-lo sair da história saturada
criando as diferenças que fazem diferença em relação à história
original (Costa, 1994) lançando-se pontes
que relacionam sintoma, intervenção, família e terapeuta como
partes de um processo coevolutivo mais vasto (Penn, 1982;272)
Karl
Tomm introduz um
quarto princípio, a estrategização,
que cria os mecanismos que promovem a transformação da hipótese em
intervenção desencadeando a mudança terapêutica (Sadler e Hulgus,
1989). É definida como a postura cognitiva do terapeuta para
questionar e tomar decisões avaliando
os efeitos de acções passadas, construindo novos planos de acção,
antecipando as eventuais consequências de várias alternativas e
decidindo como proceder em qualquer momento particular a fim de
maximizar a utilidade terapêutica
(Tomm, 1987 a:6).
Isto
supõe que o terapeuta não é o responsável pelo que ocorre no
sistema familiar, mas é responsável pela sua própria actividade e
por isso se interroga a todo o momento sobre o que está acontecendo
no sistema terapêutico como resultante das suas intervenções e/ou
questões.
Neste
contexto o autor introduz as questões reflexivas definidas como
“(...)
questões formuladas com a intenção de facilitar a autocura do
indivíduo ou da família activando a reflexividade nos significados
contidos no sistema de crenças preexistente (...)”
(Tomm, 1987 b:172). Estas questões continuam a ser vistas como
sondagens ou perturbações, mas ao desencadearem alterações na
organização do sistema de crenças da família, ocorre a mudança.
O atributo reflexivo
tem a ver com a intencionalidade do terapeuta e não com o conteúdo
semântico ou estrutura sintáctica. Por exemplo, se o terapeuta
entende que explorar as expectativas catastróficas da família pode
facilitar a clarificação de certos temas escondidos, pode perguntar
a uns pais superprotectores:
O
que têm medo que aconteça à vossa filha, se ficar fora de casa até
tão tarde?
Qual
é a coisa pior que conseguem imaginar?
e
continuar-se-ia questionando a filha no mesmo sentido. O método é
por isso denominado entrevista
interventiva
(interventive interviewing).
Tom
Andersen propõe uma
metodologia de entrevista que recorre a outro importante contributo
do modelo milanês: a organização
da equipa a que dá
características novas com a introdução da equipa reflectora
(reflecting-team) (Andersen, 1987;1994). A equipa atrás do espelho
unidireccional observa a entrevista com a família e, depois de
invertido o sistema de luz e som, é convidada a pronunciar-se sobre
o que viu e ouviu. Família e terapeuta observam a discussão da
equipa reflectora e, depois de nova inversão do sistema, o terapeuta
convida a família a comentar as ideias que acabou de escutar. Isto
pode acontecer uma ou várias vezes durante a entrevista. O objectivo
é desenvolver-se uma compreensão da compreensão. Os membros da
equipa reflectora são aconselhados a ouvirem a entrevista em
silêncio e sem discutir entre si. Na apresentação
das reflexões
cada membro apresenta as próprias ideias que podem depois serem
elaboradas em conjunto na conversa que então se desenvolve. Por
outro lado, devem exprimir-se em termos dialógicos (e/e; nem/nem) e
de forma especulativa (pareceu-me ...; tive a impressão que ...).
As
questões reflexivas e a introdução da equipa reflectora são
efectivamente metodologias fecundas no campo da terapia de segunda
ordem. Michael White,
por exemplo, associa estes dois procedimentos no seu modelo de
externalização,
através do qual coloca o problema fora do sujeito como um objecto,
organizando um novo campo semântico ao perguntar:
Quando
descobriu que a timidez o incomodava?
Quem
ganha esta batalha: você ou a timidez? (White
e Epston, 1993; White, 1994; Nichols e Schwartz, 1998)
A
grande implicação clínica da visão da segunda ordem é a ênfase
na epistemologia pessoal do terapeuta. Cada terapeuta tem uma
representação pessoal do modo como vai desempenhar o seu papel na
terapia. Cada vez mais a experiência clínica mostra que a teoria (o
saber) e a técnica (o saber-fazer) funcionam como infraestrutura
continente da própria relação terapêutica moldada na interacção
cliente(s)-terapeuta. Essa moldagem toma forma a partir da leitura
pessoal e criativa do modelo teóricoprático seguido, da história
pessoal do terapeuta (afectiva e profissional), das contingências
actuais, das características do cliente e da situação concreta que
permitiu o encontro terapêutico.
Os
maiores contributos da terapia familiar construtivista derivam do
questionamento dos conceitos de verdade, objectividade e realidade.
Em sequência, a terapia comporta três parâmetros fundamentais:
Ético
– a responsabilidade derivada da análise das intenções e modelos
pessoais substitui-se à objectividade no respeito pela lógica do
sistema.
Estético
– através do qual se privilegia a multiplicidade de pontos de
vista e se revalorizam os aspectos únicos e originais da experiência
humana o que facilitou o renovar de interesses pelos processos
cognitivos e perceptuais e a recuperação do valor das produções
internas como mitos, crenças, sentimentos, fantasias.
Pragmático
ou interventivo
numa ligação indissolúvel ideias-comportamentos.
Hipóteses
clínicas são definidas como tentativas de explicação que permitem
lidar com a complexidade da situação terapêutica e que servem para
orientar e organizar o comportamento do terapeuta na sessão (momento
a momento) e no processo (sessão a sessão). Desenvolvem-se em
termos de histórias ou narrativas com base em conexões
estabelecidas em termos temporais de princípio, meio e fim e são
coconstruídas na recursividade da relação cliente-terapeuta
através do diálogo que se vai desenvolvendo entre ambos. Guiando o
momento-a-momento da entrevista, guiam o seu desenvolvimento, mas
também guiam e orientam o comportamento e atribuição de
significado da família e de cada dos seus elementos. Reencontra-se o
valor na hipótese como elemento de condução da sessão.
As
hipóteses do terapeuta não podem ser demasiado distantes ou
dissonantes das da família, pois neste caso entravariam o processo
de coconstrução e desorganizariam o sistema. Para que sejam úteis,
é necessário que entre as histórias do terapeuta, da família e de
cada elemento da família haja um ajustamento (fitting)
nas experiências, percepções e sentimentos pelo que o terapeuta,
como condutor da sessão, tem de se preocupar com esse aspecto
(parâmetro ético).
Tal ajustamento é procurado pelo terapeuta, não através de uma
qualquer forma de mimetismo, consenso ou acordo, mas através da
variação e diversificação do seu comportamento e das suas
histórias (parâmetro
estético). Retomando
a metáfora de von Foerster, Dell (1982) apresenta assim a noção de
fit:
a
coerência ou organização individual é a fechadura e as chaves que
a abrem e, por isso, elas vão sendo progressivamente ajustadas em
busca da complementaridade com a fechadura. A arte do terapeuta
situa-se neste processo de busca de afinação.
Esta
afinação decorre a vários níveis entre os quais se destaca o do
modelo e da técnica que o terapeuta utiliza, optando pelo que melhor
se ajusta à coevolução do sistema, isto é, por aquele que no
momento lhe parece mais útil (parâmetro
pramático).
Assumindo
uma postura de curiosidade no sentido de Cecchin
(1987) clientes e terapeuta(s) juntos vão progressivamente
encontrando novas descrições para o problema e suas ligações a
contextos cada vez mais vastos através de perturbações mútuas e
sucessivas. É esta progressão que permite a coconstrução da
hipótese e a mudança coevolutiva no sistema terapêutico através
da descoberta conjunta de novos significados que se projectarão em
novas acções.
Quebrando-se
o elo da hipotetização, quebra-se o dinamismo do processo
terapêutico uma vez que na base do diálogo que o sustenta estão as
histórias criadas e recriadas em conjunto. É nossa convicção que,
se o terapeuta abdicar de coelaborar explicações, não poderá
ajudar a família na tarefa de se questionar sobre si própria em
busca de pontos de vista alternativos.
Embora
o terapeuta seja um provocador do processo de mudança, esta só pode
ser levada a cabo pela própria família. No entanto, a família
transfere para o contexto terapêutico as suas próprias expectativas
nas quais atribui um papel bem definido ao terapeuta (juiz, salvador,
perito) e a ela própria (doente, incapaz, incompetente). O terapeuta
altera essas expectativas de modo a que a família se sinta
responsável pela solução dos seus próprios problemas
(redefinição). Ajuda a família na sua clarificação e pode
indicar-lhe modos alternativos de relacionamento entre os quais ela
própria seleccionará os que melhor se lhe adequam em função da
sua autoorganização. Para cumprir este papel não pode deixar-se
envolver no jogo da família nem aceitar passivamente o papel que ela
lhe atribui. Por isso é importante essa sua faceta activa.
6.3. Desenvolvimento familiar
Toda
a vida humana comporta um princípio, um meio e um fim e é num
processo interactivo que se cruzam pessoas, objectos, situações nos
seus variados movimentos de vida e evolução. Com efeito todo o ser
humano, em circunstâncias normais, transforma-se em todos os
domínios da sua unidade biopsicossocial num movimento espiral feito
de progressos e retrocessos seguidos de novos avanços em constante
interacção com o meio circundante.
Neste
crescimento e desenvolvimento, é natural que surja qualquer sintoma
para sinalizar, não tanto a crise, mas o impasse em que a família
caiu e assim frequentemente a família solicita a ajuda de que
necessita para autoorganizativamente continuar o seu processo de
crescimento e desenvolvimento. Não interessa que a família, os
amigos, os técnicos, a própria comunidade procurem os responsáveis,
os causadores do problema. O que é necessário é perceber como é
que as pessoas podem mutuamente ajudar-se a crescer e a viver mais
felizes, autoconfiantes, seguras e solidárias.
Para
a criação do sentimento
de pertença, tão
necessário em todas as comunidades e na comunidade familiar também,
é necessário que os pais filiem verdadeiramente os seus filhos,
isto é, lhes possibilitem a construção de um modelo interno de
vinculação que lhes dê segurança para que, sentindo-se amados,
possam partir à descoberta do mundo, de novas relações e de novos
conhecimentos (Bowlby, 1969,1995; Howe, 1984). Para que os pais
possam realizar esta tarefa é importante que, também eles, possam
ter sido verdadeiramente filiados pelos seus pais e deles se possam
ter afectivamente separado (Bowen, 1984). Por outro lado, o
sentimento de pertença só será efectivo se este processo de
vinculação-separação for duplo, isto é, realizado no interior da
família nuclear e na sua articulação com as famílias de origem. O
desenvolvimento de uma autoestima
elevada assim como de
uma capacidade para ser solidário supõem que, desde tenra idade, o
sujeito se tenha sentido amado, diferenciado e reforçado nos seus
movimentos de construção de uma identidade positiva. Para isso é
importante que os pais, para além do que foi mencionado, não
invistam os filhos como seus prolongamentos narcísicos
contaminando-os ou asfixiando-os com projecções dos seus desejos.
É
importante acentuar que os pais não podem deixar de exercer a sua
autoridade parental
com regras bem definidas, assentes em valores claros e veiculadas por
uma comunicação funcional. Como não podem, na maioria das
situações, abandonar a sua posição de autoridade (e não
autoritária) e de complementaridade em relação à posição dos
filhos ainda que, à medida que os filhos vão crescendo, se
multipliquem as vezes em que os filhos se revelam tão ou mais
competentes do que os pais. Na relação com o subsistema parental o
subsistema filial faz uma aprendizagem extremamente importante para a
vida: experimenta
como se pode lidar com um poder desigual.
Assim a amizade, a cooperação, o entendimento entre pais e filhos
não podem ser entendidos como sinónimos de relações horizontais.
Essas experimentam-se entre irmãos. Isto é fundamental para que
pais e filhos possam ajudar-se numa aprendizagem que, sendo
fundamental, não é muito fácil: a do exercício
de um poder democrático, claro, flexível e tecido no respeito pelos
direitos e pelas diferenças individuais.
Em
síntese, os pais têm de, enquanto subsistema executivo, exercer a
autoridade, ensinar a liderança e clarificar a delimitação de
fronteiras entre e intra subsistémicas. Relativamente ao subsistema
fraternal é claro que, quando as crianças são muito novinhas, os
pais têm de ter uma intervenção mais acentuada, ajudando-os a
experienciar situações de cooperação, solidariedade, competição
e resolução de conflitos. À medida que vão crescendo, os pais têm
de se ir afastando para que elas possam aprender a resolver entre si
os seus próprios problemas e conflitos.
Com
a entrada dos filhos no sistema escolar, a separação
e a autonomização
constituem importantes tarefas para a família. Os pais, continuando
a proteger os filhos, a oferecer-se como porto de abrigo para as suas
angústias e como auxiliares na transformação das suas
dificuldades, têm de lhes ir dando cada vez mais autonomia ao mesmo
tempo que lhes vão impondo também, um
conjunto cada vez mais complexo de regras e normas de actuação.
A negociação, como instrumento de flexibilização das posições
assumidas, oferece-se como um importante recurso nesse processo de
separação e autonomização. Os filhos, mais diferenciados, mais
competentes e mais responsáveis manifestam um respeito cada vez
maior pelo subsistema parental, mesmo quando aparentemente, apenas o
contestam.
O
acesso, por parte da criança, a novas fontes do conhecimento e a
novos saberes assim como a novos modelos relacionais permite-lhe,
mediante comparação com o que já conhece, progredir nesse processo
de diferenciação que a conduzirá, mais tarde, à aquisição de
uma identidade própria e à necessária autonomização face aos
seus modelos de identificação. Podemos dizer que não só a criança
se vai separando e autonomizando dos seus pais como estes o vão
fazendo em relação a ela.
6.4. A Terapia Sistémica
Enquanto
primeiro e mais significativo espaço relacional do indivíduo, a
família é eleita como contexto de leitura do valor do sintoma e
como contexto de mudança. Assim o diagnóstico psicopatológico
individual deixa de fazer sentido e abre-se caminho à avaliação
relacional. O indivíduo deixa de ser visto como doente para passar a
ser compreendido como paciente-identificado (P.I.), isto é, como
portador de um mal-estar, de um sofrimento ou de um disfuncionamento
familiar.
Neste
quadro, a psicoterapia individual deixa de fazer sentido e a
entrevista
familiar conjunta
passa a ser vista como uma necessidade. Nos primeiros tempos da
terapia familiar, ainda que com algumas excepções, habitualmente
exigia-se a presença de todos os elementos da família nas sessões
particularmente os do agregado familiar. Posteriormente esta regra
flexibilizou-se e as ausências foram analisadas enquanto
resistências das famílias ou erros do processo e trabalhadas no
decurso da própria intervenção. Hoje é possível fazer uma
terapia familiar com um único elemento presente e a regra é
basicamente a da disponibilidade dos clientes e do terapeuta para a
realizarem.
Deste
modo as famílias foram classificadas em dois grandes tipos: as
famílias funcionais e as famílias disfuncionais. No entanto, Lyon
Hoffman (1971)
partilha da ideia de que as famílias
funcionais
(normais) se tornam periodicamente desequilibradas durante os pontos
de transição do ciclo vital. Na família tradicional ocidental
considera-se que as fases do ciclo
vital de uma
família são essencialmente as seguintes:
- União de dois elementos para constituir uma nova família;
- Nascimento dos filhos;
- Educação e crescimento dos filhos;
- Adolescência e saída de casa dos filhos;
- O casal está de novo só;
- Velhice e morte.
Nenhuma
família passa por estas mudanças de forma totalmente harmoniosa e
todas experienciam stress:
a crise subsequente pode converter-se em ocasião de transformação
e crescimento ou em risco (de bloqueio e impasse). Nos anos sessenta,
Connie Hansen
(1981) viveu com três famílias normais (uma semana em casa de cada
uma delas). Das suas numerosas observações destaca-se que nas
famílias funcionais o ritmo de vida é mais descontraído; as
crianças estão bem umas com as outras e entreajudam-se; os pais
orientam o crescimento dos filhos (oferecem-se como bons modelos para
o que estão a tentar ensinar), mas não se responsabilizam
totalmente pelo seu crescimento já que assumem a premissa de que o
desenvolvimento também se faz espontaneamente; têm expectativas
positivas sobre os seus filhos e sobre os esforços que eles fazem
para realizar as suas tarefas; os pais têm um estilo educativo
democrático (são menos autoritários e usam mais a persuasão e
humor), não se sentindo culpados por impor regras (claras) e dizer
que não às crianças; as crianças sentem-se bem tratadas pelos
pais que as ouvem, partilham algum tempo de brincadeira e estão
genuinamente interessados nelas.
Teóricos
e clínicos consideram que as famílias funcionais não ficam presas
em ciclos de resistência à mudança, antes envolvem-se em
retroacções positivas com vista à sua modificação. Pelo
contrário, as famílias
disfuncionais
permanecem paralisadas utilizando o P.I. para evitar a mudança e
perpetuar o seu funcionamento. Com a terapia sistémica, o terapeuta
passa a ser visto como um observador participante com uma história
familiar pessoal, com um saber construído na aprendizagem pessoal da
teoria e prática sistémica, com um conjunto de ideias, afectos,
crenças e valores que desenvolve em estreita articulação com os
elementos com quem interage (família, coterapeuta, observadores,
supervisor). Desta forma, a história de cada encontro é sempre
singular: é a história daquela família, daqueles terapeutas,
daquele tempo e daquele lugar e as teorias que conhecem, podem
distorcer as percepções, mas também trazem ordem ao caos e
permitem organizar as suas observações e proporcionar sentido ao
que as famílias estão fazendo. Em vez de ver uma grande confusão,
começam a ver padrões de interacção. Fazer da teoria um modelo
normativo aprisiona a família e o terapeuta, mas não ter modelo é
trabalhar sem direcção nem convicção o que não é bom nem para a
família nem para o terapeuta. No processo de consulta, cria-se um
novo sistema em que, como em todos os sistemas, o todo é mais do que
a soma das partes, sendo estas constituídas pelos subsistemas. Assim
aquilo que o terapeuta sente e descreve resulta da intersecção
entre a sua história pessoal e o sistema onde emerge esse
sentimento. A utilidade do terapeuta está na capacidade de ele
próprio se permitir criar várias leituras acerca do que a família
conta para que ela, dessa forma, possa ir descobrindo aspectos que
não conhecia e redescobrindo outros a uma nova luz. Numa palavra,
para que ela possa ir cocriando outros enredos menos sofridos, mas
viáveis no contexto da sua própria organização. Assim o sintoma
de crise deixa de ser perspectivado como sinal de disfuncionalidade
para ser encarado como factor que empurra a família para um novo
estado. O sintoma representa um momento de extrema instabilidade do
sistema, um ponto de bifurcação a partir do qual diferentes
direcções podem ser tomadas, permitindo ao sistema evoluir para
níveis mais complexos de organização (Onnis, 1991). É nesse
sentido que Hoffman
(1981) considera que o aparecimento de novos sintomas, no decurso da
intervenção, não significa que a mesma esteja a ser pouco eficaz;
mas sim que sem crise as famílias dificilmente alcançam uma mudança
estrutural. Na vida de uma família há períodos de tensão, de
dificuldade, de conflito, a par de períodos de relativa
tranquilidade e satisfação. Desta forma as relações vão-se
alimentando, os elementos crescendo e a família vai-se
desenvolvendo. Entre os múltiplos comportamentos que constituem toda
esta trama relacional pode acontecer que, ao acaso ou em função de
determinantes internos e externos, um comportamento, entre uma
infinidade de comportamentos, produza certos resultados que não
produziria habitualmente ou que não teria produzido, se o sistema
não estivesse afastado do equilíbrio. Este comportamento, produzido
por um membro do sistema, vai ser seleccionado, privilegiado pelos
outros membros do sistema. E seguidamente, vai repetir-se, vai ser
ampliado, em parte por continuação das respostas que ocasiona em
parte porque toma sentido particular para o seu portador e para os
outros membros do sistema.(Ausloos, 1996)
O
facto de o terapeuta constatar que o sintoma desempenha uma função
e tem um valor no sistema considerado não significa que foi essa
função que o criou. Num dado momento, o comportamento seleccionado
e ampliado cristaliza-se, mas o sintoma não comporta em si um valor
intrínseco fundamental; são os discursos que a seu propósito são
criados que o tornam fundamental. A tarefa que cabe ao terapeuta é a
de poder identificar o que causa mal-estar e sofrimento à família e
coconstruir um processo de interacção que leve ao alcance de um
novo equilíbrio.
Também
a utilização de directivas ou prescrições é frequentemente
considerada imprescindível na condução da terapia estratégica. É
assim para Haley
e colaboradores que afirmam: “A
directiva está para a terapia estratégica como a interpretação
está para a psicanálise. É o instrumento básico desta abordagem.”
(Madanes, 1991:397)
É
importante fazer a leitura do sistema familiar à luz de dois eixos
básicos:
Eixo
sincrónico ou do espaço
– reporta-nos ao espaço familiar, ao espaço relacional da
família. Neste espaço relacional, jogam-se permanentemente os
movimentos de individuação e de socialização dos diferentes
elementos que constituem a família. Este eixo manifesta-se assim na
estrutura da família, nas relações entre os seus elementos, na
distribuição do poder e na organização hierárquica, nas formas
de comunicação que escolheram para interagir, nas alianças que
estabelecem com outros elementos e na forma como estão definidos os
limites entre subsistemas e entre indivíduos.
Eixo
diacrónico ou do tempo
– é o eixo do tempo familiar. É um tempo eminentemente histórico
pontuado pelos acontecimentos do quotidiano, pelas etapas do
desenvolvimento e pela história das gerações. Assumem-se como
elementos importantes os mitos, as lealdades, as dívidas, os legados
e as delegações familiares assim como acontecimentos relevantes da
existência tais como acidentes, doenças graves,... Neste eixo
articulam-se permanentemente movimentos de evolução e de
conservação do sistema familiar.
Entre
estes dois eixos existe uma permanente interacção que articula os
diferentes contextos relacionais da vida da família com o seu
próprio desenvolvimento e com a continuidade transgeracional. À
medida que o tempo vai passando, as relações familiares vão-se
organizando diferentemente. Nesta articulação espaço-tempo a crise
surge como uma flutuação mais ampla na mudança contínua que
traduz a vida do sistema.
Entre
os mecanismos fundamentais responsáveis pelas possibilidades de
desenvolvimento ou de bloqueio familiar, o processo de autonomia e
separação, os segredos familiares e a gestão do controlo
relacional parecem assumir um lugar de destaque. A flexibilidade e a
autoestima individuais e familiares assumem-se como pano de fundo que
recursivamente alimenta aqueles processos e é por eles alimentado.
Com efeito, a flexibilidade é, em todos os sectores da vida pessoal
e familiar, um garante e um indicador de saúde e de funcionalidade.
Pelo contrário, a rigidez dificulta o próprio evoluir ao abrir as
portas para que toda a crise seja transformada em risco de bloqueio e
consequentemente aumente o sofrimento e o mal-estar daqueles que
envolve.
A
autoestima
é significativa para o desenvolvimento pessoal e interpessoal. Uma
autoestima elevada faz com que o sujeito se sinta amado pelos outros,
consiga gostar de si e ter a confiança básica necessária ao seu
crescimento e à exploração do mundo que o rodeia. Uma autoestima
baixa está geralmente associada a situações de grave sofrimento
individual e familiar potenciando quotidianos familiares difíceis
bem visíveis nos casos de violência familiar ou nas famílias
multiproblemáticas.A autonomia conquista-se através de uma boa
vivência relacional.
6.5. Modelos de intervenção em Terapia Familiar
- Perspectivas relacionadas com o modelo psicanalítico
- Perspectivas transgeracionais
- Perspectiva transgeracional de Boszormenyi Nagy
- Perspectiva simbólicovivencial de Carl Whitaker
- Perspectiva de Murray Bowen
- Perspectiva estrutural de Salvador Minuchin
- Perspectivas estratégicas
- Perspectiva do Mental Research Institute (Palo Alto)
- Perspectiva de Jay Haley
- Escola de Milão
- Perspectivas comportamentais
2.
A perspectiva
transgeracional é
uma análise de transmissão da cultura familiar, no seu sentido
lato, de uma geração para outra, englobando os padrões, estilos,
costumes, segredos, mitos e problemas que determinam o carácter
único de uma família (Lieberman, 1979).
Como
processo terapêutico, é utilizado o estudo das relações
familiares em pelo menos três gerações (avós, pais e filhos)
idealmente quatro ou cinco gerações. Os terapeutas procuram
definir, em conjunto com a família, os padrões de relação básicos
dos diversos sistemas familiares que se entrecruzaram ao longo de
muitos anos. Alguns utilizam o genograma, diagrama visual da árvore
genealógica da família, construído em conjunto com a família na
sessão terapêutica.
Nagy
e Spark
(1973) introduz o conceito de carta
de
legados
familiar
um conjunto multigeracional de obrigações e dívidas a serem
cumpridas ao longo dos tempos. Sempre que uma injustiça ocorreu, vai
haver, mais tarde, um movimento para a reparar, embora não
necessariamente pelo devedor original.
Nagy
conceptualiza a família como um grupo humano rodeado por uma rede
complexa de obrigações e lealdades que exigem cumprimento, mas que
protegem ao mesmo tempo o conjunto familiar. O terapeuta deve criar
uma atmosfera que torne possível a cada um encarar as suas dívidas
emocionais e eventualmente corrigi-las, mostrando que muitas das
dificuldades actuais correspondem à tentativa de superação de
erros ou características das gerações passadas.
2.2
Características de uma família saudável para Carl Whitaker (1981):
- A família tem uma noção de conjunto, uma espécie de nacionalismo familiar, mas que não pode impedir a noção de indivíduo. Trata-se de um conjunto integrado, não demasiado em fusão que não permita a individualização, nem demasiado disperso que leve à sensação de isolamento de cada membro;
- Cada elemento da família contacta com uma família intrapsíquica de três ou quatro gerações, isto é, há uma sensação de continuidade ao longo dos tempos e uma visão transgeracional da passagem de valores familiares;
- Existe uma barreira intergeracional, isto é, os pais não são filhos e os filhos não são pais, sendo necessária uma delimitação dos subsistemas;
- Há grande liberdade e flexibilidade na escolha de papéis familiares, isto é, o filho pode ler alto uma estória enquanto o pai o escuta atentamente brincando com cubos no chão. A mãe pode fazer o jantar para as bonecas enquanto os filhos fritam os bifes para, mais tarde, os papéis tradicionais serem retomados sendo esta troca toda feita ao serviço do grupo familiar;
- A distribuição do poder dentro da família também é flexível, sendo possível exprimir as diferenças individuais e renegociar o que foi obtido a partir das experiências vividas;
- A família é capaz de brincar em conjunto, o pai vem do trabalho e pode dar cambalhotas no chão, o filho senta-se seriamente a ler o jornal e todos em conjunto se riem do que vêem na televisão;
- A família continua a crescer, tenham existido mais ou menos acontecimentos desagradáveis. É capaz de notar a passagem do tempo e modificar a sua maneira de estar viajando através de ciclos de regressão e reintegração. Os sintomas podem surgir em épocas de crise, mas são uma maneira de aumentar a experiência familiar e portanto o seu crescimento;
- Os problemas são resolvidos através de um diálogo franco e aberto que envolve a análise e síntese de mitos, regras familiares, esperanças e realidades quotidianas;
- A família passa por crises de identidade, nas quais a frustração é um enzima útil para acelerar a mudança;
- A família é um sistema aberto influenciado pelo que se passa na sociedade à sua volta e em contínua evolução.
O
objectivo desta terapia é estabelecer o sentimento de pertença de
cada elemento da família e, ao mesmo tempo, possibilitar a liberdade
de individuação. Não se trata de adoptar socialmente a família,
mas sim aumentar a sua criatividade e flexibilidade. Procura-se o
máximo crescimento da família em todas as dimensões possíveis.
6.6. O Processo Terapêutico
A
mudança terapêutica é considerada, sob aspectos diferentes,
segundo o grupo de autores. A perspectiva transgeracional de Bowen,
Whitaker, Andolfi, Minuchin dão grande importância ao crescimento e
diferenciação das pessoas dentro da família, valorizando a
criatividade de cada membro da família e utilizam o ambiente de
tensão, a amplificação da crise e o desafio ao confronto das
pessoas e das gerações na interacção recíproca como vias para a
mudança.
Outros
dirigem os seus esforços terapêuticos para a reestruturação da
família como sistema para a reorganização das formas de
comunicação familiar e utilizam a linguagem paradoxal, os rituais e
as prescrições para introduzir um novo jogo relacional (perspectiva
estratégica e estrutural). Haverá entre estes dois grupos uma
oposição ou uma complementaridade?
Por
outras palavras, a diferenciação pessoal poderá ser compatível
com a coesão familiar, isto é, com o aumento da organização do
sistema?
A
fim de traçar as linhas gerais do processo terapêutico dir-se-á
que:
A
base é a sessão, ou seja, a entrevista interpessoal conjunta (não
necessariamente com toda a família);
Ø
A metodologia é sistémicocircular (recolha de informação que
permita gerar a diferença sobre o problema ou sintoma);
Ø
O objectivo é a mudança, visando o bem-estar grupal e individual.
Não é possível isolar recolha de informação (avaliação) e
mudança (tratamento), quer em termos temporais quer processuais. O
processo evolui no seio do que se convencionou chamar sistema
terapêutico formado por cliente(s) e terapeuta(s), pelo que o
principal utensílio terapêutico é a relação cliente-terapeuta
(Relvas e Keating,1995).
Ø
O trabalho de equipa é uma orientação básica. Esta é formada,
regra geral, por três terapeutas: dois trabalham em coterapia
directamente com a família na sessão adoptando um modelo de
cooperação (semelhança de papéis e estatutos) e o terceiro,
habitualmente em formação, fica atrás do espelho unidireccional,
no papel de terapeuta-observador.
Ø
A hipótese
de
base
na condução do processo é a de que o terapeuta vai trabalhar com o
sistema no qual o sintoma do paciente-identificado apareceu. O
sintoma, para além de ter um sentido nesse contexto, exerce algumas
funções específicas que participam na coerência do sistema. O
trabalho do terapeuta é então elaborar hipóteses, verificá-las,
compreender e intervir de modo a que o sistema possa, ele próprio,
mudar.
O
processo inicia-se com o preenchimento de uma ficha
telefónica.
Esta ficha é preenchida por um terapeuta com o elemento da família
que faz o pedido. O modelo utilizado é muito semelhante ao proposto
por Palazzoli
(1978) e, tal como ela, consideramos que este é, de facto, o
primeiro contacto com a família. Para além de alguns dados
biográficos da família (nomes, idades, parentescos, profissões,
agregado familiar), regista-se o motivo do pedido de consulta, a
história da evolução do sintoma, os antecedentes familiares, o
conhecimento que os vários membros da família têm deste pedido de
apoio psicológico, a informação sobre quem envia a família
(profissional, instituição ou outro) e, se possível, uma primeira
avaliação das relações familiares. A partir destes dados a equipa
terapêutica elabora uma primeira hipótese sistémica de compreensão
do valor do sintoma e do funcionamento do sistema familiar que vai
servir de base ao planeamento da primeira entrevista.
Tendo
ainda como base a mesma autora e obra, o terapeuta deve fazer a
recolha de informação na primeira entrevista mantendo-se numa
posição neutra, pelo que deverá abster de qualquer intervenção
activa ou comentário que reservará para a parte final da sessão.
No entanto, na maior parte das vezes, o terapeuta envolve-se e
participa sempre activamente no sistema terapêutico: ao longo da
entrevista vai redefinindo, reformulando e reenquadrando as
interacções surgidas, embora também guarde para a parte final da
sessão as intervenções que lhe parecem fulcrais para a mudança. O
terapeuta é que define as regras do processo terapêutico. A
primeira entrevista inicia-se com o terapeuta perguntando ao pai:
Diga-me
como é a sua família
e de seguida percorre todos os elementos da família com a mesma
pergunta, sendo a última pessoa a mãe
porque ela é sempre o elemento mais importante na família. Também
é importante fazer sentir à família que o terapeuta está seguro
do seu procedimento e é activo na condução da sessão. É
importante o trabalho de dois terapeutas na sala, pois assim é mais
fácil lidar com a ansiedade e a tensão que uma sessão familiar
provoca. Um pode ficar provisoriamente imerso no sistema familiar
enquanto o outro permanece mais afastado, não se deixando englobar
pela família e vice-versa. O conjunto dos dois terapeutas permite
maior criatividade, liberdade administrativa, partilha de
responsabilidades, maior grau de honestidade acerca do cansaço,
raiva e sentimentos pessoais (Whitaker, 1977) sendo também muito
importante nas discussões no intervalo e na preparação das
sessões.
Há
que considerar que a consulta em terapia familiar contém quatro
partes essenciais:
- Preparação da sessão onde se elabora a estratégia da entrevista (postura cognitiva do terapeuta para questionar e tomar decisões, avaliando os efeitos das acções passadas, construindo novos planos de acção antecipando as eventuais consequências de várias alternativas e decidindo como proceder a fim de maximizar a utilidade terapêutica (Tomm,1987:6);
- A entrevista com a família;
- Intervalo para discussão da sessão e afinação da estratégia de intervenção entre os terapeutas;
- Finalização/conclusão da entrevista com a família.
A
orientação de cada consulta varia em função de diferentes
abordagens/modelos de compreensão conforme a avaliação da família,
o próprio sintoma e a interacção estabelecida entre família e
terapeutas. Há alguns princípios e regras comuns:
- A entrevista é considerada a parte mais relevante de toda a sessão em termos do próprio processo de mudança – é o tempo/espaço de perturbação mútua por excelência;
- Há sempre que respeitar algumas regras básicas:
- todos os elementos devem ter oportunidade de se expressar;
- o terapeuta conduz a entrevista, não a família;
- o terapeuta deve manter uma postura de neutralidade, no sentido da não manutenção de alianças sistemáticas procurando em simultâneo a clarificação das trocas comunicacionais. A família como um todo e cada um dos seus membros de per si devem sentir-se atendidos no espaço terapêutico;
- Segue-se uma metodologia básica suportada na conversação terapêutica (transformação da informação que retorna ao sistema com sentido e modo significativo (Ausloos, 1996) e no questionamento circular (Palazzoli, 1982), tanto quanto na utilização esteticamente contextuada das técnicas pragmáticas.
- Os sintomas são definidos como esforços de crescimento;
- Podemos modelar fantasias alternativas às situações reais de stress;
- Transformar os receios intrapessoais em fantasias interpessoais;
- Aumentar o desespero de um membro da família e clarificar a revolução latente na família;
- A família deverá ser ajudada a brincar;
- Deve-se procurar aumentar as relações da família com a comunidade e com as famílias de origem;
No
final da primeira ou segunda consulta, estabelece-se o contrato
terapêutico
que inclui a definição dos objectivos terapêuticos, o número de
sessões do processo, habitualmente entre cinco e dez espaçadas de
sensivelmente um mês e os quantitativos e modalidades de pagamento.
No contrato, procura-se que fiquem claramente definidas as funções
e posições relativas entre família e terapeuta(s) no que se
refere ao papel da família como agente activo e responsável da
mudança e não só como seu alvo-receptor; ao terapeuta como
orientador e participante activo nesse processo.
Do
contrato emergem quatro aspectos teóricotécnicos importantes:
- Relativo ao espaçamento das sessões, reflecte a necessidade de dar à família um tempo entre consultas para que possa experimentar e desenvolver os seus próprios movimentos de reestruturação;
- Clarifica que a família é utilizada no sistema terapêutico como utensílio ou instrumento terapêutico. Ela é, em última análise, a responsável pelo sentido da mudança;
- Prende-se com o papel directivo do terapeuta: responsável pela condução da mudança, assume-se como elemento activo do processo no qual participa como pessoa total física, intelectual e afectivamente com uma personalidade e vivências individuais e familiares não escamoteáveis (abandono do mito da neutralidade terapêutica);
- Delimitação e brevidade do processo terapêutico que permite que o sistema terapêutico se consciencialize que se pretende uma mudança redutora nos processos e conteúdos e localizada no tempo, o que tem como objectivo final devolver ao sistema as suas próprias capacidades evolutivas de mudança, bloqueadas por uma crise, também ela datável na história familiar.
A
hipótese é uma actividade de carácter experimental, no sentido de
suposição, que permite a organização e a categorização das
informações. Sem valor de verdade ou falsidade, deverá ser
avaliada na relação com a família em relação à sua utilidade e
adequabilidade. Tal utilidade reside no facto de facilitar a condução
da sessão, de modo a introduzir o inesperado e o improvável no
texto ou compreensão que a família traz para a terapia
relativamente a si própria e às suas dificuldades. A adequabilidade
tem a ver com o facto de a família ter de se reconhecer nessa nova
compreensão; ter de se sentir envolvida nessa actividade de
investigação. Por isso, as hipóteses não podem ser excessivamente
diferentes nem demasiadamente próximas das da família. Com as
hipóteses, o terapeuta tem de introduzir uma diferença
significativa para a família, mas de modo a que esta continue a ver
nelas a compreensão da sua história e das suas dificuldades.
A
hipótese é afinal um novo texto da situação, uma história
diferente ou se quisermos um reenquadramento, em cuja elaboração o
terapeuta utiliza os dados sobre a história da família em
observação, em interacção com o modelo teórico que elegeu para
determinado caso e momento. Daí que, por vezes, num mesmo processo
ou até numa mesma sessão, possa recorrer a diferentes modelos de
forma integrada ou não. Através da participação do todo e de cada
um dos elementos do sistema terapêutico, as hipóteses vão sendo
sucessiva e permanentemente afinadas, reformuladas e transformadas,
tornando-se o elemento radicalmente condutor da sessão e do
processo. Neste contexto, a hipótese aparece como um equivalente
funcional do diagnóstico (instrumento compreensivo/explicativo que
vai orientar a intervenção), mas ultrapassa esta função ao ser
indutora de mudança, sendo consequentemente intervenção (Relvas,
1996a).
A
terapia aproxima-se do fim quando a família é capaz de falar das
suas relações com menos tensão e sobretudo com a capacidade
individual de olhar para o outro e respeitar a sua autonomia sem se
sentir agredido por isso.
O
fim do processo terapêutico não é rígido. Por vezes, é a família
que diz que já não quer voltar, que já não necessita. Se algum
dos seus membros quer ir mais longe em trabalho individual,
aconselha-se uma psicoterapia individual.
7. Os adolescentes na família
O
equilíbrio de relações que a criança estabelece com os pais
durante a infância é fortemente sacudido, durante a adolescência,
na altura em que o adolescente necessita autonomizar-se em relação
a eles. Isto acontece por volta dos doze anos quando ocorrem grandes
transformações comportamentais. Esta autonomização é feita
através da recusa, mais ou menos violenta, dos padrões familiares
assimilados durante a infância. A necessidade de o adolescente se
encontrar a si próprio como um ser inteiro e distinto dos pais é
uma fase normal do desenvolvimento, mas que abala o padrão habitual
de relações pais-filhos dadas as dificuldades de os pais se
adaptarem à rapidez de mudança que se opera nos filhos. Estas
dificuldades podem comprometer a comunicação com os filhos
adolescentes tanto mais que, para encontrar o seu equilíbrio, o
adolescente procura, fora do esforço familiar, os valores e os
ídolos que tem necessidade de contrapor aos valores familiares a que
estava e continua a estar profundamente ligado. Esta fase normal e
transitória desencadeia com frequência nos pais um sentimento de
perda da sua autonomia paterna, levando-os a valorizar apenas uma das
faces do problema – o desejo e a necessidade que os filhos têm de
tomar distância em relação a eles. Mas esta separação é
igualmente fonte de sofrimento para os filhos ao mesmo tempo que é a
condição sine qua
non para que eles
consigam manter a relação com os pais reais e não já com os pais
idealizados como nas fases anteriores. As figuras paterna e materna
polarizam em torno de si áreas de conflitualidade distintas:
A
mãe polariza no par mãe-rapaz a conflitualidade associada aos
comportamentos de namoro, estilo pessoal, gestão de dinheiro e
saídas do adolescente e no par mãe-rapariga a conflitualidade está
associada à gestão do dinheiro e ao vestuário.
O
pai polariza no par pai-rapariga a conflitualidade associada ao
comportamento do namoro e no par pai-rapaz a conflitualidade
associada às saídas e à tomada de decisões.
A
mãe aparece como a figura disciplinadora, mas provavelmente também
a figura que está em contacto permanente com os comportamentos
quotidianos do adolescente. A ocorrência de maior número de
situações de desobediência e de submissão à mãe sugere que os
adolescentes interagem mais com ela, a quem provavelmente também
exprimem mais os seus sentimentos, desejos e ideias, colocando-a num
papel activo, regulador e orientador dos comportamentos, figura de
autoridade, mas também de suporte. No entanto, os adolescentes
conversam mais com o pai do que com a mãe, sendo esta mais
constrangedora e o pai mais orientado para a resolução de
problemas.
Muito
se tem escrito sobre a adolescência e sobre os adolescentes. Tem-se
realçado a dimensão tumultuosa da sua existência, as suas
frequentes variações de humor, a sua depressão normal, a sua
tendência para o agir, as suas quebras escolares, as suas
somatizações, a sua incrível energia, a sua generosidade, as suas
dúvidas, os seus radicalismos, as suas provocações, a sua
insegurança, o seu autoconvencimento, o seu desejo de independência,
a sua necessidade de dependência, a sua atracção pelo risco, a sua
paradoxalidade.
É
impossível pensar esta etapa do ciclo vital da família sem a
conceber como um período de grandes mudanças em que todos se
tornam, de alguma forma, uma novidade para os restantes. Pais
e filhos, por vezes
irmãos,
têm, em muitos casos, uma
queixa comum: não se
compreendem e já não sabem o que mais podem fazer para levar o
outro a aceitar a sua ideia ou o seu ponto de vista; não sabem
também quando devem estar e dar apoio ou quando podem deixar o outro
entregue a si próprio. Esta é, pode-se dizer, a etapa mais longa e
mais difícil do ciclo vital, na medida em que exige um permanente
equilíbrio entre as exigências do sistema familiar e as aspirações
de cada membro da família. O adolescente luta e muito para alcançar
a sua autonomia e a sua identidade. A nossa época e a nossa cultura
têm exaltado o individualismo e a necessidade de felicidade
individual, por um lado; têm sobrevalorizado a dimensão cognitiva e
social do sucesso e da felicidade (segurança material), por outro
lado e têm reduzido ao máximo a rede de apoio social individual.
A
gestão da relação pais-filhos, nesta etapa do ciclo vital,
constitui um desafio para todos. No plano comportamental, pais e
filhos passarão a estar menos tempo juntos e a realizar um menor
número de actividades e tarefas em conjunto. O adolescente
necessita, no seu dia-a-dia, cada vez menos dos pais. No plano
cognitivo, escutando as opiniões dos filhos, incentivando-os a
desenvolver ideias originais, facilitando-lhes a busca de informação
e o treino do debate, valorizando os seus pontos de vista e
aceitando-os como parceiros intelectuais, os pais ajudam os filhos a
diferenciarem-se e a tornarem-se adultos. Uns e outros podem, desta
forma, autonomizar-se mais facilmente e com menos custos emocionais.
Importa acentuar que o problema não está na crise, mas na forma
como ela é resolvida.
Nesta
reaprendizagem relacional entre pais e filhos, a forma como o
adolescente reavalia e reestrutura a sua relação com os pais é
também muito importante e um dos riscos que deve evitar é o da
clivagem entre as relações. Se aceitar que também precisa dos
pais, o adolescente tem muito mais hipóteses de tornar-se autónomo
e de alcançar a sua verdadeira identidade. O adolescente tem êxito
no seu processo maturativo quando sabe ser dependente, independente e
interdependente, quando demonstra uma elevada autoestima e quando é
capaz de ser congruente.
Um
dos problemas desta etapa do ciclo vital nas famílias é a gestão
do poder. Os pais
temem perdê-lo e os filhos querem alcançá-lo. Na perspectiva das
relações familiares, o poder pode ser definido como “a
influência relativa de cada membro da família na prossecução de
uma actividade.”(Relvas,
1996) Nesta acepção, pais e adolescente podem ter poder numa
articulação de complementaridades. O que o adolescente não pode
ter é o poder dos pais e os pais não podem reclamar para si o poder
do adolescente. O poder do adolescente consubstancia-se basicamente,
na possibilidade da livre experimentação de papéis, do uso da
provocação e do risco, da afirmação de novas competências
(comportamentais, cognitivas e relacionais) e da detenção de uma
clara posição negocial. O poder dos pais radica na imposição de
limites para o exercício do poder do adolescente.
Algumas
regras que poderão ajudar:
1º - não ter medo de perder o
amor do outro;
2º - saber ser flexível sem
perder a face, o que supõe ser coerente e não ter uma estratégia
básica de inflexibilidade;
3º - metacomunicar sobre as
dificuldades e sobre a relação;
4º - não depender de relações
exclusivas;
5º - ser criativo.
Estreitamente
associada à questão do poder está a problemática do conflito.
Não se pretende eliminar o conflito, mas criar condições para que
sempre que o conflito surja, possa ser ultrapassado. O conflito faz
parte da existência humana e tem subjacente duas questões:
divergência de posições e desejo de dominar. A divergência é
salutar na medida em que, no confronto da diferença, os elementos
podem conquistar novos saberes, novas posições, novas relações. A
divergência está relacionada com o crescimento e com o
desenvolvimento. Supõe apenas que o desejo de domínio não bloqueie
o seu potencial positivo. Por outras palavras, a resolução da
divergência não pode fazer-se pela anulação de uma das partes,
pela sua desqualificação ou mesmo pela sua desconfirmação. É
aqui que se abrem as portas para a negociação, o que supõe uma
metacomunicação sobre a relação. Numa família com filhos
adolescentes há que saber que “na
diferença, no desacordo de opiniões e nas diferentes visões do
mundo, vai-se construindo a autonomia e identidade de pais e filhos
adolescentes. Sem esse contraponto, sem a presença de linhas e
normas firmes estes não o podem fazer com segurança, já que é a
definição de limites imposta pela própria família que lhes
permite a primeira avaliação da justeza e correcção das suas
próprias convicções para depois partir com elas para o exterior
(onde também os adolescentes necessitam de outras fontes de suporte
como o seu grupo de iguais). Não havendo dentro da família com o
que se confrontar não haveria conflito, mas também não haveria
possibilidade de crescimento saudável porque, ou os adultos ou os
adolescentes ou ambos entrariam no jogo do
“como se”.
Assim
em vez da flexibilização relacional e da aceitação e gestão do
conflito, surge a tentativa da sua anulação pela via da rigidez
expressa quer na permissividade absoluta quer na repressão extrema.”
(Relvas,1996)
No
livro Vozes
e ruídos –
diálogos
com adolescentes
do Professor Daniel
SAMPAIO o Diogo de
dezasseis anos afirma: ”A
família não ensina o principal. A família ensina a educação,
como é que uma pessoa se deve comportar. Os meus pais ajudam-me
quando preciso; só que há conversas que, por muito liberais que os
pais sejam, não consigo ter com eles e com os meus amigos tenho
à-vontade. Conversas como ter estado na noite anterior com uma
rapariga; de ter ido a um bar e estar lá uma data de gente e de me
ter divertido muito. Com os meus pais são conversas de política,
economia, coisas assim.”
Na
continuação da conversa afirma: “Os
jovens têm tendência para contrariar os adultos porque começam a
pensar que já têm cabecinha, já podem pensar por si próprios e
não precisam que os adultos lhes digam o que têm de fazer e
acham-se muito inteligentes; acham que são de uma geração que sabe
o que as gerações anteriores sabiam, mas sabe mais. Que já
aprendeu muito que os pais não aprenderam e por isso acham-se
superiores a eles; são mais inteligentes e têm mais experiência de
vida. Por isso quando os adultos dizem uma coisa, eles fazem o
contrário porque acham que os adultos não podem ter razão.”
Continuando:
“O
adolescente pode fazer tudo. Pode fazer mais do que o adulto. Pode
fazer as coisas de uma criança e pode fazer as coisas de um adulto
enquanto que os adultos não podem fazer o que as crianças fazem e
as crianças não podem fazer o que os adultos fazem. Por exemplo: o
adolescente é capaz de ir jogar à bola
na
rua assim como é capaz de estar a ter uma conversa muito séria com
os amigos. A adolescência é espectacular, por isso uma pessoa pode
fazer tudo.”
E
continuando, o Diogo afirma: “Normalmente
os pais tentam sempre cortar ao máximo e são sempre os filhos a
puxar a corda e andar sempre assim nessa disputa. É a única maneira
de os filhos terem a liberdade. Se os filhos não tentassem ter essa
liberdade, não a teriam. Eu vejo por mim. Os meus pais são muito
liberais, mas mesmo assim se eu não pedisse para sair à noite, eu
não saía. Os meus pais nunca iriam incentivar o filho a sair à
noite. Pede-se sempre tudo e fica-se com o que os pais dão. Assim
temos a certeza de que temos tudo o que é possível.”
E
o Dr. Daniel Sampaio faz o seguinte comentário: “Aqui
está o essencial. O jovem quer conseguir e atingir tudo. Aos pais
compete ajudar a refrear
(dar
luta ao jovem para que o que consegue lhe saiba a vitória sua e não
a mendicância. Não esquecer que pelos instintos o homem precisa de
luta na conquista e vitória. É isso que lhe dá prazer, razão de
viver.)
Da
negociação resulta a dose certa o 'quanto baste' para a modificação
necessária.
A
dimensão do amor é fundamental em toda esta mudança. Só através
de um clima afectivo é possível estabelecer laços que permitam a
discordância, mas não impeçam o crescimento psicológico
individual de cada elemento da família, particularmente do
adolescente.”
Nas
famílias com filhos adolescentes adoptados esta etapa do ciclo vital
da família é decerto um dos períodos mais difíceis do
desenvolvimento individual do adoptado e do desenvolvimento deste
sistema familiar. Os pais de criação vivem num constante medo de
recriminações ou até abandono por parte do adoptado, querendo
castigá-los pelo facto de o(a) terem adoptado e assim privado do
contacto com os pais biológicos. As dúvidas identitárias que
frequentemente assaltam o adolescente estão, neste caso,
amplificadas: o desejo de o adolescente querer conhecer a sua família
biológica, as suas raízes geográficas, as histórias do passado
não significa que ele queira deixar a família adoptiva, mas apenas
que quer unir as várias partes da sua história para poder continuar
a tarefa da construção da sua identidade. Neste período de
profunda insegurança e grande transformação, é importante que
pais e filhos adoptivos tenham uma confiança mútua, se sintam
afectivamente gratificados e demonstrem flexibilidade de forma a
poderem superar as crises que necessariamente ocorrerão. Neste
sentido, esta é uma fase em que as famílias adoptivas podem
necessitar novamente de apoio familiar e social (eventualmente
técnico): o poder metacomunicar sobre os seus medos, sobre as suas
angústias, o poder partir à procura de novos encontros com o
passado são tarefas dolorosas que despertam muita ambivalência em
ambos os pólos desta díade (pais-adolescente), mas que são
necessárias para que o seu desenvolvimento possa continuar a
processar-se satisfatoriamente.
Sendo
a adolescência um período em que o grupo de pares desempenha um
enorme papel, o adolescente adoptado pode inibir-se de buscar esse
apoio. Face a estas múltiplas questões o adolescente pode tomar uma
de três opções:
- A metacomunicação sobre as suas dúvidas e o seu sofrimento (com os pais adoptivos, com outros familiares ou com outras pessoas da sua rede social) seria a opção mais desejável e satisfatória, mas nem sempre é a mais seguida;
- A provocação e a projecção da agressividade sentida é um recurso frequente que se instalará ou será ultrapassada em função da resposta do meio e da evolução das angústias e dos medos do adolescente;
- as vividas depressões ou a apatia constituem uma outra saída habitualmente mais problemática.
A
aparente ausência de problemas, dúvidas ou angústias deve
constituir um sinal de alerta, pois este processo é naturalmente
complexo e doloroso e esta pseudocalma mais não é do que negação
de tais dificuldades.
Em
todos os grupos e por maioria de razão no grupo familiar, as pessoas
desempenham, consciente ou inconscientemente, um determinado papel
e função
na relação com os outros. Esta distribuição de papéis e funções
não é verbalizada e pode mesmo não ser consciente. Mas o facto é
que, no jogo recíproco de relações na família, cada membro da
família espera que os outros desempenhem um determinado papel.
Uma
outra noção que convém recordar é a dos mitos
familiares
que corresponde às crenças enraizadas na família referentes à
explicação que esta dá aos acontecimentos e à imagem que tem de
si própria. Estas crenças transmitem-se através das gerações,
dos ascendentes aos descendentes e são tributárias dos mitos que
existem a nível social, étnico ou nacional.
Uma
das noções que mais nos interessa do ponto de vista da saúde
mental na família é a noção de normalidade/patologia da família
e dos seus mecanismos de defesa. A normalidade na família depende,
por um lado, da sanidade de cada um dos membros e, por outro lado, do
seu modo de relação recíproca.
As
famílias cujos membros têm uma clara diferenciação do Eu são
capazes de manter um funcionamento de inter-relação familiar nos
próprios limites da família sem necessidade de recorrerem a pessoas
estranhas a ela para resolverem os seus problemas intrafamiliares e
os problemas que a família encontra no seu dia-a-dia no contacto com
a realidade exterior.
Pelo
contrário, quando os limites da família não se encontram bem
definidos, o que corresponde a um grau de diferenciação do Eu
individual e familiar insuficiente, existe um evitamento ou demissão
da responsabilidade da função individual na família; os seus
membros tenderão então a explicar as dificuldades, recorrendo aos
mitos familiares para conservarem a estabilidade e o equilíbrio no
seio da família.
A
terapia para a família está sempre ligada a uma situação de
crise. Alguma coisa aconteceu que perturbou o equilíbrio familiar.
Na grande maioria dos casos, um dos membros da família coloca-se no
centro de um movimento que visa a autonomia, lutando para se libertar
do papel que as identificações projectivas dos pais lhe atribuiram.
Por outro lado, pode acontecer também que a actividade das partes
projectivas se torne de tal modo ameaçadora para a unidade familiar
que determinados organismos sociais acabem por intervir, chamando a
atenção da família para a existência do problema.
A
luta do adolescente pela liberdade é dolorosa. Quando devolve aos
pais as projecções destes, o adolescente talvez sinta uma sensação
de vazio, na medida em que se acha então privado de uma parte de si
que era a base da sua identidade. Isto poderá levar eventualmente à
depressão, à perda da autoestima, aos sentimentos de
desvalorização, de despersonalização, a tentativas de recuperar a
projecção e a actos de vingança. O adolescente também poderá
sentir que a sua recusa em pactuar está a comprometer a integridade
das boas aspirações dos seus pais para si, o que o transforma em
mau filho. Além disso, os pais vivem a devolução dos seus aspectos
conflituais rejeitados como ataques, podendo estes estar a dar origem
a ansiedades paranóides e a contra-ataques consequentes ao filho.
A
tarefa do terapeuta é procurar introduzir um tipo particular de
processo na sua própria actividade psíquica, processo que se
localize entre o impacto que a sessão sobre ele exerce e a sua
devolução à família da experiência desse impacto. O terapeuta
está ali para ajudar a família a reconhecer o montante de
identificações projectivas que circulam entre os seus membros, o
modo como estes activam, as ansiedades que os levam a esse
comportamento. Espera-se que, por este caminho, os membros da família
se tornem capazes de reconhecer e diferenciar as suas necessidades
como indivíduos separados e de, ao mesmo tempo, modificarem,
desenvolverem e enriquecerem as suas aspirações familiares
interiorizadas a fim de que as relações entre eles se tornem
expressão de uma família em evolução.
Não
havendo escolas ou cursos para aprender a ser pais, seria
interessante que na comunidade (p. e. paroquial) houvesse espaços
mais ou menos formalizados em que este tipo de troca de experiências
e de apoio pudesse ocorrer.
8. Famílias com Filhos Adultos
Os filhos cresceram, saíram de casa e já têm as suas próprias casas. A relação entre o casal e entre o casal e os seus filhos tem de se alterar para continuar a ser saudável.
Agora o casal tem de cuidar do nós, do eu e do tu, isto é, tem de, na continuidade de um processo em curso, criar as condições necessárias ao seu desenvolvimento e isto obriga a uma série de mudanças. Normalmente a paixão do namoro e dos primeiros tempos de casados deu lugar a um amor mais calmo, mas também mais maduro feito de respeito mútuo, de negociação, de necessidade e satisfação recíprocas, de metacomunicação. Ou então deu lugar à habituação, à inércia ou à simples necessidade de manutenção.
Esta é, para o casal, uma etapa de liberdade e de depressão dada a saída dos filhos de casa e a reconversão das tarefas parentais. Poder-se-ia ir pelo lado negativo, mas parece muito mais interessante e útil colocar a ênfase no potencial transformador destas mesmas modificações. O nós do casal pode encontrar novas formas de complementaridade e novos campos de expressão da solidariedade e da intimidade conjugais. A negociação pode estar mais facilitada pelos anos de experiência conjugal e pela menor necessidade de uma excessiva afirmação da simetria comunicacional no interior do casal. Nesta reorganização da vida do casal há um aspecto que parece fundamental: que o nós do casal não abafe o eu e o tu de cada um dos cônjuges. Isto é importante por duas razões:
numa relação a dois torna-se impossível retirar gratificação da complementaridade sem simetria comunicacional.
é importante que qualquer um dos cônjuges se prepare para poder sobreviver ao outro e isso passa necessariamente, pela preservação da parte individual do casal e pela existência de uma rede social de apoio significativa.
De uma forma directa ou indirecta, os pais da família nuclear passam a ocupar-se mais dos seus próprios pais, numa inversão da complementaridade comunicacional. É importante que, entre ambas as gerações, não se perca a simetria comunicacional e que a geração intermédia possa respeitar e, tanto quanto possível, incrementar as áreas de autonomia da geração mais idosa. Isto aumentará a autoestima destes últimos e evitará o perigo da escalada simétrica entre as duas gerações. A questão do poder na relação coloca-se neste período, de forma tão ou mais aguda quanto a geração mais idosa se sente despossuída da sua autonomia e da sua capacidade de decisão. A manutenção da autonomia por parte dos mais velhos é um aspecto que levanta inúmeras questões e dúvidas aos mais novos. De novo sentimos que a metacomunicação e a clareza da relação são os maiores aliados para a resolução das possíveis tensões assim como para a edificação de um quotidiano que pode ser assaltado por muitas dúvidas, medos e angústias. Por vezes, a manifestação clara de dependência que a geração mais idosa manifest,a traduz apenas a sua maneira de pedir e/ou garantir afecto e a presença da geração intermédia.
A gestão desta problemática relacional que tem por pano de fundo a dinâmica dependência-autonomia e a questão do poder, é muito importante para a geração intermédia, tanto no que diz respeito à sua relação com a geração mais idosa como consigo própria. Saber que ajudaram os seus pais a envelhecer e a partir em paz é uma memória nutriente que os auxilia a equacionar a sua própria velhice individual. A roda da vida não pára e as gerações e as famílias vão-se alternando no cumprimento das suas tarefas básicas.
9. Estudo de caso
Dados:
O pedido de consulta é feito por uma tia materna de uma jovem de quinze anos, Liliana, enurética primária, por indicação de um colega psicólogo.
Pelo preenchimento da ficha telefónica ficamos a saber que a Paciente Identificada(PI) veio viver há mais ou menos seis meses (início do ano lectivo) com esta tia e o avô materno por razões que se prendem com a sua progressão académica.
A família da Liliana é composta pelo pai (45 anos, funcionário autárquico), pela mãe (44 anos, professora do ensino básico) e por uma irmã (Catarina, 12 anos, frequenta o 7º ano). A tia é professora do ensino secundário e o avô é reformado.
A tia refere que os pais nunca se interessaram por resolver este problema. Quanto ao sintoma, a tia informa que a Liliana sempre foi assim desde bebé e os médicos dizem que é de origem nervosa. A tia acha que o problema se deve ao facto de a Liliana achar que a mãe gosta mais da irmã.
A primeira sessão foi marcada para dali a quinze dias e foram convocadas a família nuclear e a tia. Na pressessão os terapeutas pensaram
1) dados específicos sobre a família. Estes aspectos poderiam apontar no sentido de dificuldades em termos de organização estrutural da família; da fase do ciclo vital que a família nuclear atravessa – adolescência dos filhos: dificuldades nos movimentos de separação; dificuldades entre a família de origem e a família nuclear.
2) sintoma: uma prima paterna também foi enurética.
3) a vontade da tia em trazer toda a família à terapia;
4) o porquê deste pedido.
As diferentes leituras:
-
estrutural:
enfatizando a questão das fronteiras;
-
desenvolvimental:
assinalando a importância dos movimentos de separação dos mais
jovens;
- transgeracional: evidenciando o valor explicativo da família alargada;
-
comunicacional:
apontando para o significado do sintoma enquanto controlo, bem como
para as eventuais distorções comunicacionais, isto é, correspondem
às diferentes visões do mundo que a informação contida na ficha
telefónica neles despertou.
A
entrevista:
Da
esquerda para a direita, em circunferência ficaram: terapeuta 1,
terapeuta 2, tia, PI, irmã, pai e mãe. A mãe e a irmã aparecem
com um aspecto mais leve e mais feminino em oposição ao PI e à tia
(vestuário, penteado, postura). O pai é uma pessoa afável, com um
ar sorridente e atento. Na entrevista, manteve-se silencioso,
parecendo algo à parte ou distante do grupo das mulheres. A
entrevista girou em torno de três tópicos fundamentais:
- Identificação dos problemas sentidos pela família;
Para
todos a enurese da
Liliana.
- Explicações da família para o sintoma;
- Caracterização do sintoma.
Como
tentativas para resolver o problema, depois das idas aos médicos e
na ausência de qualquer causa para a enurese, implementaram uma
dieta alimentar (iniciativa da mãe e da tia) que consiste em não
comer sopa e fruta sumarenta à noite. Antes de ela se ir deitar
recomendam-lhe que não faça xixi e já lhe prometeram e ofereceram
prendas como reforço positivo.
Durante
o intervalo, a equipa considerou que era urgente:
- Libertar a Liliana da pressão familiar, particularmente da mãe e da tia, relativamente ao problema;
- Dar-lhe alguma autonomia permitindo-lhe, senão o controlo do sintoma, pelo menos a sua avaliação de uma forma mais íntima. Decidiu-se ficar a sós com a Liliana depois de concluída a sessão com a família.
Na
conclusão da sessão, fez-se um contrato de cinco sessões tendo
como objectivo o alívio da pressão/preocupação sentida por todos.
Solicitou-se à família que eliminasse a dieta e deixasse de se
despedir da Liliana com a fatal recomendação: Vê
lá se esta noite não fazes!
A
sós com a Liliana pediu-se-lhe que fizesse a automonitorização do
comportamento enurético assinalando os dias em que não faz xixi.
Esse registo seria visto somente por ela e pelos terapeutas.
Na
pressessão da segunda consulta, consideraram-se relevantes os
seguintes dados:
- a confirmação da delegação da função parental na tia, não só em relação à enurese, mas também em relação aos estudos da Liliana;
- A desqualificação dos pais e particularmente da mãe feita pela tia a todos os níveis (inclusivé profissional);
- O facto de, na família nuclear, não surgirem indícios relevantes de dificuldades de estabelecimento de limites ou organização hierárquica nem da gestão da separação/autonomização das filhas;
- O facto de, tanto o pai como as relações da família nuclear com a sua família de origem não aparecerem espontaneamente no discurso da família.
Na
segunda consulta:
Elaborou-se
o genograma
da família que é
um diagrama visual da árvore genealógica familiar construído em
conjunto com a família na sessão terapêutica.
A
avó materna é descrita como uma pessoa rígida e controladora que
ninguém ousava contrariar. Só a filha mais nova, a tia, se
libertava um pouco desse controlo, mas sem a afrontar. Opôs-se ao
casamento da filha mais nova e sempre tirou da mais velha a ideia de
casar. Falecera há pouco tempo de doença súbita.
O
avô materno, reformado de uma profissão contabilísticofinanceira,
é descrito como oposto. De origens muito mais humildes, passava o
controlo e a tomada de decisões para a esposa. Ainda hoje tem de ser
controlado pelos outros o que é um problema para a família.
A
família paterna é grande, muito unida, de origem rural. Esta
família é desvalorizada pela tia como tendo baixo nível cultural e
educativo. Mãe e filhas parecem gostar muito dessa família. No
entanto os pais eram bastante rígidos.
A
relação entre mãe e tia parece muito difícil: a tia, sempre
dentro das normas da família, só estudava, convivia pouco enquanto
a mãe era o oposto. Esta parece estar sempre em dívida com a irmã
dando a entender que só pôde seguir a sua vida e casar devido à
ajuda da irmã. A tia acha que nunca foi recompensada pelo que fez.
No
intervalo, os terapeutas reuniram-se e reflectiram sobre a
confirmação da rivalidade entre mãe e tia. Surge a ideia de que a
tia sempre cuidou de todos sem que os outros, no momento adequado, se
importassem muito com isso. Parece importante que a família possa
metacomunicar sobre esta problemática.
Na
conclusão da sessão: pediu-se que pensassem em conjunto e
identificassem algumas pequenas histórias significativas dentro da
história familiar que tinham acabado de contar. Poderiam ser alguns
dos episódios já contados ou outros. O importante era que em
conjunto as seleccionassem.
A
sós com a Liliana verifica-se que fez xixi duas a três vezes por
semana o que ela associa aos testes escolares.
Pressessão
da terceira consulta:
Reavalia-se
a hipótese que parece parcialmente confirmada. O problema parece não
estar centrado num conflito mãe-tia, mas numa triangulação
tia-mãe-PI. A Liliana poderá sentir-se presa num conflito de
lealdades agravado pela atitude da tia em relação à família
paterna que a PI tanto gosta. O equilíbrio controlo-descontrolo que
atravessa toda a história da família materna pode ser a pista para
um tópico comum às famílias que permitisse desmontar o jogo e se
pudesse transformar num elemento de mudança no sentido do
reenquadramento da situação.
Terceira
consulta:
A
tia faltou. Os presentes dizem ter pensado na tarefa, mas não
conversaram nem decidiram que histórias contar.
Foram
dados dez minutos a sós aos presentes para conversar sobre o
assunto. Já a sós optaram que cada elemento contasse um episódio.
Fora da sala, os terapeutas observaram a facilidade de contacto e
diálogo entre pai e filhas parecendo que a mãe se colocava um pouco
à margem desta interacção.
No
intervalo houve oportunidade para a equipa reflectir sobre a
confirmação da ideia de que o controlo-descontrolo é importante na
família. A Liliana parece ser o elemento mais expressivo na geração
mais nova. Seria interessante que a família pudesse metacomunicar
sobre este tema.
Depois
do intervalo, é-lhes solicitado o cumprimento de uma tarefa ritual.
Pede-se que, de forma ritual (cada um à vez, com ordem e tempo
determinado) atribuam um nome a cada uma das histórias e dêem três
boas razões para se ser controlado e três boas razões para se ser
descontrolado. Pede-se a participação da tia.
A
sós com a Liliana, verifica-se que a enurese melhorou, mas as notas
baixaram; só que já não se preocupa tanto com isso.
Pressessão
da quarta consulta:
Transformação/reafinação
da hipótese. Emerge a crença da família em que os controlados são
infelizes, sem vida própria e destinados a cuidar dos outros. Uma
vez que a justificação académica é pouco consistente; parece ser
este o destino da Liliana ao ser mandada para junto da tia, ficando
separada de uma família feliz.
Para
esta família os descontrolados são mais felizes e mais capazes.
Para a Liliana manter-se enurética e com descontrolo nos estudos
pode ser uma ponte para os descontrolados.
Quarta
consulta:
Da
esquerda para a direita, em circunferência ficaram: tia, irmã, pai,
P.I., mãe, terapeuta 2, terapeuta 1. Aparentam um ar tenso.
Cumpriram a tarefa que o pai secretariou e cujos resultados comunica.
O controlo aparece-lhes como autocontrolo, enquanto resposta adequada
às situações de descontrolo com o objectivo de criar bom ambiente.
A mãe acrescenta como causa do descontrolo a insegurança, enquanto
a irmã apresenta como exemplo os seus pesadelos e o medo do escuro.
O pai encara o descontrolo como fuga a um excesso de controlo sendo
assim justificável, se não for por motivos fúteis.
No
intervalo, o supervisor admite que a tensão da família não tenha a
ver só com a mudança de contexto, mas a própria tarefa. Acha que é
de insistir nesta hipótese. Poder-se-á tentar que a família faça
estas ligações no sentido de equacionar como os adultos podem
ajudar os mais novos a fazer a passagem entre os diversos tipos de
descontrolo.
Conclusão
da sessão:
Metadiálogo
com a família sobre a própria tarefa.
Como
foi fazer a tarefa?
Como
se sentiram?
Ficaram
a conhecer-se um pouco melhor?
Os
terapeutas vão orientando a conversação conforme o planeamento
feito no intervalo e a família conclui que todos se descontrolam.
Admitem que provavelmente também se podem aprender formas adequadas
de descontrolo e que os mais velhos podem ajudar com a sua
experiência. Os terapeutas concluem, considerando a evolução de um
descontrolo para outro como uma forma de crescimento que poderá ser
ensinado e orientado pelos mais velhos.
Pressessão
da quinta consulta:
Fazer
uma entrevista, mantendo apenas as regras básicas da entrevista
familiar. O objectivo é ver agora o tipo de interacção e
preocupações espontâneas da família e perceber até que ponto se
mantêm centradas na P.I.
Quinta
consulta:
Todos
concordam que a Liliana apresenta grandes melhoras em relação à
enurese. O resto da sessão é ocupado com os projectos e
expectativas para férias.
No
intervalo, é decidido que na conclusão se marcaria unicamente a
próxima e última sessão.
A
sós com a Liliana, verificou-se que desta vez não trouxe e não fez
a automonitorização. Este facto foi enquadrado como autonomia
perante os terapeutas e afirmação do seu autocontrolo.
Pressessão
da sexta consulta:
Fazer
a avaliação global do processo e avaliar até que ponto a família
confirma as mudanças ou se exprime ainda necessidade de ajuda.
Sexta
consulta:
Falam
que as férias foram boas. Estão preocupados com o novo ano escolar.
A tia afirma que vai mudar: vai cuidar de si e fazer o que gosta. A
Liliana volta a trazer a monitorização. A equipa decide que a
família se propõe enfrentar as novas dificuldades sozinha e conclui
o processo afirmando a sua disponibilidade caso voltem a necessitar
de ajuda.
Analisando
este processo, os terapeutas concluíram que ficou claro a
coconstrução de hipóteses e que esse processo permite desafiar as
velhas histórias e as hipóteses prévias. Em cada momento
desenhando um novo mapa que não é o mapa da família nem o do
terapeuta, mas que pode favorecer a mudança do mapa de cada um. A
hipótese permite ainda descobrir o padrão que liga terapeutas e
clientes, criando o sistema terapêutico e conduzindo por três
parâmetros fundamentais da terapia:
Parâmetro
ético:
entre as histórias do terapeuta, da família e de cada elemento da
família deve existir um ajustamento nas experiências, percepções
e sentimentos;
Parâmetro
estético:
esse ajustamento é procurado pelo terapeuta, não através de uma
qualquer forma de mimetismo, consenso ou acordo, mas através da
variação e diversificação do seu comportamento e das suas
histórias. Aqui se encontra a arte do terapeuta;
Parâmetro
pragmático:
na busca desse ajustamento o terapeuta recorre a várias ferramentas,
isto é, aos modelos e técnicas que no momento lhe parecem mais
úteis. Os modelos são então fonte de desenvolvimento das hipóteses
a introduzir na conversa terapêutica; expandem o leque de
alternativas possíveis conquanto não sejam rigidamente encarados
como verdades, mas como lentes que proporcionam uma visão útil na
situação.
A
coconstrução é hipotetização e uma metodologia de mudança
coevolutiva, pois não só sustenta a continuidade do processo
terapêutico como facilita e promove a mudança do sistema de crenças
dos seus principais protagonistas (terapeutas e elementos da família)
através da cocriação de histórias que reflectem e (re)criam essas
crenças.
PARTE III
10. As Teorias do Comportamento
Após
a abordagem da terapia familiar psicanalítica e sistémica considero
interessante debruçarmo-nos sobre as várias teorias de tratamento
de comportamentos, já que após detectar a causa e o causador dos
distúrbios do paciente identificado, urge anular a causa na medida
do possível. Em termos de atitudes e comportamentos, parece-me que
ninguém tem a veleidade de alterá-los durante um tratamento, mas
sim fazer o causador do problema reconhecer que está mal e que
provoca o mal-estar na família, no paciente identificado PI) e a si
próprio porque com certeza não se sente feliz, pois é prisioneiro
da própria rede que talha para os outros.
Ganhando
este conhecimento e sendo apoiado pelo terapeuta para fazer uma nova
aprendizagem em ordem a ganhar novas atitudes e novos comportamentos,
ele(a) próprio(a) irá trabalhando a sua personalidade com vista à
mudança e ao reequilíbrio do bem-estar da família.
10.1. As Teorias Behavioristas da Aprendizagem
E.
THORNDIKE e a Lei do Efeito
(1898)
Na
sua formulação, a satisfação
do sujeito após uma resposta, aumenta a força de conexão entre
estímulo e a resposta. Thorndike
constatou que, se este primeiro segmento da sua lei se verificava
regularmente, o mesmo não acontecia para o aspecto punitivo. Aqui a
punição enfraquece uma resposta de modo irregular ou nem isso. A
importância deste facto em terapia:
Uma
aprendizagem efectua-se melhor através de um sistema de recompensas
do que através de mecanismos punitivos.
V.
B. F. SKINNER e o Condicionamento Operante
(1972)
A
análise de condutas operantes
do ser humano põe em evidência um grande número de comportamentos
que não foram adquiridos por uma aprendizagem ligada às
contingências
do meio físico. A criança pode aprender a não se queimar no fogo
sem ter de viver a experiência de uma queimadura. Os seus pais
ter-lhe-ão dito que o fogo é perigoso e doloroso. Um comportamento
de evitamento, que é adquirido verbalmente e sem dor, que é
estabelecido por regras próprias da comunidade verbal enquanto que,
se aprendesse por se ter queimado, seria uma aprendizagem modelada
por contingências. Toda a sociedade tem um grande número de regras:
regras morais, religiosas, políticas e administrativas, máximas,
provérbios, ... que definem uma cultura.
O
que acontece se mudam as contingências, mas não as regras?
Estas
podem tornar-se fonte de tensões e de conflitos; por exemplo, as
tensões entre gerações têm origem em parte, no facto de que as
regras propostas pelos pais não correspondem aos reforços que o
adolescente encontra nas contingências quer nas regras transmitidas
pelos seus iguais.
A
elaboração das regras resulta de uma análise de contingências às
quais o indivíduo é exposto directamente ou de um exame dos
sistemas que regem essas contingências.
Ao
nível individual o ser humano é capaz, graças à linguagem, de uma
autodescrição que consiste em tomar consciência (identificar)
variáveis que controlam o seu próprio comportamento. É desta
autodescrição que ele pode retirar as regras.
10.2. As Teorias Cognitivas da Aprendizagem
Os Modelos Mediacionais da Aprendizagem
Mahoney
(1974) define três modelos que cobrem o essencial das pesquisas na
perspectiva mediacional:
1
– o condicionamento interno “covert
conditioning”
2
– o tratamento da informação “information
processing”
3
– a aprendizagem cognitiva
O
interesse destes três modelos é o de inventariar as orientações
de investigação de um modo que simplifique a sua leitura.
1.
A maior parte dos behavioristas analisou o universo interno, privado,
constituído por pensamentos, imagens, sensações, ... e postulou
que obedecia às mesmas leis que os comportamentos públicos,
externos.
Se
aceitamos este postulado, deveríamos então encontrar estímulos,
respostas e reforços internos, privados.
2.
As teorias cibernéticas e a evolução da tecnologia dos
computadores estão incontestavelmente na base deste modelo que vê o
ser humano como um elemento activo entre o input
do estímulo e o output
da resposta.
Nesta
perspectiva o organismo não reage a um meio real no sentido físico
do termo, mas sim ao que capta enquanto organismo específico a
partir deste meio. O que eu percepciono do universo real é o
resultado de uma filtragem, de uma selecção operada por estruturas
filogenéticas e ontogenéticas. Esta selecção natural implica a
existência de percepções diferentes de um indivíduo para outro a
partir de um estímulo externo idêntico. A resposta é o resultado
de uma série de modificações exercidas a nível central pelo
tratamento da informação.
Categorias
de processos que
transformam deste modo os estímulos:
- A atenção
A
atenção é um fenómeno selectivo. O nosso sistema nervoso central
é constantemente bombardeado por estímulos de todos os tipos tanto
internos como externos. Nós só retemos alguns deles. Se assisto a
uma conferência apaixonante, posso não ver a cor do fato do
conferencista; não ouvir os meus vizinhos que falam sobre o último
jogo de futebol da sua equipa preferida; não sentir o desconforto do
lugar em que estou sentado.
Por
outro lado, em alguns casos, somos igualmente capazes de exercer um
controlo voluntário sobre uma atenção específica. Numa reunião
mundana, poderia estar interessado no que se diz num círculo de
discussão próximo do meu e continuando a reagir educadamente ao meu
próprio círculo de discussão. Isto deve-se à nossa capacidade de
executar dois tipos de comportamentos simultaneamente sendo um dos
comportamentos, rotina. Posso conduzir um carro ao mesmo tempo que
reflicto sobre um capítulo de um livro que estou a ler. Só uma
estimulação fora do vulgar me faria abandonar a minha reflexão
intelectual para voltar a factos mais terra-a-terra.
A
atenção pode também ser determinada por factores ligados às
minhas aprendizagens anteriores ou à especificidade de um ambiente.
Cada sujeito selecciona deste modo as suas estimulações do mundo
exterior em função de uma certa expectativa. O resultado pode ser
uma distorção ao nível do segundo mecanismo da informação: a
codificação.
- a codificação e a descodificação
O
nosso cérebro dispõe de uma memória
a curto prazo e de
uma memória a longo
prazo. O limite entre
estas duas memórias está muito mal demarcado.
Os
principais factores que influenciam a memória a curto prazo são o
tempo de exposição significativo a um estímulo, a repetição
desse estímulo e a sequência temporal dos estímulos apresentados
(numa cadeia de estímulos retemos melhor o primeiro e o último do
que os estímulos intercalares). O factor essencial da memória a
curto prazo parece ser o próprio sistema de codificação.
Há
algumas informações que parecem gravadas para sempre na nossa
memória.
O
que é que explica que um material seja retido ou esquecido?
Parece
evidente que um estímulo ou uma situação que só teve na nossa
vida uma existência temporária e pouco significativa se esfume
progressivamente da nossa memória. Uma outra forma de esquecer é
viver, após uma situação ou após um dos comportamentos emitidos,
numerosas situações diferentes que interferem com o armazenamento
informacional anterior.
Para
Mahoney, a memória por imagens é mais antiga do que a memória que
utiliza a codificação linguística. Não poderíamos analisar o
facto de, nas fobias a objectos externos, as terapias que utilizam
sistemas de imagens objectivas ou subjectivas obterem melhores
resultados do que uma terapia estritamente verbal?
- A motivação activa e o comportamento.
A
nossa história comportamental anterior e as nossas aprendizagens,
por observação de condutas dos outros, dão-nos cognitivamente uma
imagem daquilo que é bem ou mal, bom ou nocivo, desejável ou
indesejável ...
A
partir destes padrões autoavaliamo-nos cognitivamente. Servimo-nos
de reforços positivos ou negativos consoante analisamos os nossos
comportamentos internos e externos como válidos ou não em
comparação com estas referências.
As
mudanças de comportamento não são só devidas a associações de
acontecimentos do mundo exterior, mas também à representação
cognitiva que fazemos do nosso universo. Regra geral, só somos
sensíveis às consequências concretas dos nossos comportamentos, se
constatarmos a relação existente entre os acontecimentos. O
terapeuta sabe qual a mudança comportamental importante que pode
desencadear no seu paciente só por pôr em evidência as relações
causais entre antecedentes e consequentes de comportamentos no plano
cognitivo. A percepção cognitiva das contingências do meio é um
elemento fundamental para explicar toda uma série de distorções e
paradoxos. Uma vez adquirido no plano cognitivo, o comportamento
entra numa certa rotina e já não é necessária uma consciência
permanente durante a sua execução.
As
capacidades cognitivas de que dispomos, permitem-nos resolver a maior
parte dos nossos problemas através do pensamento
mais do que pela acção directa. Os processos simbólicos, em
particular a linguagem, as operações cognitivas e as suas
inter-relações são os veículos essenciais do pensamento. Pela
manipulação destes símbolos, podemos compreender as relações
causais entre acontecimentos, deduzir novas formas de conhecimento,
resolver problemas e prever as consequências de uma conduta antes de
a iniciar. Assim os processos do pensamento tornam-se
progressivamente independentes das suas referências concretas
imediatas.
Para
Kuhn
as ciências evoluem através de paradigmas:
o paradigma é um conjunto de leis, de teorias, de aplicações e de
técnicas que fornecem à pesquisa científica modelos
coerentes aceites por todos.
10.3. O processo terapêutico nas terapias behavioristas
A
acção psicoterapêutica deve compreender uma série lógica de
operações indissociáveis:
- fazer um diagnóstico tão preciso quanto possível a partir dos dados recolhidos;
- estabelecer um plano de tratamento tendo em vista atingir objectivos claramente definidos;
- avaliar a adequação e especificidade da terapia a partir dos resultados observados.
O
modelo proposto por Kanfer
e Saslov
(1969) tem o propósito de investigar no comportamento as classes de
variáveis a partir das quais seria possível determinar os factores
actuais que controlam esses comportamentos, os estímulos sociais e
fisiológicos assim como os reforços de que estes comportamentos são
função. O objectivo desta análise é especificar que
comportamentos devem ser modificados, saber em que condições foram
adquiridos, conhecer os factores que os mantêm actualmente. Graças
a estes dados, poderemos especificar os processos terapêuticos a
utilizar para atingir a modificação comportamental. Kanfer e Saslov
propõem, para realizar este programa, sete categorias de análise:
- Exame do problema específico. Trata-se de precisar, até ao mínimo detalhe, todos os acontecimentos ou situações relativos ao problema: por exemplo a sua frequência, a sua intensidade, a duração, as formas que pode tomar, as situações que o podem rodear ...
- Clarificação da situação-problema. Examinar-se-á aquilo que no ambiente do paciente concorre para manter o comportamento-problema assim como as consequências que este comportamento pode ter no próprio meio e no paciente.
- A análise motivacional. O seu objectivo é precisar aquilo que para um dado indivíduo, em função de uma história pessoal única, constitui um reforço (quer seja positivo ou negativo). A lista de reforços assim obtida será, em seguida, utilizada como alavanca terapêutica.
- Análise desenvolvimentista. O terapeuta fará um exame preciso do passado, tanto biológico como sociocultural, do paciente, das condições específicas nas quais ele evoluiu ao longo da sua existência.
- Análise do autocontrolo. Visa conhecer os meios e a importância dos métodos de que dispõe o paciente ao nível do seu autocontrolo na vida do dia-a-dia. Da mesma maneira, procurar-se-á saber quais foram as consequências positivas ou negativas deste autocontrolo noutras circunstâncias.
- Análise das relações sociais. O exame não dirá só respeito à sociabilidade geral do paciente, mas também à influência que ele próprio exerce sobre as pessoas significativas do seu meio ou inversamente até que nível estas podem influenciar o seu comportamento. Isto permite fazer uma ideia precisa das contingências sociais nas quais o paciente é levado a evoluir.
- Análise do meio sociocultural e físico. Tem por objectivo analisar o paciente nas suas possibilidades e limitações em relação às normas-padrão nas quais ele evolui.
Como
salientam Ulmann
e Krasner
(1969), na realidade prática quotidiana, o terapeuta behaviorista
interessa-se por aquilo que o seu paciente faz ou não faz, pelo
problema que o levou a consultá-lo. Uma vez posto este problema, o
terapeuta tentará conhecer as condições em que este comportamento
aparece ou não aparece. Consoante a natureza do problema
apresentado, seleccionará as fontes de informação que lhe
parecerem pertinentes em relação a esse problema. Depois tentará
reformular em termos comportamentais os acontecimentos que lhe acabam
de ser descritos. A partir daqui escolherá um tratamento.
A
entrevista
continua a ser a ferramenta fundamental de análise. Penso que cada
terapeuta estabeleceu ao longo do tempo o seu próprio esquema de
anamnese. A atitude do terapeuta behaviorista na sua anamnese é
directiva.
O comportamento do terapeuta é o de um ser humano que investe
juntamente com um dos seus semelhantes na resolução de um problema.
É uma relação de ajuda, de contacto terapêutico no qual se
envolve aceitando a sua parte de responsabilidade tanto no insucesso
como no sucesso.
Qual
a qualidade das
informações
recebidas?
Elas
dependem de uma série de variáveis. Da
parte do cliente:
a sua inteligência, o seu estado emocional na situação de
entrevista, a percepção cognitiva que tem de si próprio que o
levará a seleccionar e a modificar a informação, a sua motivação
...
Da
parte do terapeuta:
o seu grau de empatia que dá confiança ao paciente e o tranquiliza,
a constante vigilância dos pormenores que podem ser cruciais, a sua
avaliação das distorções cognitivas das afirmações do paciente,
... É aqui que se faz o verdadeiro trabalho clínico; aquele que,
apesar de todas as contribuições teóricas e técnicas, permanece o
mais individualizado.
Cada
terapeuta tenta assegurar um enquadramento teórico que o leva a uma
interpretação do que se passa no decurso da sua terapia elaborando
um esquema descritivo da evolução do tratamento. Esta
esquematização não pode ser feita sem que se estabeleça uma
escolha relativamente aos factos que são retidos. A análise do
resultado estabelece-se geralmente sobre uma impressão global que se
supõe confirmar ou infirmar a interpretação. Esta prova do
resultado, seja ele positivo ou negativo, repousa unicamente nas
pressupostas capacidades do terapeuta para integrar os fenómenos nos
quais teve um papel.
11. Relações terapêuticas
Kanfer
e Goldstein
(1975) definem cinco objectivos
terapêuticos
fundamentais que se retiram da diversidade dos problemas postos ao
terapeuta:
- Reduzir o sofrimento ligado aos fenómenos subjectivos ou objectivos das emoções;
- Obter uma mudança num problema comportamental particular;
- Mudar o modo de vida do paciente, não somente por uma modificação dos seus comportamentos, mas igualmente agindo sobre as contingências do seu meio;
- modificar as distorções cognitivas que o indivíduo possa ter sobre si próprio e sobre os outros;
- Ajudá-lo a compreender os motivos das suas dificuldades e das perturbações emocionais que a acompanham;
- Tratar os sintomas funcionais e somáticos quando a intervenção dos factores psicológicos nestes é claramente posta em evidência.
A
relação terapêutica é também uma relação humana na qual o
comportamento do terapeuta, enquanto indivíduo específico, vai ter
um papel importante.
Quais
são os parâmetros essenciais da relação terapeuta-paciente que
acrescem a eficácia dos meios terapêuticos?
1)
A preparação do paciente para a relação terapêutica.
Há
dois argumentos que determinam a decisão de uma pessoa ir a uma
consulta: a competência
e a amabilidade.
2)
A competência do terapeuta na relação
As
experiências provam que, na nossa sociedade, seja qual for a idade
ou a classe social, existe nos pacientes um conservadorismo evidente.
Assim os resultados de uma mesma estratégia terapêutica serão
melhores se o terapeuta se fizer tratar por professor ou por doutor e
ele será mais eficaz se a sua lista de espera for longa e os seus
honorários elevados.
Schmidt
e Strong
(1970) demonstram que, para além dos atributos externos que envolvem
o psicoterapeuta, o paciente é fortemente influenciado pelo
comportamento observável do terapeuta, comportamento a partir do
qual deduz a maior ou menor competência
deste pela sua observação.
-
A pessoa competente é interessada, mas descontraída;
-
Não é nem familiar nem arrogante;
- Tem uma expressão de rosto
amigável, móvel e que varia em função do discurso do outro;
- Quando fala, fá-lo com
segurança;
- As suas questões não são
postas ao acaso, seguem uma linha lógica;
- Não interrompe
constantemente, mas consegue levar rapidamente o diálogo para o
centro do problema.
3) O conhecimento do paciente
Conhecer
um paciente é também chegar à vivência emocional na qual se
desenvolve este conjunto de factos e de situações.
A
empatia não requer do terapeuta uma participação nas emoções do
seu paciente, isto é simpatia.
A empatia implica, no mínimo, da parte do terapeuta, uma vontade de
compreender as dificuldades com as quais se debate o seu paciente a
partir das perturbações de comportamento que exprime. O terapeuta
empático tenta, através das informações que lhe são fornecidas,
exprimir ou ajudar o paciente a exprimir os seus sentimentos de um
modo que ultrapassa frequentemente as possibilidades de verbalização
a que o indivíduo pode chegar espontaneamente. A empatia permite ao
paciente e ao terapeuta construir uma espécie de conivência, na
qual o primeiro percebe claramente que o outro compreendeu o seu
problema e a sua preocupação. Neste momento, o terapeuta atento
constata uma verdadeira viragem na relação: esta mudança
exprimir-se-á quer por uma mudança na atitude exterior que se torna
menos crispada, mais confiante quer através de frases tais como “ao
menos o senhor compreende-me”; “acho que hoje foi uma boa
sessão”; “acredito que realmente me resolverá o problema”;
...
A
partir de agora é possível estabelecer estratégias
de acção com o
máximo de hipóteses de sucesso.
4)
Relação
humana e psicoterapia
O
psicoterapeuta, sejam quais forem as suas concepções pessoais no
plano dos conceitos filosóficos, políticos, morais, ... aceita o
paciente tal como ele é e sem julgamento de valor, sem condições
prévias. Isto não significa que seja obrigado a estar de acordo com
as opções cognitivas do paciente, mas sim que introduza na sua
relação um respeito pelo outro, um esforço máximo de compreensão,
uma vontade sincera de ajuda, uma espontaneidade no diálogo.
Quando
um terapeuta prova a sua empatia; quando estabelece uma relação
humana calorosa, ele realiza uma psicoterapia mesmo que não tenha
utilizado técnicas e métodos estruturados.12. O Treino Assertivo
Os
problemas assertivos cobrem todas as dificuldades que um indivíduo
possa sentir em emitir comportamentos sociais adequados. O sujeito
assertivo não consegue ou tem dificuldade em defender-se, em
defender pessoas do seu ambiente ou em defender as suas ideias face a
outras pessoas. Não consegue ou tem dificuldade em exprimir os seus
sentimentos sejam eles positivos (amor, amizade,...) ou negativos
(incapacidade de dizer não, de exprimir uma agressividade
justificada e comedida ...) de um modo habitual. Sente-se pouco à
vontade no contacto com os outros.
O
indivíduo não se torna socialmente incompetente porque é ansioso,
mas torna-se ansioso porque não adquire a competência desejada.
As
técnicas mais usadas na asserção
social são:
1.
Dessensibilização
sistemática
A Técnica de Wolpe
(1958) – comporta dois elementos: a segmentação da situação
ansiogénica numa série de etapas indo gradualmente da
menos ansiogénica
para a que desencadeia as reacções emocionais mais
intensas. A prática
deste método comporta três tipos de operações:
- O estabelecimento de hierarquias de estímulos ansiogénicos em relação a uma situação bem definida através de uma anamnese detalhada;
- A escolha e a aquisição de uma resposta de não-ansiedade supostamente antagónica;
- A dessensibilização sistemática por inibição recíproca que é a fase activa do tratamento.
A
alternância das fases de concentração do sujeito nas situações
ansiogénicas evocadas de um modo imaginado e nas fases de repouso
criadas pelo relaxamento ou por imagens agradáveis sem relaxamento.
Esta alternância constituirá uma espécie de entretenimento que
permite ao indivíduo adquirir uma forma de controlo sobre a situação
ansiogénica.
A
exposição voluntária a uma situação de não-evitamento.
O
paciente nunca recebe informação sobre as consequências de um
comportamento de não-evitamento de situações ansiogénicas na
medida em que as evita sistemáticamente. A técnica de Wolpe
ensina-lhe a confrontar estas situações.
2.
Técnica
de ensaio de atitudes
(role-playing)
Nesta
técnica o paciente com o terapeuta ou outro paciente aprende a
desempenhar um papel definido a partir de situações específicas
que se deduzem da análise das suas dificuldades.
As
técnicas de ensaio de atitudes introduzem os diversos modelos de
aprendizagem. Um ensaio de atitudes deve ser precedido de uma análise
funcional extremamente detalhada das situações-problema do paciente
assim como dos diversos registos comportamentais que é capaz de
emitir.
É
a partir desta análise que o terapeuta estabelecerá um certo número
de objectivos que servirão de temas ao ensaio de atitudes. Este pode
ser realizado no gabinete do terapeuta ou in
vivo. O terapeuta
hierarquiza as situações de modo a que o paciente receba reforços
positivos em número suficiente. Também pode ser proposto em grupos
terapêuticos em que se dará a cada um dos protagonistas um papel
definido em função dos seus próprios problemas.
Esta
técnica foi usada principalmente no treino da competência social.
A
qualidade dos resultados obtidos depende do valor da análise
funcional que foi estabelecida assim como da competência do
terapeuta em utilizar as diferentes leis das teorias da aprendizagem.
3.
Aprendizagem
através de modelos
(modeling)
Nesta
técnica, o paciente visualiza através de imagens o comportamento de
um outro em situações que lhe causam problema.
O
comportamento pode ser modificado ou adquirido pela observação
do comportamento de outra pessoa. Quando um indivíduo observa os
comportamentos de um outro, aprende os comportamentos do modelo (fase
de aquisição).
Neste período a aprendizagem estabelece-se sem que sejam necessários
reforços externos e sem o indivíduo passar à prática os
comportamentos que acaba de observar.
À
fase de aquisição sucede a fase
do desempenho durante
a qual o indivíduo vai emitir os comportamentos que aprendeu por
observação
Quais
são, para Bandura, os mecanismos de acção da aprendizagem por
modelagem?
Antes
de mais o observador pode aprender comportamentos que nunca emitiu
antes; é a verdadeira aprendizagem
por observação.
A aprendizagem por modelagem pode ter um efeito
desinibidor sobre um
comportamento que o observador já não pode emitir devido por
exemplo a uma certa ansiedade ou um efeito
inibidor sobre o
comportamento que emite ou deseja emitir e que se considera como
indesejável por exemplo o tratamento de uma fobia em que o indivíduo
reaprende por modelagem a aproximação ao objecto fóbico. Bandura
insiste que a noção de modelo se pode alargar também a
comportamentos verbais, simbólicos, à aprendizagem de regras
comportamentais ...
O
modelo deve ser logicamente competente no comportamento que desejamos
ensinar ao sujeito. De todas as maneiras esta competência não deve
ser muito grande, tornando o modelo inacessível para o observador.
De um modo geral, deve, em toda uma série de reportórios
comportamentais, estar tão próximo do observador quanto possível.
Noutros termos, o modelo deve estar um ou dois passos à frente em
relação ao observador.
Por
último o modelo deve criar no paciente um sentimento de simpatia.
Quando
o observador está na fase de aquisição, é necessário velar para
que os comportamentos emitidos pelo modelo não desencadeiem no
sujeito uma reacção emocional demasiado forte. Se isto acontecer,
torna-se incapaz de realizar uma observação adequada ao modelo.
Assim utilizam-se situações hierarquizadas ou métodos para reduzir
a ansiedade do paciente.
Ritter
(1968-9) desenvolveu uma técnica de aprendizagem por modelagem de um
tipo particular a que chamou participant
modeling (modelagem
de participação) na qual o terapeuta desempenha o papel de modelo.
Depois de ter descrito e mostrado o comportamento a adquirir, guia e
participa com o paciente na aquisição do comportamento desejado.
Este tratamento revelou-se positivo especialmente com problemas
fóbicos.
No
plano experimental a aprendizagem por modelagem foi utilizada
principalmente na aquisição de condutas sociais, na redução de
respostas emocionais, na aprendizagem de comportamentos diversos em
crianças deficientes mentais, no tratamento do autismo e em certas
psicoses.
4.
Shaping
operante
das respostas
O
método shaping
é um treino que, por
aproximações sucessivas do comportamento, selecciona condutas cada
vez mais próximas do fim fixado pelo terapeuta. É um método
reservado a problemas muito particulares como o tratamento do
autismo, a aquisição de aprendizagens específicas no débil mental
e no psicótico ou a reeducação de pacientes que perderam a maior
parte dos seus reportórios comportamentais depois de uma lesão
cerebral pós-traumática, por exemplo. É um método muito lento e
difícil.
O
papel do terapeuta como agente reforçador na relação
psicoterapêutica é fundamental.
Um
treino assertivo seguirá rigorosamente um certo número de etapas:
a)
Análise funcional
bastante detalhada de todas as situações sociais nas quais o
sujeito sente dificuldades.
Estas situações serão organizadas de um modo hierárquico,
partindo das menos ansiogénicas para as mais angustiantes.
b)
Em cada uma das situações e seja qual for a técnica utilizada o
terapeuta deve imaginar com o seu paciente o maior número de
possibilidades de interacções sociais assim como o máximo de
respostas tanto verbais como não-verbais que o paciente poderá
emitir em resposta a estes estímulos.
c)
Quando o treino por imaginação chega a um determinado estado, o
terapeuta propõe ao paciente passar à acção na vida real partindo
sempre das situações mais simples. Os resultados obtidos serão
comentados e discutidos na sessão seguinte para pôr em acção a
fase ulterior. O terapeuta reforçará socialmente os resultados
positivos obtidos e banalizará os insucessos objectivos ou
subjectivos descritos pelo paciente.
d)
Seja qual for o nível do desempenho a que o paciente consiga chegar,
é inevitável que certas situações não sejam ultrapassadas com
toda a competência desejada. O terapeuta terá de ajudar o paciente
a aceitar certos insucessos objectivos desencadeados pelo treino de
inserção social.
O
terapeuta behaviorista actual não trata de um problema com
dessensibilzação sistemática ou técnicas assertivas. Pratica uma
psicoterapia complexa em que essas técnicas eficazes se integram
numa abordagem bastante mais geral, visando eliminar não somente o
conjunto sintomático, mas também as causas dessas perturbações. O
psicoterapeuta considera que o sintoma é um simples revelador de um
problema subjacente representando em si um reportório de
comportamentos a tratar como tal.
Quanto
às causas, o psicoterapeuta procura as origens nas contingências do
meio, na organização funcional das aprendizagens desviantes, nas
percepções cognitivas erróneas.
Assim
causas e consequências, fundo do problema e sintomas não são mais
do que elos de cadeias de condutas controladas pela história
comportamental anterior, pelas interacções entre sujeito e meio,
pela organização de diferentes sistemas cognitivos. O tratamento
que daqui advirá, será uma procura de estímulos susceptíveis de
controlar um comportamento, uma aprendizagem de novas condutas, uma
supressão de condutas desviantes, uma correcção de cognições
erróneas, uma aprendizagem de autorregulações complexas ...
13. As Terapias Operantes
CONTRACONDICIONAMENTO
Uma
primeira táctica para eliminar uma resposta indesejável é aumentar
a força ou frequência de um comportamento adaptado que seja
incompatível com a conduta inapropriada. É o procedimento do
contracondicionamento.
Suprimir
um comportamento sem dar resposta alternativa, susceptível de levar
a reforços positivos, dá origem quer a recaídas rápidas quer a
sintomas de substituição por défice comportamental ou por
insuficiência de reforços, o que não deixa de apresentar algum
perigo.
O
contracondicionamento permite agir indirectamente sobre uma conduta
indesejável mesmo quando os acontecimentos que reforçam esta
conduta não são acessíveis à terapia. Becker
e outros (1967) demonstraram que, numa
classe, o facto de o professor não prestar atenção aos
comportamentos indesejáveis dos seus alunos, os aumentava bastante
devido à acção intermediária dos reforços positivos que os
alunos distribuíam entre si. Pelo contrário, combinar o ignorar dos
comportamentos de indisciplina com o reforço positivo das respostas
de trabalho e
de atenção
tem um efeito espectacular.
Outra
técnica para reduzir ou suprimir certos comportamentos: a
extinção.
Muitos comportamentos desadaptados são reforçados e mantidos pela
atenção que lhes é dada por exemplo o comportamento colérico na
criança e condutas neuróticas nos adultos. A técnica extinção
raramente se instala
de um modo regular. Muitas vezes a extinção
começa com um
aumento paradoxal do comportamento que desejamos eliminar devido a
reforços sociais e internos que escapam ao controlo do terapeuta.
Esta resistência depende de muitas variáveis entre as quais o
número e intensidade dos reforços ligados ao comportamento que
queremos eliminar. É necessário associar esta técnica a reforços
positivos de outras condutas. É importante ter sempre em mente que o
comportamento está sob o controlo do meio e o meio também é
controlado pelas condutas do indivíduo.(Bandura,1974)
14. A Reestruturação Cognitiva
Albert
Ellis (1957, 1968)
criou o método terapêutico Rational-emotional-therapy
(terapia
emotivorracional ou reestruturação cognitiva) que visa corrigir as
distorções cognitivas que os seus pacientes formulavam desde a
necessidade de ser sistematicamente aprovado pelos outros, a
incapacidade de tolerar um fracasso sectorial sem ter a impressão
de que ele implica a totalidade da pessoa, a convicção de que as
dificuldades que se encontram são sempre devidas a causas exteriores
a si próprio, a ideia de que se é irremediavelmente prisioneiro do
seu passado ...
A
reestruturação racional sistemática (sistematic
rational restructuring)
deve compreender quatro etapas:
- A apresentação do tratamento: o terapeuta, sem discutir o problema específico do paciente, explicita, através de exemplos simples, de que maneira ideias preconcebidas podem determinar ou modificar os sentimentos e os comportamentos. Os autores M. e A. Goldfried (1975) insistem no facto de ser importante demonstrar ao paciente que este tipo de reacção se pode ter tornado automático, não necessitando já de passar por um raciocínio consciente.
- Depois do paciente ter assimilado o princípio geral do método, o terapeuta examina com ele as principais dissonâncias cognitivas que se podem encontrar tais como as anteriormente mencionadas. Nesse momento, o próprio paciente dará exemplos de distorções cognitivas que constatou noutros ou em si próprio.
- Após traduz-se em termos racionais as dificuldades específicas do paciente. Através desta dialéctica o terapeuta tenta com o paciente reparar as dissonâncias que aparecem a este propósito e de as ligar às diferentes classes que foram descritas na fase precedente.
- A fase final consiste em propor ao paciente a prática desta análise nas diversas circunstâncias da sua vida diária, propondo uma hierarquização de situações tal como é feita na dessensibilização sistemática. É possível utilizar também cenas imaginadas como nos processos de ensaio de atitudes.
Esta
técnica implica que o indivíduo atinja uma autodescrição
pormenorizada das suas condutas e uma consciência de certos
automatismos de pensamento que controlam diversos comportamentos. O
controlo das condutas retomado pelos mecanismos conscientes permite
uma reorganização, uma modificação de certos conceitos
remodelando a inter-relação entre o indivíduo e o meio.
15. A resolução de problemas (problem solving)
Embora
resolvamos regularmente
vários problemas, nem sempre é evidente que a solução adoptada
seja a melhor. As reacções inadequadas a situações problemáticas
estão na base de muitas perturbações mais ou menos importantes.
As
pesquisas a este nível centram-se principalmente no exame dos
conceitos e processos ligados ao fenómeno da resolução de
problemas. Deste modo os investigadores estudaram o papel da
percepção, tentaram decompor os processos de raciocínio lógico e
o seu desenvolvimento, propuseram modelos matemáticos de escolha
lógica, examinaram o fenómeno da criatividade ...
Actualmente
todos conhecem a técnica do brainstorming
desenvolvida por A. Osborn
(1963). Para este autor os travões essenciais à resolução de
problemas e à criatividade são os receios de emitir uma opinião
não pertinente e ser criticado pelos outros. Consequentemente as
regras essenciais do brainstorming
serão a exclusão de toda a crítica dos outros ou de si próprio, o
encorajamento a emitir ideias e soluções fora de qualquer controlo
formal e a procura de múltiplas soluções alternativas.
D’Zurilla
e Goldfried
(1971) decompõem o método da Solução
de Problemas em cinco
etapas:
- Orientação geral: os terapeutas explicam ao sujeito as grandes linhas do método e mostram-lhe, através de exemplos simples, que as situações em que têm de resolver um problema são frequentes e fazem parte da vida normal. Trata-se de reconhecer a existência do problema, de pensar que existe provavelmente uma solução adequada e que é necessário evitar toda a ausência de solução ou reacção impulsiva. A tomada de consciência do facto de que um problema a resolver se põe num dado momento não é tão evidente como parece; frequentemente o sujeito só se dá conta indirectamente pelo mal-estar que acompanha a indecisão.
- Definição e formulação do problema: as soluções problemáticas da existência não são necessariamente definidas de um modo claro. Basta interrogar um paciente para ver como a sua análise permanece frequentemente vaga e abstracta. O exame funcional que é elaborado debruça-se tanto sobre as reacções emocionais do indivíduo como sobre as situações que as desencadeiam. Idealmente, no fim desta segunda etapa, o problema deve estar claramente definido em todos os seus parâmetros.
- Procura de soluções alternativas: M. e A. Goldfried (1975) inspiram-se na técnica do brainstorming. O paciente deve libertar-se de todo o julgamento de valor a propósito das soluções que propõe; deve deixar correr a fantasia o mais livre possível sem se preocupar em saber se as soluções que descobre são boas ou más, possíveis ou não. Quantas mais soluções evocar mais hipóteses terá de propor boas soluções.
- A decisão: a partir da lista de soluções que foram descobertas, o paciente examina criticamente cada uma delas: quais são as suas possibilidades objectivas de escolher com mais hipótese de sucesso esta solução do que outra; quais podem ser as consequências no plano pessoal, social, a curto prazo, a longo prazo, ... da sua escolha? Uma vez escolhidas as soluções, o paciente, com a ajuda do terapeuta, procura a melhor táctica para chegar ao resultado desejado. M. e A. Goldfried propõem que se utilize também aqui o método de brainstorming. É evidente que certas situações-problema não têm boas soluções. Assim se as reacções de um paciente são consequência de uma doença grave ou perda de uma pessoa querida ... não se tratará de ensinar ao indivíduo a resolver problemas, mas sim de analisar com ele as soluções mais adequadas a essa situação.
- Verificação: enquanto o treino para resolução de problemas se desenvolve essencialmente a nível cognitivo, a etapa seguinte já será a aplicação ao vivo da solução escolhida e da táctica adoptada. O terapeuta continua a ajudar o paciente neste momento; assim se a solução se mostra inadequada ou só parcialmente adaptada, se se esbarra contra uma dificuldade inesperada, examina-se outra solução sob o mesmo esquema terapêutico.
Saliente-se
que o método sistematiza a sua abordagem e tenta dar ao sujeito o
máximo de liberdade na escolha. Não se trata de dar ajuda em forma
de conselhos baseados no bom-senso ou nas opções pessoais do
terapeuta. O objectivo é treinar o indivíduo a partir de um
problema particular, a considerar todas as soluções libertando-se
de constrangimentos quer reais quer subjectivos, a raciocinar sobre
cada solução, a fazer uma escolha, a testá-la e a avaliar os
resultados. O treino na resolução de problemas tem como objectivo
levar o indivíduo a apreender, a examinar e a resolver melhor, de um
modo geral, a multiplicidade de situações que durante a sua
existência exigem um raciocínio lógico e flexível, uma decisão
que exclua ao máximo o acaso e uma acção ordenada.
O
método implica muitas variáveis e processos que até agora foram
pouco submetidos a uma análise experimental sistemática. Tal como a
reestruturação cognitiva, poderíamos revelar a intervenção de
diversos modelos teóricos para explicar o processo terapêutico.
Temos a certeza de que o método é eficaz para um certo número de
indicações e que os resultados obtidos são, por vezes,
generalizáveis a outras situações problemáticas.
16. Ética e Terapias Comportamentais
Na
elaboração de uma sociedade mais justa, os que estudam o
comportamento humano têm o seu papel:
- aumentar o conhecimento das regras que regem as condutas para chegar um dia a um conjunto estruturado que se poderá integrar com outras abordagens reformadoras;
- denunciar a utilização inadequada e abusiva das leis da aprendizagem de que as sociedades se servem empiricamente desde sempre com rara habilidade e frequentemente com a ignorância da maioria das pessoas.
No
entanto isto não permite ao psicoterapeuta, como a todos os que
exercem a arte de curar, esquecer o
dever que tem de responder ao pedido de ajuda imediato.
Como
pessoa, o terapeuta behaviorista é um membro de um determinado
sistema sociocultural. De acordo com os dados das suas experiências,
admite que, ele próprio, é influenciado no seu trabalho pelas suas
concepções ideológicas.
Os
meios de acção de que dispõe permitem-lhe sem dúvida ser
normalizador, mas também reforçar a autonomia do sujeito, alargar o
seu reportório comportamental, favorecer a sua criatividade, ...
Alguns
inquietam-se com o modo como poderiam ser utilizados os métodos de
controlo do comportamento humano, tanto a nível individual como
grupal, postos em evidência pelas pesquisas. O facto científico é
eticamente neutro no sentido em que tem potencialidades para ser
utilizado para bons e maus fins. A partir de leis que regem o
comportamento, podemos descrever o modo de atingir um objectivo, mas
nunca são essas leis que definem os fins.
A
regra ética fundamental será a de servir
os interesses do paciente e não os imperativos do meio.
O objectivo do terapeuta é tentar inserir o paciente no melhor das
suas capacidades na microssociedade em que vive. Ainda bem se o
resultado satisfaz toda a gente!
Se
o problema do objectivo procurado numa terapia pode, por vezes,
parecer fonte de dificuldades, serão frequentemente os meios
utilizados para o atingir que estarão no centro do exame das regras
éticas.(Kazdin,1978)
Mais
próximo do nosso propósito está a noção de controlo de
comportamentos que, a muitos, parece estar em antítese com o
conceito de liberdade do ser humano. Se admitimos que as nossas
condutas são controladas pelas nossas experiências passadas e
presentes, pelo ambiente objectivo e subjectivo no qual nos situamos,
como apreende o terapeuta behaviorista a noção de liberdade?
Um
indivíduo é tanto mais livre quanto mais os constrangimentos do
meio externo e interno são reduzidos e quanto mais alargado for o
seu reportório comportamental.
A noção de liberdade não implica a supressão de controlos, mas
uma melhor adequação desses controlos permitindo ao sujeito o
máximo de escolhas possível num determinado contexto. É evidente
que a noção de “controlo adequado” implica uma escolha na qual
o terapeuta arrisca fazer intervir as suas próprias concepções.
Este perigo real pode ser largamente controlado se forem seguidas
algumas regras paradigmáticas simples:
- Anteriormente à aplicação de qualquer estratégia terapêutica, deve ser estabelecida uma análise funcional detalhada do paciente, do seu quadro sociocultural e das suas referências filosóficas e morais ... O conteúdo da estratégia deve ter em conta estes dados.
- Os objectivos do tratamento limitar-se-ão às condutas que perturbam o sujeito ou que constituem um risco para aqueles que o rodeiam.
- O terapeuta, na sua relação com o paciente, integrará a sua acção no contexto de um contrato implícito ou explícito (Ayllon e Skuban, 1973) cujos termos essenciais são empatia, respeito pelo outro, definição dos limites da intervenção.
“Os
psicoterapeutas têm um papel importante a desempenhar e geralmente
procuram fazê-lo correctamente. À medida que as suas capacidades de
controlar e manipular o comportamento aumentam, o carácter moral do
seu empreendimento torna-se mais visível e embaraçante. Ao mesmo
tempo o seu conhecimento do ser humano melhora e as suas regras
morais são mais defensáveis. Quando chega a este estado, a sua
competência profissional será indiscutível e reconhecida e a sua
capacidade de servir as pessoas, individualmente ou em sociedade,
tornar-se-á preciosa.”(London, 1969)
Se
o movimento das terapias comportamentais está longe de ser unitário
no plano teórico guarda, através das suas diversidades, uma
coerência interna: a que lhe é dada pela convicção
de que é pela metodologia científica, tal como é praticada por
todas as outras ciências naturais, que o conhecimento do
comportamento humano poderá progredir.
Por metodologia científica entende-se um processo de pensamento
racional a não confundir com certos procedimentos ou métodos
experimentais particulares.
O
efeito terapêutico de certos métodos precede a compreensão do
terapeuta do porquê desse efeito. Deve-se prosseguir a criação e o
ensaio de novos métodos sem ter necessariamente a explicação da
sua acção. Este esforço de criatividade, controlada pela
experimentação e enquadrada pelas regras éticas, é próprio da
acção clínica.
Todos
os métodos, estratégias e tácticas utilizadas pelo psicoterapeuta
só podem chegar a uma modificação estável dos comportamentos se
respeitarem estas duas condições:
- O sujeito, a partir das suas aprendizagens, aceita controlar-se segundo os modelos aprendidos ao longo da terapia;
- O tratamento permite que o paciente chegue, no seu diálogo interno, a uma análise diferente e mais adequada da sua relação consigo próprio e com o mundo exterior.
Já
não se trata só de ajudar o sujeito a reduzir as suas perturbações
emocionais, a suprimir ou reforçar um comportamento e a elaborar
reestruturações cognitivas. Trata-se de abordar o estudo dos meios
de que dispõe o paciente para efectuar a passagem da relação
psicoterapêutica para a vida real. A relação psicoterapêutica
culmina no ideal da relação psicológica: o acesso do paciente à
autonomia através de uma manipulação selectiva do seu próprio
meio em oposição a outros tipos de controlo externo.
Conclusão
Assim
se viajou pela terapia familiar e individual. Este trabalho foi muito
proveitoso para mim e ajudou-me a encontrar-me, a conhecer-me e
orientar-me muito melhor na vida.
Neste
trabalho verificou-se que os últimos cinquenta anos têm sido de
boom
nesta área, no entanto muito poucas certezas há e muito ainda há
para aprender. Também se sabe que não há um método milagroso nem
um especialista guru sobre esta matéria, mas domina a humildade e a
vontade de uma aprendizagem mais profunda dos vários métodos para
uma combinação acertada e bem ordenada para cada caso e patologia.
Parece-me
que ainda há muito para conhecer e aprender sobre a complexidade do
ser humano, mas o terceiro milénio ainda agora chegou ...
Quanto
mais nos conhecermos e nos abrirmos a querer conhecer mais e mais
sobre o ser humano e sobre cada um de nós, menos doenças
sofreremos; mais saudáveis e mais felizes seremos.
Algo
que ficou provado é que o terapeuta ajuda, é essencial para
desbravarmos o nosso caminho, mas a
mudança tem de ser desejada
e querida pelo paciente e ele próprio tem de investir
o máximo de si mesmo na mudança, na procura de um novo caminho, na
vontade de uma nova caminhada. Sem isso os terapeutas não conseguem
ter sucesso. É assim que somos. A liberdade da/e escolha são de
cada um. Deus
propõe; cada um de nós escolhe ... e assume as consequências da
sua escolha. É assim que Deus nos fez e faz: cidadãos livres e
obedientes de livre vontade à Sua Lei – Amai-vos
uns aos outros como Eu vos amei
– transmitiu-nos e transmite-nos Jesus Cristo.
Isto
é o essencial; é a Essência.
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Superior Miguel Torga, Coimbra, Quarteto
Editora, Maio de 2000.
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